O que leva um executivo chinês de sucesso a se descobrir um cineasta sensível, que faz filmes sobre temas que o governo preferiria que não existissem? Hao Wu responde
O cineasta Hao Wu nasceu na China Comunista dos anos 70, sem liberdade alguma: naquele mundo, não poderia mudar de carreira, escolher seu trabalho, viajar para outra cidade, assumir-se homossexual. Mas, enquanto ficava adulto, viu o país se abrir – e escapou pela primeira brecha que encontrou. Primeiro, carregado pela boa formação científica que recebeu na China, foi ser executivo de uma empresa de tecnologia na Califórnia. Depois, mais à vontade em seu novo país e na vida, assumiu-se gay e artista – cineasta documentarista, para assombro dos pais, até então orgulhosos do filho executivo. Seu filme mais recente, Minhas famílias (2019), disponível na Netflix, conta a história de sua volta à China, casado com um homem, levando no colo dois bebês gerados em barrigas de aluguel, tentando arrumar um jeito de apresentar os bisnetos ao seu tradicionalista avô, de 90 anos.
O filme é como todos os outros de Hao: ao mesmo tempo singelo e surreal. Singelo porque o que se vê na tela é gente comum vivendo histórias humanas, dessas pelas quais todos nós passamos. E surreal porque na China as coisas são muito diferentes. O resultado é que as histórias são, ao mesmo tempo, muito estrangeiras e muito familiares. “Várias pessoas da América Latina me procuram nas redes sociais para me dizer que a experiência deles lidando com homossexualidade numa família tradicional é muito parecida com a minha”, diz.
Primeira pessoa
Minhas famílias é o primeiro dos filmes de Hao que fala dele próprio. Mas não é o primeiro a apontar a câmera para histórias humanas que desvendam as peculiaridades da sociedade chinesa, à deriva entre o tradicionalismo milenar e a modernidade tecnológica. No seu documentário anterior, o incrível People’s Republic of Desire (2018), disponível no Vimeo Pro e na Amazon Prime, Hao entrou no mundo absurdo das plataformas de live streaming chinesas, como a gigantesca e bilionária YY, em que pessoas que querem ser celebridades competem entre si pedindo dinheiro aos fãs e recebendo presentes luxuosos de benfeitores milionários.
Tudo isso sob o olhar atento de milhões de espectadores, que passam os dias conectados ao drama. Parece ficção, mas por baixo da bizarrice dessas gigantescas competições de popularidade que movem multidões, Hao acabou encontrando gente com frustrações e desejos idênticos ao de qualquer um de nós.
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Antes de focar nas celebridades anônimas, o cineasta havia filmado a saga de um grupo de jovens atores, cantores e dançarinos chineses, alunos da tradicionalíssima escola de artes fundada por Mao Tsé-Tung durante a Revolução Cultural comunista, enquanto eles ensaiam um musical da Broadway, Fame, americano até a medula. O filme The Road to Fame (2013), também disponível no Vimeo e na Amazon, é outro que, sem esconder do espectador o quanto a China é distante da gente, acaba revelando como os chineses são exatamente iguais a nós.
Os filmes de Hao não são distribuídos na sua China natal, porque tratam de temas que o governo preferia que não existissem: homossexualidade, obsessão por dinheiro, desigualdade, vaidade. Hao chegou a ser detido por cinco meses na China por causa de um documentário que ele começou a fazer sobre igrejas cristãs clandestinas, num país que foi oficialmente ateu por décadas e onde a liberdade religiosa é limitada. Todo o material sobre o filme foi apreendido e o projeto nunca foi concluído. Hao não fala sobre o assunto, provavelmente para evitar mais problemas.
Chinês e americano, ele está em posição privilegiada para entender as diferenças e as semelhanças entre as duas maiores superpotências do mundo. Seus dois países, os Estados Unidos e a China, juntos, são donos de um terço da economia global, os dois atores mais decisivos do futuro adiante de nós. Enquanto uma onda xenófoba e nacionalista acirra os ódios entre suas duas pátrias, ele segue interessado na universal humanidade debaixo disso tudo.
Trip. Você está na China agora. É para um projeto novo?
Hao Wu. Estou na China porque os meus pais estão doentes, os dois. Desde a conclusão de Minhas famílias, eu venho bastante. Agora estou em Xangai, com meus filhos, para eles passarem mais tempo com os avós.
