João Gomes: O rap é a minha maior escola

por david carneiro

Ele tem a senha. Como um jovem vaqueiro se transformou em um fenômeno e, aos 20 anos, conseguiu furar bolhas, chegar ao Rock in Rio e aproximar um Brasil dividido?

Foi ouvindo rap, cantando Belchior, lendo Machado de Assis e frequentando vaquejadas que João Gomes, aos 20 anos, conseguiu o (quase) impossível: furar bolhas e aproximar um Brasil dividido. Nascido em Serrita, pequena cidade do sertão pernambucano conhecida como a Capital do Vaqueiro, ele se tornou o queridinho do país e viu suas músicas sendo cantadas aos berros pela galera do sertanejo, pelos jovens hypes das capitais e por uma infinidade de crianças e famílias. Desde 2021, ano do lançamento do seu primeiro disco, “Eu Tenho a Senha", ele faz mais de 25 shows por mês, soma milhões de seguidores nas redes sociais, gravou um DVD para 150 mil pessoas no Marco Zero do Recife, emplacou um hit na trilha da novela Pantanal e segue em alta, acumulando mais de 6 milhões de plays mensais em plataformas de streaming.

João começou a cantar ainda criança, no coral da igreja. Sua voz grave e melódica sempre foi motivo de espanto. Como um menino franzino tem uma voz tão potente? Ele gravava versões de artistas que gostava e postava no YouTube. Foi assim que “viralizou” pela primeira vez e começou a se acostumar com a fama na escola. A carreira começou pra valer com apresentações em vaquejadas e festas do sertão pernambucano. O piseiro, ritmo que hoje domina as paradas do Brasil, foi o seu caminho natural.

Fã de literatura, de rap, de samba e do sertão, João Gomes encontrou nos livros a vontade de conhecer o mundo além da sua pequena cidade. É normal vê-lo compartilhando dicas de leitura em suas redes sociais. Todo esse caldeirão genuinamente brasileiro é o que João apresenta em suas músicas. Com leveza, ele parece flutuar entre os tantos universos do Brasil.

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Trip. Quem é o João Gomes de Serrita?

João Gomes. O João Gomes de Serrita ainda é uma criança. Na verdade, é Joãozinho, é João Fernandes. Quando eu estava em Serrita e ainda tinha o meu avô, tinha muita inocência, e queria muito descobrir o que era esse mundo. Ficava me perguntando: 'porra, em algum lugar desse mundo está acontecendo muita coisa, a vida está acontecendo em vários lugares'. Não era nem que lá não acontecesse nada, mas lá é onde eu ficava pensando nisso.

Como foi a infância no sertão? Sempre fui muito influenciado pelos bons costumes de lá. A galera é muito simples, a comida, o jeito de ser. Mas tive uma boa educação, amigos que sempre estiveram ao meu lado. Aprendi muito com a simplicidade desses lugares.

A sua cidade é conhecida como a Capital do Vaqueiro. O que representa a figura do vaqueiro? Quem é vaqueiro no sertão é herói, é corajoso. Meu nome é João Fernando por causa do meu tio, que era vaqueiro. E aí sempre se conta muito sobre a disposição que ele tinha para fazer as coisas. E é isso que é o vaqueiro: alguém disposto a fazer as coisas, que mostra interesse pelo que faz e que cuida muito bem do que tem. Então quando eu cresci, eu cresci dentro de uma pega de boi, em vaquejadas.

Você trouxe para o piseiro o conceito da toada, do aboio. Isso não era comum. As pessoas achavam estranho quando você começou a trazer essas referências? Eu sempre cantei mais para o público da vaquejada, então não teve estranhamento, porque já era esse ambiente misturado. E quando surge um novo artista, esse público apoia de uma maneira muito boa, incentiva, e o mundo inteiro acaba conhecendo – como aconteceu com Tarcísio do Acordeon, como aconteceu com Zé Vaqueiro, como aconteceu comigo e com vários outros artistas. Quando eu comecei cantando sobre vaquejada a galera viu que fazia sentido e aí respeitou bastante.

Você já fez algumas lives cantando Belchior. Como esses artistas de outra geração chegaram para você? Foram pessoas jovens que me apresentaram. Quem me apresentou Belchior foi Don L. Don L é um cara que canta hip hop, ele canta: ‘vamos ultrapassar os carros como Belchior, e gritar alucinados como Belchior’. E eu pensei: ‘que diabo é Belchior?’. Aí eu fui procurar quem era Belchior, e me identifiquei.

