Ai Weiwei abre no Brasil a maior exposição individual de sua carreira e tira de debaixo da terra da Bahia raízes centenárias que o fizeram desenterrar suas próprias memórias
Ai Weiwei é um rejeitado. Nasceu em 1957 já classificado como inimigo do Estado chinês por conta das posições políticas do pai, viveu ilegalmente em Nova York por mais de dez anos, foi preso e isolado da sociedade em Pequim como consequência dos ácidos posts de seu blog e hoje vive na Alemanha sem falar uma palavra de alemão. “Todos os lugares em que estive me afastavam”, conta.
Ele encontrou na arte a única forma possível de existência. “Temos a liberdade de expressão, mas quase ninguém faz uso dela, porque não sabe como. Não é o que lhes foi ensinado, e isso é um problema grave. Por isso precisamos da arte. Por isso ela é tão poderosa”, defende. Weiwei desenvolveu sua linguagem artística explorando múltiplas vias. Sempre ativista, usa marcenaria, escultura, fotos, vídeos e instalações em obras imponentes e questionadoras, que o transformaram no artista chinês mais famoso de sua geração.
Para a instalação Straight, ele recuperou 164 toneladas de vergalhões de aço dos escombros de escolas chinesas abaladas por um terremoto em 2008. Em Dropping a Han Dynasty Urn, fotografou-se quebrando um vaso de 2 mil anos e fez pensar sobre memória e herança. O vídeo Fuck You, Motherland mostra Weiwei dizendo “foda-se a pátria”. Ele faz do seu Instagram, de suas selfies e de sua própria biografia forças transformadoras.
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Sem se firmar em solo nenhum, o artista, hoje com 61 anos, passa enorme parte de seu tempo viajando, se misturando com culturas e artistas de diferentes origens. O chinês já participou de mais de 400 exposições pelo globo e, no último dia 20 de outubro, inaugurou no Brasil a maior mostra individual de sua carreira: Ai Weiwei Raiz, que reúne 70 obras (muitas delas feitas para a exposição) nos 8 mil metros quadrados da Oca, no parque Ibirapuera, em São Paulo. Tendo como guia a designer Paula Dib, o artista fez imersões em comunidades brasileiras e produziu peças inéditas com sementes, tecidos e referências locais. Em sua mais recente passagem pelo Brasil, Weiwei participou do segundo evento do Trip Transformadores 2018 para discutir uma questão latente: conviver é possível? Ao lado do curador de sua exposição, Marcello Dantas, ele trocou ideias sobre arte, liberdade e repressão em uma conversa aberta e gratuita que rolou na biblioteca do parque Villa-Lobos no dia 17 de outubro.
“Somos dois taurinos filhos de Xangô. A gente se entende em um nível mais espiritual, somos muito parecidos”, conta o curador. A relação entre os dois começou em 2011, ainda antes da prisão do chinês, quando Dantas começou a sondar o artista para um imersão no Brasil. Mas foi só em 2015, quando Weiwei recuperou seu passaporte, que os dois se conheceram pessoalmente e começaram a tirar o papel os planos que deram origem à exposição brasileira.
Enraizado
Dantas chamou de “mutuofagia” a maneira intensa como o artista se alimentou da cultura brasileira e como o país o acolheu. A série de obras que deu nome à exposição simboliza essa relação. Estão espalhadas pela Oca trabalhos feitos a partir de raízes centenárias do pequi-vinagreiro, espécie de árvore típica da Mata Atlântica baiana, atualmente em risco de extinção, desenterradas em Trancoso. “Faz muito tempo que presto atenção nas raízes das árvores. Quando eu era criança, tinha de apanhar raízes no deserto de Gobi. Pegava-as, limpava a areia e as colocava na minha sacola. A forma como elas se empilhavam era muito bonita, parecia uma escultura minimalista. Toda minha aldeia se orgulhava muito do que tínhamos ali. Demonstrava o nível estético da família.”
Buscar suas próprias raízes foi o que manteve a cabeça de Weiwei sã nos 81 dias de reclusão na China. “Concluí que não sabia nada sobre meu pai.” Mas ao tirar o pó das próprias raízes, percebeu algo além. “Antes, eu era só. Sou como um lobo louco, andando na natureza. Depois da prisão, pensei que talvez devesse agir melhor com meu filho. Tentei estabelecer algo, mas isso é só a intenção. Mas ela é importante. Tudo vem da intenção, ou da falta dela...”, conclui.