Isso parece sério. Eles estão muito doentes? Não muito doentes. Mas estão com câncer. Estão bem, mas precisam fazer tratamento, e com câncer nunca se sabe quanto tempo eles têm.
E está filmando também? Estou fazendo pesquisas para projetos de documentários e tentando escrever um roteiro para uma versão com atores de Minhas famílias. Também estou falando com produtoras na China sobre trabalhos futuros como diretor.
E seu avô está por aí também? Não, meu avô continua em Chengdu [cidade natal de Hao, no sudoeste do país], levei meus filhos para vê-lo.
“Esse orgulho de ser a segunda maior economia do mundo é bom de algumas formas, mas o crescimento do ultranacionalismo é preocupante”
Hao Wu
Você contou a história inteira pra ele, sobre sua homossexualidade e o fato de os filhos terem dois pais? Não, não contei. Desde que o filme foi lançado, muitas pessoas me procuram nas redes sociais para me dizer que a experiência deles lidando com uma família tradicional é muito parecida com a minha – gente da América Latina, do sudeste asiático, de muitos países em desenvolvimento. Alguns dizem que não contaram para a família sobre sua homossexualidade e que o filme reforça essa decisão. Não é essa minha intenção, de forma alguma. Eu não incentivo ninguém a se esconder no armário. O que quero com Minhas famílias é dizer que é preciso ser paciente, compreensivo, especialmente com os mais velhos. Toda vez que eu venho para a China, tento me assumir para mais pessoas. Nesta viagem, eu contei para a família do irmão do meu avô, e os meus primos de primeiro e segundo grau. Todos têm sido bem receptivos. Mas decidimos não contar para ninguém com mais de 80 anos [risos].
A China onde você está agora é um lugar muito diferente daquele onde você nasceu em 1972. Pode me contar um pouco sobre que diferença é essa? [Risos.] É difícil resumir, são muitas diferenças. Você sempre pode considerar o copo meio cheio ou meio vazio, né? Eu sou uma pessoa otimista, sempre vejo meio cheio. Então, se olharmos para a China de agora, é claro que ainda existem problemas, como no Brasil ou em qualquer país em desenvolvimento. Mas é um lugar com muito mais liberdade do que antes. Na China onde nasci, as pessoas simplesmente não podiam se deslocar de uma cidade para outra. Você ia para a faculdade e, depois que escolhia uma área de especialidade, tinha que ficar nela por toda a vida. Quando você se formava, o governo designava um trabalho para você. E, mesmo que você detestasse, não podia mudar. Hoje há um grande firewall [dispositivo de segurança em rede] na internet chinesa, mas mesmo assim as pessoas têm muito mais acesso às informações que vêm de fora. Há muitos valores diferentes entrando e influenciando a sociedade. Dentro do país não existem facções políticas, mas existem pessoas de diferentes escolas com visões distintas – umas mais conservadoras, outras mais liberais. Então tem discussões acontecendo que não eram possíveis na década de 70. Quando eu nasci, a Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung estava acontecendo e você não tinha abertura para falar nada que fosse diferente da linha do partido oficial. Outra diferença é que a China agora é muito mais orgulhosa do que antes. Nos anos 70, a economia chinesa estava sofrendo, mas agora é a segunda maior do mundo, e continua crescendo rápido, deixando muitos países nervosos. Esse orgulho é bom de algumas formas, mas o crescimento do ultranacionalismo é preocupante.
Você se sente assustado? Às vezes não me sinto confortável, mas não a ponto de achar que a China pode se tornar a próxima Alemanha, como parte da mídia diz. De muitas formas, a China ainda é diferente do Ocidente, mas de outras é quase igual. Qualquer um aqui que queira assistir aos programas mais recentes da HBO ou da Netflix pode fazer isso facilmente através de VPN [rede privada virtual, portanto, alheia ao controle chinês] ou em sites piratas. Toda a tecnologia do Ocidente está acessível aqui também, ou até mais. Ao mesmo tempo, o sistema político ainda é o mesmo de quando nasci. A China é muito interessante. E alguns aspectos são bizarros até para um chinês, como eu.