Você é um cara ligado ao piseiro e ao forró, mas se conectou com nomes como Baco Exu do Blues, Don L, Marina Sena, Djonga. Como é para você frequentar tantos universos diferentes e conseguir furar as bolhas de estilos musicais? Antes de ser do piseiro, eu já era eu, gostava dessas coisas. Porque tipo assim, a gente é novo, a gente acaba ouvindo coisas novas também, meus amigos de onde eu moro continuam escutando hip hop, essas coisas. Eu gosto de muita música. Então a gente acaba conhecendo.

E dessa galera, com quem você toparia fazer um feat? Pô, meu sonho é gravar com o L7nnon, porque é um grande amigo que eu fiz, que me ensina todo o santo dia a ser um pouquinho melhor. Um cara que é muito trabalhador, muito disposto, e que está sempre com um sorriso no rosto. Ele é mais velho que eu, só que ele é um cara que sabe viver a vida, um bon-vivant. Ele me passa essa energia positiva desde o dia em que o conheci. Eu não tenho muito interesse nesse negócio de feat, preciso conhecer muito a pessoa, me identificar. Acho que vai sair uma magia aí, uma coisa muito abençoada, e a gente já está trabalhando nisso.

O seu jeito de cantar tem influência do rap e trap? Tem. Hoje eu sou muito amigo dos meninos, mas eu sempre gostei muito. O rap é uma escola, tem muita poesia, muita referência boa pra gente estudar. E acho que a minha maior escola no rap foi Don L, que é um cara de Fortaleza. Ele canta sobre sair do Nordeste, vir para o Sul. Acho que aquele álbum 'Roteiro Pra Aïnouz' foi a minha maior escola. Se você não conhece, fica à vontade pra conhecer. É a música que fala que já tava fazendo seu exercício, até quando a música não fazia sentido. E eu já estava fazendo meu exercício tentando fazer vídeos, postando, tentando ver se dava certo, tentando encaixar uma linha na outra até sair uma música. Acho queo Don L foi uma grande escola na minha vida, como referência.

Qual a importância da literatura na sua carreira e de onde vem esse gosto por livros? Quando eu tinha 13 anos passei por um trauma muito grande na minha vida, perdi um irmão. Foi em 2015. Para suprir aquela falta, comecei a me interessar por livros. A literatura me ajudou a resgatar meu coração. Eu não gostava tanto de rede social, não tinha muito acesso a viagens e coisas assim, mas os livros me faziam viajar pra cantos que eu nunca tinha ido. E a descoberta pela palavra foi me ajudando.

Você é um dos artistas que mais faz show hoje no Brasil. Como é viver praticamente na estrada? Eu não sei mais o que é não viver na estrada. A gente vai vivendo assim. Quem vive na estrada, quem pega essa doença, acho que nunca vai querer abandonar. É ruim a saudade.

O que não pode faltar na estrada pra você, já que você vive nela? Tem um verso de Don L que ele canta bem no começo da música: 'uma noite tem que valer um verso para no outro dia o verso valer a noite. A estrada já tem que valer a viagem porque o destino é sempre incerto'. A gente tá na estrada, nosso destino é sempre incerto, então não pode faltar na estrada muita inspiração para fazer esses versos, para comemorar.

Qual a coisa mais inusitada que já rolou na sua rotina nas estradas? Eu estava em Pernambuco para um show, e aí, véi, quando do nada, uma menina diz: 'meu filho é seu fã, ele tá aqui'. E aí vem um menino pequenininho. 'Bota ele pra cantar, sobe ele aí, sobe ele aí'. Falei 'calma aí', porque estava no primeiro bloco ainda. Quando acabou o bloco o menino já estava em cima do palco, eu digo: 'oxente'. Aí comecei a cantar lá com ele, aí comecei a cantar normal assim, falei pra ele se comportar. Aí eu cantando, cantando, cantando, pensa que não, e esse menino começa a dançar. E eu falei: 'oxe'. Doidera, velho, mais desenrolado que eu, mil vezes. Então a estrada e os palcos têm essa parada de serem sempre incertos.

Qual foi o show mais emocionante nesse pequeno grande um ano que você viveu? Com certeza foi Caruaru.