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Entre os movimentos de mastigar o Brasil e ser mastigado por ele, Weiwei conversou longamente com Dantas, em um diálogo que reforça o que o louco lobo mais vibra em suas obras: a necessidade de nos responsabilizarmos uns pelos outros. “Tenho uma vida relativamente feliz e confortável, mas ao considerar que sou parte da sociedade, se não for responsável e manifestar opinião, a sociedade inteira pode se corromper.” A seguir, você lê uma edição do papo do artista e seu curador para o catálogo da mostra brasileira, entre trechos da conversa da dupla em evento do Trip Transformadores 2018, no mês passado.
Por Nathalia Zaccaro
Marcello Dantas. Então, Weiwei, remontemos aos começos. Quais são suas lembranças mais remotas da China, antes da Revolução Cultural?
Ai Weiwei. Nasci em 1957. Nesse ano, meu pai foi expurgado como “direitista”. Cerca de 300 mil outros intelectuais, todos acusados de serem “direitistas”, também foram castigados – em geral enviados a campos de trabalhos forçados. Mao Tsé-Tung queria se livrar de todos os intelectuais, de todas as pessoas com opiniões diferentes. Os totalitários não podiam tolerar a dissidência. Nasci oito anos depois do estabelecimento da República Popular da China. Meu pai foi enviado ao nordeste no primeiro ano, perto da fronteira com a Coreia. Mais tarde, foi exilado na província de Xinjiang, no noroeste da China.
Você foi com ele? Sim. Vivia com ele no campo de trabalho. Sua situação não era tão ruim, porque havia um general que o protegia. Mas quando teve início a Revolução Cultural, ninguém mais ficou seguro, nem mesmo esse general. Meu pai foi enviado a uma aldeia bem distante. Foi submetido a trabalhos forçados, a limpar sanitários públicos, sem água nem papel higiênico. Foi um período muito difícil, os anos da Grande Fome na China. A maioria das famílias se desfez. Mas minha mãe foi muito corajosa, ficou todos aqueles anos do exílio ao lado do meu pai. Na época eu era recém-nascido. Comecei a ir à escola aos 6 ou 7 anos, mais ou menos, na época da Revolução Cultural, mas ela ficou fechada por um tempo. Fomos enviados às zonas rurais e às oficinas, para aprender com os agricultores e os trabalhadores.
Como esse contexto impactou sua relação com seu pai? Como meu pai estava numa situação muito deprimente, não tínhamos muita relação. Não me lembrava de ele me segurar no colo até que dei com uma fotografia dele fazendo isso. Quando fui preso em 2011, tentei lembrar tudo que tinha acontecido comigo – da primeira a mais recente lembrança – porque não tinha mais nada a fazer. Repassei minha vida inteira, tudo. Cheguei à conclusão de que não sabia nada sobre meu pai. Tínhamos passado mais de 20 anos juntos e nunca lhe fiz nenhuma pergunta. Eu via seu comportamento, mas não sabia o que se passava em sua cabeça ou quais eram suas emoções. Sempre falava de poesia e gostava de recitar poemas de memória, mas nunca contava do que havia sofrido. Me arrependo de não tê-lo interrogado mais.
Há um personagem central nessa viagem que você está fazendo ao redor do mundo. Acho que esse ele não é você: é Ai Lao, seu filho. Estou certo? Antes, eu era só. Sou como um lobo louco, andando na natureza. Depois da prisão, pensei que talvez devesse agir melhor com meu filho. Aí, comecei a registrar o que eu tinha feito, para que mais tarde ele não sentisse que não me conhecia. Tentei estabelecer algo, mas isso é só a intenção. Ele tem a vida dele. Mas a intenção é importante. Tudo vem da intenção, ou da falta dela... [Risos.]
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Falemos da sua prisão. Como aconteceu? Fui detido no aeroporto Internacional de Pequim-Capital em 3 de abril de 2011. Sabia que cedo ou tarde isso acabaria acontecendo, mas não sabia quando, nem onde ou como. Vivia em Pequim e escrevia abertamente em meu blog sobre todo tipo de assunto. Nunca tive um segredo, era uma discussão pública. Eles podiam ter me arrancado de casa a qualquer momento, mas não o fizeram. Detiveram-me quando eu estava passando pela alfândega, puseram um capuz preto na minha cabeça e me transportaram a um lugar secreto. Durante minha detenção, interrogaram-me mais de 50 vezes sobre minhas atividades políticas e sociais.