Quando você escolheu sua carreira, você optou por ser biólogo, correto? Sim. Porque, nos anos 80, cresci sem nenhum acesso a pessoas nas áreas criativas. Minha infância foi muito simples. E, naquele ambiente, se você é um bom aluno, todo mundo espera que você entre na ciência. Foi o que fiz.
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Quando fez isso, sentiu que era uma decisão definitiva? A princípio, você não poderia nunca mudar de área? Isso. Eu não poderia mudar. Na verdade, fugi da faculdade no primeiro ano porque eu detestava esse caminho. Mas meus pais me forçaram a voltar, porque era minha única chance de fazer faculdade. Por sorte, minha geração foi beneficiária da abertura da China, nos anos 90. Passou a existir a possibilidade de estudar em outro país. Fui para os Estados Unidos fazer meu mestrado, mas, quando cheguei lá, mudei para administração. Fiz MBA e depois fui trabalhar no Vale do Silício, com tecnologia de ponta. Trabalhei por quatro anos na Califórnia, e aí voltei para a China, para me juntar ao Alibaba [gigante chinês da internet].
“Me sinto muito bicultural. Quando estou na China, me sinto completamente chinês, e, quando estou nos Estados Unidos, me sinto americano”
Hao Wu
Em Minhas famílias, você diz que ser gay na China simplesmente não era uma opção, não era algo que pudesse ser considerado. Você só descobriu sobre sua homossexualidade quando saiu do país? Eu sabia que era diferente. Desde os anos 80 tinha um pouquinho de informação que chegava à China vinda do Ocidente. E o conceito de homossexualidade estava nos livros – havia títulos de psicologia. Homossexualidade era considerada uma doença mental. Eu sabia que provavelmente era gay, mas não que uma pessoa gay podia ser feliz. Essa foi uma das grandes razões que me motivaram a ir para os Estados Unidos, mas não a única. O país representava a liberdade, a cultura, a riqueza, a possibilidade de felicidade para uma pessoa gay.
Você fez carreira na indústria de tecnologia, antes de resolver abandoná-la para virar artista. O que te atraiu para esse mundo, e o que o afastou dele? Eu amo tecnologia, adorava gerenciar produtos de tecnologia de ponta. Era muito criativo e também gostava muito de trabalhar entre engenheiros e gente de negócios. Mas, desde muito novo, eu tinha um grande interesse pelas artes e pelas humanidades. Sempre escrevi, dirigia peças na escola e na faculdade, sempre tive esse desejo de criar e de me expressar. Adorava os desafios dos negócios, mas não era uma expressão minha. Em 2005, comecei a fazer documentários como hobby, em paralelo, e mais tarde percebi que eu não podia ter uma carreira na tecnologia e, ao mesmo tempo, fazer um bom trabalho como cineasta. Em 2011, decidi deixar o meu trabalho e me dar um ano para concluir meu filme The Road to Fame. Um ano virou dois e, ao fim deles, percebi que é disso que gosto. O filme foi para alguns festivais, a BBC comprou, a PBS transmitiu, parecia que eu tinha uma carreira. Foi uma decisão difícil, porque eu tinha um salário muito bom, estava numa posição sênior na indústria de tecnologia.
Onde você trabalhava nessa época? Eu era gerente de canais do TripAdvisor na China. As pessoas no setor de tecnologia me conheciam e, acima de tudo, meus pais estavam orgulhosos. O filho deles era respeitado e ganhava bem, e aí de repente... Hoje mesmo eu estava falando com a minha mãe e ela me contou que ela e meu pai ainda não conseguem entender como eu posso ter largado um emprego para virar cineasta.
E seu lado chinês provavelmente sofre com isso, não é? Era difícil para mim no começo, mas agora não mais. Ser cineasta é a minha identidade. Quando meus pais falam assim, eu só escuto. Eu sei que eu não posso convencê-los, e eles não podem me convencer. Mas eles precisam desabafar e tudo o que posso fazer é escutar.