E por quê? Foi doidera, doidera, doidera. Quando eu cheguei ali em Caruaru, eu fiquei: 'caraca velho, tô cantando em Caruaru'. Chega a me arrepiar. Era só isso que eu conseguia pensar. Eu não conseguia mais imaginar nada. Ali já era o troféu, só estar ali. E tipo assim, aquela galera toda pra me ver... Imagina que doidera, aquele pessoal todo tirou a noite pra ir curtir sua festa. E a gente estava fazendo a nossa primeira turnê de São João. E no final fomos eleitos como o melhor show.

E foi por isso que você escolheu Pernambuco para gravar o seu DVD? Foi exatamente por isso que eu escolhi Pernambuco. Esquece qualquer outro projeto, qualquer outra ideia, tinha que ser em Pernambuco. E aí é engraçado... Com todo respeito a São Paulo, mas quando eu estava resolvendo o dia da gravação, conversando onde ia ser, a galera que estava organizando já estava decidida que ia ser em São Paulo. E eu digo: 'não, não dá pra ser em São Paulo. Eu quero ir cantar Lembra, com Fagner, em Pernambuco, eu quero fazer as coisas daquele jeito. Eu quero sentir, a gente nunca mais vai ter essa oportunidade’.

E como foi escolher as participações? A primeira pessoa que pensei foi Vanessa da Mata. Foi minha mãe que me apresentou, quis dar esse presente pra ela. Depois Tarcísio, que muito me ajudou. Então foi assim, pensando em amigos, em quem eu admiro muito.

Fala pra gente 5 músicas que você gosta muito. Retrovisor, Fagner; Roda Gigante, Cacife Clandestino; Eu tenho a senha, João Gomes; Stand By Me, acho que é do Ben E. King, né? Barrados, Edson Gomes, que canta: "ando meio cansado, acredito, em tudo aquilo que faço, e persisto em tudo aquilo que faço". Acho que a quinta pode ser qualquer uma de Edson Gomes, bota aí na rádio pra tocar qualquer uma.

Cinco artistas que admira. Edson Gomes, Edson Gomes, Edson Gomes, Edson Gomes. Primeiro Edson Gomes. Depois vem Belchior e Cartola. Putz, a galera do forró, mas agora que eu conheço os caras eles podem ficar magoados se falar um e não falar outro... Tarcísio do Acordeon e Luiz Mendes.

Cinco músicas para dançar coladinho. Uma noite de frio e solidão, de Mano Walter Antigo. Porra, as do Walter Antigo são as melhores pra dançar. Luiz Gonzaga, Numa Sala de Reboco. Aquela outra de Petrúcio Amorim, que é pra dançar colado, que é "meu sapato pisa no sapato". Cenário de amor, Flávio José. De Flávio José aquela: "Me diga amor como é que vai ficar meu coração". Essas para dançar abraçado são as melhores. Flávio José, Jogo Limpo, um forrozinho pra dançar bem juntinho assim, bem devagarzinho.

Cinco músicas para o seu dengo. Aquelas do Daniel Caeser, que é aquele estilo R&B. Essa é a melhor pra fazer um lovezinho, o cara já canta pro dengo essa, já bota lá pra escutar e o clima já acontece. Deixa eu ver. Planos, BK, essa é linda. Aí tem outra do BK que ele não lançou ainda que é Vou te encontrar. Eu vou cantar um pedacinho, se chegar no BK talvez ele lance. Ele disse que já desistiu, mas é assim: "Mas foi bom te encontrar de novo, sempre orei por você. Mesmo sem te olhar no olho, por você sempre vou torcer. Hoje foi bom te encontrar, bom conversar, saber que tá tudo bem. Estamos bem". Linda essa, dá vontade de chorar. Outra: Samarina, Edson Gomes. Malandrinha. Samarina ela canta assim: "Você já pensou em minha situação, imagine só, como deve estar meu coração, porque não vê, diga logo meu bem, se não vem, olha não vou conseguir ser ninguém". Edson Gomes, as românticas. Ou então Perdido de Amor. Qualquer uma de Edson Gomes romântica já é pra cantar pro dengo, tá ligado?

E cinco livros. Brás Cubas, o primeiro livro que eu li de Machado de Assis. Outro que eu gostei muito foi Quincas Borba, de Machado de Assis também. O Alquimista, de Paulo Coelho. Cartas na rua, o primeiro romance de Bukowski, eu gosto. E Manual do Guerreiro de Luz, de Paulo Coelho, também.

Créditos

Imagem principal: Divulgação/Arquivo Pessoal

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