Como foram seus dias lá? Liam os posts de meu blog para mim e me perguntavam se o que eu tinha escrito era subversão contra o poder do Estado. Meus textos eram bastante duros, eu dizia que o governo devia ser derrubado. Eram minhas palavras e minhas crenças. Discutimos muito e foi terrível, porque eu estava confinado numa sala sem janelas, com dois soldados a um metro de mim o tempo todo, mesmo enquanto eu dormia. Nem os soldados nem eu podíamos nos mover. Era muito duro, eles trocavam os guardas a cada duas horas. Fui mantido nessa condição psicológica por 81 dias.
Como era a rotina no confinamento? Quando eu precisava ir ao banheiro, eu pedia e eles diziam “sim”. Então eu me levantava e eles caminhavam comigo até o banheiro como dois robôs. Se eu dizia que precisava urinar, eles diziam “sim” e eu podia urinar. Quando terminava, dizia que tinha acabado, eles diziam “sim” e eu lavava as mãos. Quando dizia que tinha terminado de lavar as mãos, eles diziam “sim” e eu me sentava de novo. Não havia nenhum outro prisioneiro comigo, eu estava sozinho em isolamento. Era essa a ideia, me cortar completamente da realidade. Eu tinha alguma noção do tempo por causa das refeições, hora do almoço e hora do jantar. Cada refeição durava oito minutos.
Depois, ainda passou alguns anos numa espécie de prisão domiciliar, não é? Sim, vivi sob uma detenção branda. Durante os quatro anos seguintes à minha libertação, não tive permissão para sair da China. Meu passaporte foi confiscado e só o devolveram em 2015.
Uma vez você me disse que o governo chinês te deu um presente, que foi o tempo que você passou no seu estúdio, em Beijing, sem poder viajar e se concentrando no seu trabalho. Qual é a sua relação com essa imagem hoje? Aquele momento foi muito difícil, me sentia triste. Não podia ir às minhas exposições ou para qualquer outro evento, mas, quando olho para trás, percebo que foi um momento bonito. Eu era forçado a estar longe, a estar deslocado. Minha atividade era trabalhar duro e essa é uma posição muito singular, as pessoas te dão muito apoio. Isso me fez muito famoso. De certa maneira, se isso não tivesse acontecido, eu não seria tão famoso.
Passemos a outra parte da sua vida. Antes da prisão, na década de 80, você viveu em Nova York. Que importância teve esse período? Bem, digamos que, se considerarmos o que estou fazendo hoje, pode-se pensar que foi ou irrelevante ou a coisa mais importante do mundo. Adquiri toda minha formação e experiência em arte contemporânea durante os 12 anos em que vivi nos Estados Unidos, principalmente em Nova York. Eu ia a todas as exposições em museus e galerias, mas estava sozinho. Comecei a trabalhar e não renovei meu visto de estudante, permanecendo assim, durante sete anos, um imigrante ilegal. Nunca fiz o menor esforço para me tornar cidadão norte-americano ou me estabelecer no país. Não queria fazer nada; era uma espécie de vagabundo. Tinha que pagar o aluguel do meu sótão e passava o tempo perambulando, o que pode ser algo fundamental, mas também poderia ter desperdiçado minha vida. Em 1993, depois de 12 anos, voltei a Pequim para ver meu pai; ele estava doente e havia sido hospitalizado.
Quando seu pai morreu? Morreu em 1996, três anos depois de meu regresso à China. Nesse período, como não tinha nada para fazer, passava muito tempo no mercado de antiguidades. Aquelas coisas me fascinavam, porque eram uma parte da história que nunca nos haviam ensinado. Durante a Revolução Cultural, as antiguidades eram destruídas e ninguém podia falar do passado. Eram condições de vida muito difíceis, mas a China estava em processo de abertura. Tornei-me um especialista em antiguidades chinesas de todas as eras e categorias. Esses seis anos depois de meu regresso à China foram um período de formação igualmente importante. A única coisa que eu fazia todos os dias era ir à feira de antiguidades e observar milhões de objetos. Treinei meu olho e tornei-me um especialista.
E quando começou a produzir seus primeiros trabalhos? Comecei a fazer algumas obras por diversão, que são essas primeiras peças de mobiliário. Comecei a clandestinamente editar e publicar livros sobre arte chinesa, porque não existiam galerias, nem museus, nem arte contemporânea. A arte contemporânea era vista como uma conspiração do Ocidente. Publiquei livros para documentar, circular e proporcionar uma plataforma para os jovens artistas. Em 2000, organizei a exposição Fuck Off, que foi uma mostra muito agressiva. Apresentava mais de 40 artistas de toda a China, com obras ainda hoje consideradas polêmicas. Eu fazia curadorias e publicava livros, mas nunca pensei em fazer meu próprio trabalho, porque sentia que não poderia sobreviver nessa sociedade censurada.