Identidade me parece um assunto com o qual você se importa muito. Seu primeiro filme, Beijing or Bust (2005), é basicamente sobre isso. Você encontrou personagens que estavam numa situação oposta à sua: pessoas com origem chinesa que haviam deixado o Ocidente para viver na China. Como se sente em relação a isso? É chinês? É americano? É, tive muita dificuldade com essa pergunta. Quando eu era jovem, quis muito ser americano, porque, naquela época, os Estados Unidos eram um farol de esperança para as pessoas no mundo inteiro. Mas, quando já estava morando nos Estados Unidos, como imigrante, percebi que não tinha como me livrar dos meus aspectos chineses – as pessoas me veem como chinês. Então houve um período em que eu ficava muito confuso. Quem sou eu? Isso é parte da razão do meu retorno à China em 2004, depois de cinco anos querendo estar longe. Quis descobrir qual era a minha conexão com aquele país. Demorei bastante para me reconectar com a China de novo. Agora me sinto muito bicultural, no sentido de que, quando estou na China, me sinto completamente chinês, e, quando estou nos Estados Unidos, também me sinto americano. Então não percebo em mim aquele conflito que eu quis discutir em Beijing or Bust, que fala sobre a busca por um lugar onde você possa se sentir à vontade consigo mesmo.
“Eu sabia que provavelmente era gay, mas não que uma pessoa gay podia ser feliz”
Hao Wu
Você fala sobre conflitos e teve um ponto na sua carreira no qual eles vieram à tona. Você acabou sendo preso em 2006, quando estava fazendo o seu segundo filme, The Road to Fame, certo? Como isso aconteceu? Neste momento eu não quero falar sobre isso. Espero que algum dia eu possa usar um dos meus métodos criativos para contar essa história, mas agora prefiro não entrar em detalhes, além do que já foi divulgado na imprensa.
Entendo. Então você levou oito anos depois disso para concluir outro filme, certo? Sim, porque passei a maior parte do tempo trabalhando para o Alibaba e para o TripAdvisor. Mudei meu foco para os negócios. Eu me demiti da minha carreira no Vale do Silício em 2004, voltei para a China, fiz Beijing or Bust em 2005 e, quando eu estava filmando o meu segundo documentário, em 2006, tive esses problemas com o governo. Depois disso, voltei para a indústria de tecnologia. Só em 2011 me demiti, novamente, para me concentrar no cinema em tempo integral.
Essa sua dupla identidade, entre as duas maiores superpotências do mundo, me parece parte de sua força como cineasta. Foi uma ativo importante em The Road to Fame, uma história muito atraente para o Ocidente, mas fico curioso. Como foi recebido na China? Documentários ainda não eram tão assistidos aqui. Acho que teve 2 milhões de views on-line em algum lugar da China.
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Você é mais mais reconhecido como cineasta nos EUA ou na China? Sou considerado um cineasta emergente nos dois países. Nos Estados Unidos, People’s Republic of Desire ganhou o prêmio do júri do South by Southwest Film Festival, em 2018, e Minhas famílias é um filme original da Netflix. São conquistas significativas para um documentarista nos Estados Unidos, né? Mas os dois documentários falam sobre questões da China, sem vilões, com bastante nuance – não são o tipo de filme que atrai multidões. Na China, as pessoas que assistiram aos filmes adoraram. Mas pouca gente viu, porque não conseguimos autorização para distribuí-los aqui. People’s Republic of Desire fala sobre celebridades da internet, cultura de idolatria ao dinheiro, desigualdade financeira, e a angústia social das classes mais baixas, que são temas para os quais o governo não quer chamar atenção. Então esse filme não foi exibido aqui. E, como Minhas famílias é sobre LGBTQ, também não vai ser aprovado. A indústria chinesa de cinema, no entanto, está descobrindo o meu trabalho e é por isso que eu venho muito para cá, falar com produtoras interessadas na minha capacidade de contar histórias.
Eu sabia que People’s Republic of Desire era um documentário. Mas, se eu assistisse sem saber, teria dúvidas sobre ser ou não uma ficção. É uma história tão inacreditável, essa das celebridades on-line que passam o dia entretendo fãs e pedindo dinheiro. Ao mesmo tempo, vejo aqui no Brasil – e você deve notar também no seu outro país, os Estados Unidos – um fenômeno que não é tão diferente assim. O sistema político parece estar sendo dominado por personagens que são celebridades on-line, cujo maior talento parece ser mobilizar os outros pelas redes sociais. Você também acha isso tudo surreal? Quando ouvi falar sobre como pessoas ricas e pobres ficam on-line juntas nas mesmas salas de exibição, idolatrando as mesmas estrelas, parecia muito bizarro. Queria fazer um filme sobre a desigualdade financeira, sobre os ultrarricos e os ultrapobres na China. Mas, quanto mais me aprofundava nesse fenômeno, mais eu sentia os paralelos entre o que está acontecendo on-line versus o que acontece na vida real, e percebia que isso poderia servir como metáfora para tantas outras coisas. Eu vi nessa história o capitalismo: como as pessoas idolatram o dinheiro, como ele comanda a vida delas, como umas usam as outras para ganhar grana. Você viu a política, porque tem votações e democracia no filme, e também a discussão sobre como o dinheiro nos controla. É o trabalho de que mais tenho orgulho até o momento, porque é uma história muito complexa de se contar. Fiquei um pouco surpreso por não ter conseguido tanta distribuição quanto eu gostaria.
E é um filme tão triste também, não é? Sim, talvez seja por isso que não tenha feito tanto sucesso [risos], é uma história triste. E também é um documentário. As pessoas não querem assistir a um documentário triste.
“Não incentivo ninguém a se esconder no armário. Mas é preciso ser paciente, especialmente com os mais velhos”
Hao Wu
É triste porque você revela a consequência que essa existência on-line tem na realidade. Sim. Voltando para o título do filme, People’s Republic of Desire [República popular do desejo, em tradução livre]: por que as pessoas dedicam tanto tempo, energia e dinheiro on-line? É porque elas têm esses desejos não atendidos na vida real. Isso tem relação com a política. As pessoas em Nova York não entendem por que o Trump é tão popular. É porque existe um grupo de pessoas que, por diferentes razões, não estava satisfeito com o status quo. Então é um recado para que liberais como nós parem para pensar também. Por que essas pessoas não estão satisfeitas? No Ocidente, pessoas como você e eu, provavelmente, não entendem por que os jovens gostam tanto de Instagram ou YouTube. Live streaming é a mesma coisa, tem o mesmo apelo: as celebridades parecem tão autênticas na frente da webcam, e os fãs sentem uma identificação com os seus ídolos. A única diferença entre o live streaming e o YouTube é que os youtubers não ganham dinheiro diretamente dos fãs, como nessas plataformas chinesas. Eles ganham com publicidade, então é indireto. Mas o fenômeno é o mesmo. O live streaming é uma forma extrema dessa cultura global de celebridades de internet. É a mesma lógica, são os mesmos desejos.
Pelo menos na China a pessoa que vence no YY não se torna presidente [risos]. [Risos.] É por isso que o governo chinês não quer uma democracia.
Lembro que, uma década atrás, o mundo estava muito otimista com a democracia. A China preferiu escolher um sistema autocrático. E, hoje, quando se vê a instabilidade política em países como os Estados Unidos e o Brasil, ganha força a ideia de que a democracia pode atrapalhar uma sociedade. Você às vezes tem dúvida sobre a democracia ser uma boa opção? É uma pergunta difícil, sou só um cineasta. Acho que democracia é uma ideia que pode ter muitos formatos diferentes. Quando falamos de democracia, de que sistema exatamente estamos falando? Porque é possível argumentar que nos Estados Unidos não há uma democracia real, com os colégios eleitorais pelos quais quem tem menos voto pode ser eleito. Mas eu sinto que é uma coisa boa estarmos falando sobre isso. Lembro que, quando eu li O fim da história [livro escrito pelo cientista político Francis Fukuyama em 1992], eu senti que tinha algo estranho naquela ideia de que a globalização e a democracia liberal venceram e eram a resposta para todos os problemas do mundo. Eu não penso que o modelo chinês seja a resposta, ou que seja uma alternativa melhor do que a democracia, mas acho que é positivo quando somos forçados a discutir qual é a melhor forma para um país em desenvolvimento avançar. Cada país tem a sua história, seus motivos para que o sistema político e a estrutura social sejam como são. Eu acho que é algo que, de forma indireta, eu comento em Minhas famílias. Obviamente, num mundo perfeito, meus pais e meu avô seriam pessoas iluminadas, cultas, do Upper West Side de Nova York, que simplesmente me aceitariam quando eu me assumisse gay para eles, e tudo seria fácil. Mas não é quem eles são, não são os valores que eles têm. Precisamos sempre buscar as mudanças que acreditamos que vão tornar nossa sociedade melhor, mas também precisamos respeitar a bagagem histórica de cada país – e de cada pessoa. E temos que ter paciência com o progresso.