Como isso mudou? Eu estava promovendo a cultura contemporânea em seus primeiros estágios e isso exerceu grande influência. Muitos jovens expunham em minha galeria e muitos outros vinham ver os trabalhos. Minha primeira exposição de arte foi em 1999. O curador, Harald Szeemann, veio a Pequim em 1998 para ser jurado do Prêmio de Arte Contemporânea da China. Eu havia participado como júri em suas três primeiras edições, que foi como conheci Szeemann, que também era curador da Bienal de Veneza de 1999 e estava selecionando artistas para a mostra. Antes de partir, ele me propôs ir ver meu trabalho. Eu disse que não tinha muita coisa para mostrar, mas ele insistiu em fazer uma visita ao meu ateliê, onde havia duas obras minhas. Não gosto de mostrar meu trabalho. Se você visitar meu ateliê hoje, não verá nenhuma obra. Harald viu os dois trabalhos – um era uma peça de mobília consistindo em duas mesas cerimoniais combinadas em forma de cruz e o outro, uma série de fotografias da lua – e disse: “Você deveria mostrar isso em Veneza”. Fiquei muito contente; ele tinha visto apenas dois trabalhos meus, e sou grato por ele ter me entendido tão bem.
E como foi a experiência lá? Fui a Veneza para montar minha exposição, mas um dia antes da abertura fui embora, pois sentia que não pertencia ao mundo da arte. Fotografei meu braço e o dedo esticados na Piazza San Marco em Veneza, depois na torre Eiffel, em Paris, e em outros lugares. Assim foi meu começo. Em 2004, fiz minha primeira exposição individual no Kunsthalle de Berna [Suíça] e dali em diante não parei. Até hoje, fiz mais de cem exposições individuais e participei de 300 ou 400 mostras coletivas.
Você estudou cinema, certo? E praticou arquitetura em Pequim durante muito tempo. Como a arte chega a você ou como a arte sai de você? Ser artista não é uma escolha natural. Para ser um pintor ou escultor, é preciso desenvolver algumas habilidades, mas minha relação com a arte começou com a poesia, pela influência de meu pai. Eu gostava de seus livros e estantes antes mesmo de saber ler. Aprendi cinema, mas o cinema é uma arte privilegiada demais. Você precisa de equipamentos e tem de conhecer muitas questões técnicas, e isso não me interessa. Gosto de assistir a filmes, mas fazer cinema é diferente. A arquitetura é um ato muito natural. Eu sabia como fabricar coisas desde muito cedo, pelas condições difíceis em que vivíamos.
Quem foi o artista que lhe fez querer ser artista? Nenhum artista me fez querer ser artista. Quando cheguei a Nova York, li meu primeiro livro de arte, A filosofia de Andy Warhol: de A a B e de volta a A. Sua linguagem era muito divertida e gostava de sua atitude. Depois li sobre Jasper Johns e, através dele, descobri Marcel Du— champ. Olhava Duchamp e pensava: “Sinto que essa é a arte a que pertenço”. Numa entrevista, ele havia declarado que era mais influenciado pelos poetas. Ele gostava de poesia e da linguagem e odiava as pinturas planas, assim como eu. É por isso que não vou mais a museus. É uma atitude que tem a ver com um modo de ver o mundo e uma forma de se expressar. Ele foi um comunicador muito bem-sucedido, e o admiro muito.
Sabemos de sua preocupação com os refugiados. Como isso se dá? Ainda observo a humanidade. Os refugiados são o reflexo de uma condição política e social mais ampla. Se permitimos que bombas nucleares continuem a existir, isso quer dizer que nossa racionalidade e inteligência têm problemas críticos, porque sabemos que essas armas matam indiscriminadamente um incontável número de pessoas. Estamos no século 21. Não podemos permitir que essas coisas existam, mas ninguém discute isso.
Há saída? Nem os políticos, nem os chamados especialistas, nem as agremiações políticas – de direita e de esquerda – foram capazes de chegar a um acordo para destruir essas armas. A existência da bomba nuclear é uma mostra de nossa estupidez; de como somos primitivos – de que, na realidade, nunca nos tornamos civilizados. É um crime permitir que um país invada outros países, independentemente das razões, ou permitir que os países vendam armas por bilhões de dólares a outros. É um crime absoluto, um crime contra a humanidade. Como indivíduo, não preciso de tudo isso para viver. Tenho uma vida relativamente feliz e confortável. Mas ao considerar que você é uma parte da sociedade, se não for responsável e manifestar sua opinião, a sociedade inteira pode se corromper e arruinar as vidas dos outros. As gerações futuras serão postas numa situação cada vez mais difícil por causa dos fracassos da nossa geração.