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Uma coisa de que realmente gostei nesse filme foi o contraste entre aquele cineasta muito corajoso que nós podemos ver, com a câmera ligada o tempo todo, mesmo em situações muito difíceis, e a pessoa que não consegue falar uma frase simples para o seu próprio avô: “Sou gay”. Foi difícil? Não foi difícil enquanto estava fazendo o filme, porque, como contador de histórias, sempre que encontro uma boa trama, meu instinto é simplesmente acompanhá-la. Minhas famílias, por ser um filme pessoal, tornou a parte de filmar ainda mais fácil – eu podia gravar o tempo todo, porque tudo na minha vida tinha a ver com o documentário. Difícil foi quando o filme estava prestes a ser lançado na Netflix. Eu ficava pensando: “Uau, a história da minha família vai mesmo ser mostrada para o mundo inteiro”. Porque a essa altura eu não estava mais no modo cineasta, contador de histórias. Eu estava de volta ao papel de filho, de pai, de neto. Isso me deixou bem nervoso. Fiquei muito preocupado com o impacto que teria na minha família, em como eles se sentiriam, porque mesmo que a Netflix não esteja presente na China, os chineses têm várias maneiras de conseguir acesso a cópias pirateadas de conteúdos estrangeiros.
Talvez estar no papel de cineasta tenha facilitado para você, porque lhe permitiu não estar no papel de filho ou de pai ou de neto. Você não precisou lidar com tudo pessoalmente, porque
“Lamento que este mundo esteja cada vez mais polarizado. Tenho certeza de que no Brasil a política ficou extrema também”
Hao Wu
estava muito envolvido no projeto artístico. Sim, de certa forma facilitou. Como em qualquer família chinesa tradicional, meus pais e eu não conversamos muito. Quer dizer, a gente come junto, bate papo. Mas, fazendo o filme, quando eu os entrevistei e fiz perguntas pessoais profundas, percebi que os entendi muito melhor. Tive a oportunidade de compreender o quanto eu tinha magoado meus pais no passado. Então, acho que ser um cineasta de certa forma me enriqueceu como pessoa. Mas não quero nunca mais filmar a minha família, é muito difícil lidar com esse conflito de ser cineasta, ter que filmar e, ao mesmo tempo, cuidar dos filhos.
Acho que meu personagem preferido de todos os seus filmes é a sua mãe [risos]. Adoro ela... Algumas das coisas que ela fala no filme provavelmente soam brutais para o filho, mas são um tesouro para o cineasta, não é? Será que ela diria essas coisas para você se não houvesse uma câmera? Sim! Ela estava me dizendo coisas que já tinha dito mil vezes antes. Ela é assim, é assim que ela fala. Pessoas de fora podem se chocar, mas dentro da minha família já estamos bem acostumados.
E você nunca se rebelou contra isso? Eu me rebelei muito quando era adolescente. Gritávamos um com o outro quase todos os dias. Fui para os Estados Unidos em 1992 e, até 2004, só voltei para a China três vezes. Eu queria ficar o mais longe possível de lá.
Você queria esquecer sua identidade chinesa. É, eu queria ser americano.
Você é cidadão americano? Ainda não, eu tenho o green card, mas ainda não me naturalizei.
Eu tenho uma dúvida sobre o filme. Tenho a impressão de que você escolheu não contar isso, mas por que dois filhos de uma vez? Ah, não é que eu não quisesse contar, acho que é pouco relevante em relação à história. É que tanto eu quanto meu parceiro queríamos um filho biológico, então tivemos dois. Como a história do meu parceiro não estava tão presente no filme, decidimos não complicar.
Tive a impressão de que você não quis isso registrado no filme porque não queria que seus filhos pensassem que cada um deles é filho de um de vocês, porque os dois são filhos de ambos. Sim, ambos são de nós dois.
“Eu venho de uma identidade chinesa, tentando ser americano, depois viajo de volta, vou e volto, e me acomodo no meio do caminho”
Hao Wu
E você passou a vida toda tentando lidar com essas duas identidades diferentes e complexas, e agora essas identidades estão em guerra, de certa forma. Existe muita desconfiança em relação à China nos Estados Unidos, e eu tenho a sensação de que as pessoas na China estão com raiva dos Estados Unidos, por causa da guerra comercial iniciada por Trump. Como você se sente, com seus dois países em oposição? Você provavelmente consegue entender os dois lados, não é? Sim, sim. Entendo de onde os dois lados vêm, e porque eles estão chegando a conclusões diferentes. Eles partem de pressupostos diferentes, têm sistemas de valores diferentes. Lamento que este mundo esteja cada vez mais polarizado. Tenho certeza de que no Brasil a política ficou extrema também, não é? Por mais que eu lamente que meu tipo de visão, cheia de nuances, não seja mais apreciada, sinto que, como contador de histórias, tudo o que eu posso fazer é continuar a contá-las, com todas as nuances, e manter a esperança de construir uma ponte para algum tipo de entendimento mútuo, que possa talvez deixar o mundo um pouquinho melhor. Mesmo que muitas vezes pareça que não tem jeito, que o que estou fazendo é em vão, acho que isso está nos meus genes. É a única coisa que sei fazer.
É difícil ser estrangeiro nos EUA neste momento? Eu não sei, eu moro em Nova York, uma grande bolha liberal. Então, para uma família como a nossa, nós nos sentimos aceitos, até abraçados, como se fossemos muito, muito especiais [risos]. Não quero que nossa família seja tratada como mais especial do que qualquer outra. Mas também existem pessoas que gritam conosco só porque somos uma família de pais do mesmo sexo, mesmo em Nova York. Acho que vão continuar me olhando como alguém que não é nativo o suficiente. Não importa, eu sei quem eu sou, me sinto à vontade nas duas culturas.
Você acha que vai voltar a morar na China algum dia? Como agora meus pais estão doentes, viajo de volta pelo menos uma vez a cada três meses. Cada vez que venho, fico entre uma e duas semanas. Então sinto que realmente moro em dois países. Meu próximo projeto pode ser baseado nos Estados Unidos, ou aqui. Se for na China, passarei pelo menos 50% do meu tempo neste país. Eu gostaria que nossos filhos passassem alguns anos crescendo na China, para garantir que eles sejam biculturais, que sejam fluentes em chinês também.
Você quer que eles tenham uma perspectiva mais complexa do mundo? Sou um contador de histórias e acho que há muita beleza na diversidade do mundo. Não quero que meus filhos sejam completamente chineses ou completamente americanos, porque, para ser uma coisa ou outra, significa que você tem que rejeitar o outro lado.
E você acha que seu avô não sabe que seus filhos têm dois pais? Às vezes, acho que ele sabe; às vezes, acho que não [risos].
Talvez ele saiba em algum nível, mas você sente que ele não quer que conte isso pra ele? Correto. Nesta viagem mais recente, meu avô falou para levar meu “colega” para o almoço em família.
Ele falou “colega” entre aspas? [Risos.] Não, ele não usou aspas. Ele só falou para levar meu colega, ou meu amigo, para o almoço amanhã, ou algo assim. Não sei se ele o vê como família, ou se o vê somente como um amigo próximo.
Qual é a idade dos seus filhos agora? Eles têm 4 anos.
Ah, achei que fossem menores, pelo filme. Durante o filme, eles tinham 1 ano e meio, agora faz dois anos e meio que terminei as filmagens.
E eles falam mandarim? Em casa nós falamos com eles em mandarim, mas, na escola, falam inglês. Estão no jardim de infância.
Mas são crianças americanas, certo? Eles não têm essa identidade dividida que você tem. É, mas, para ser sincero, acho que um dia eles vão passar pelo mesmo que os personagens de Beijing or Bust passaram. Porque eu venho de uma identidade chinesa, tentando ser americano, depois viajo de volta, vou e volto, e me acomodo no meio do caminho. Eles vão crescer como americanos com uma forte influência chinesa. Talvez tentem encontrar sua identidade chinesa, e percebam que também não são chineses.
Estou ansioso para ver a versão que você fará com atores do documentário Minhas famílias. Esse é o projeto. Com sorte, vou encontrar uma ótima atriz para fazer o papel da minha mãe nessa versão.
[Risos.] Essa vai ser a tarefa mais difícil da sua vida, encontrar uma atriz para o papel da sua mãe. [Risos.] Está sendo divertido.
Créditos
Imagem principal: Pedro Arieta