Você é um refugiado? Ser um refugiado significa que, onde quer que você esteja enraizado, ou é afastado, ou forçado a ir para outro lugar ou em outra direção. Somos todos refugiados. Certos momentos são mais extremos, ao passo que em outros não nos damos muito conta disso.
Hoje você mora na Alemanha. Por que decidiu ir morar lá? Se eu realmente calculasse minhas decisões, nunca teria me tornado quem sou. Acho que tenho uma atitude vencedora, chamaria assim, com relação a mim mesmo. Eu apenas não calculo muito. Eu não falo alemão, ainda hoje não consigo dizer para um motorista de táxi qual é o meu endereço. Como não falo, não tenho a vida social. Fico no meu estúdio o tempo todo. Isso me dá uma condição perfeita para dizer a mim mesmo que estou trabalhando.
A percepção que se tem de você é complexa. Por um lado, seu nome está banido na China, por outro, é reconhecido pelos jovens em qualquer lugar que vá, é aclamado no mundo todo. Como se sente com isso? A que lugar você pertence? Isso me dói muito. Na minha vida toda, fui – e ainda sou – rejeitado. Já quando nasci, era filho de um inimigo do Estado. As pessoas nos olhavam como as piores criaturas da terra. Em Nova York, eu era um estrangeiro. Não tinha muito a comemorar numa sociedade que abraçava o capitalismo e o materialismo. De volta à China, era de novo um estrangeiro, porque estava num país que esmagava qualquer sinal de humanidade, onde não havia liberdade de expressão e com um histórico terrível na questão dos direitos humanos. Todos os lugares em que estive me afastavam e, como resposta, rejeitei esses lugares com minha própria consciência. Depois, com a internet, tive a oportunidade de me expressar e o fiz com muita paixão. Meu blog era um microcosmo do tipo de mudança que era possível; havia uma ilusão de mudança graças a um breve período de liberdade de expressão. Mas, subitamente, meu blog foi encerrado e ainda hoje meu nome é proibido na internet chinesa. O governo viu o potencial do que um indivíduo poderia realizar.
Tem uma coisa que me surpreende quando você fala de liberdade de expressão: como a vigilância em nossas vidas afeta nossa liberdade de pensamento? Como seres humanos, nascemos com emoções e com a capacidade de aprender, mas estas são destruídas principalmente pela escola e pelo que definimos como socialmente aceitável. A sociedade impõe todo tipo de padrão. As pessoas vivem com medo, e o medo é a ferramenta mais útil em nossa sociedade. Nos portamos bem porque temos medo; é da natureza humana. Temos a liberdade de expressão, mas quase ninguém faz uso dela, porque não sabem como. Não é o que lhes foi ensinado, e isso é um problema grave. Por isso precisamos da arte. É uma forma de liberdade de expressão que não existia antes, e que chamamos arte. Se já existia, não é arte. A arte é contra a repetição. Consiste em nos guiar a formas mais arriscadas de experimentar e de nos expressar. Por isso a arte é tão poderosa.
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Qual é sua relação com o mercado de arte? Minha relação com o mercado de arte é parecida com minha relação com o mercado do peixe ou com o mercado de ações. É uma coisa completamente insana. Você não cria algo para ser vendido, mas tem de ser parte desse mercado, porque há certa expectativa e é preciso vender para sobreviver. Esse mercado também pode me beneficiar, porque posso usar o dinheiro para criar mais obras, o que é o único lado positivo disso.
Que sentimentos sua primeira viagem à América Latina lhe provocou? Para mim, a América Latina ainda é como o romance de García Márquez Cem anos de solidão. É realismo mágico. As coisas parecem reais, mas há algo fantástico no ar. A natureza, as pessoas e a maneira como elas entendem o tempo e o espaço são muito diferentes de uma sociedade industrializada. Acho que a cultura latino-americana é muito rica.
Você veio pela primeira vez ao Brasil há um ano, e depois disso já passou por aqui umas quatro ou cinco vezes. Sua impressão se modificou no decorrer desse período? Minha experiência na América Latina consiste na realização, como você mesmo definiu, de uma “mutuofagia”. Tenho que dar uma mordida; tenho que comer o fruto aí, ver as obras desses artistas, trabalhar com os carpinteiros e ver o que é possível, examinar a política e as questões locais. Essas coisas formam ‘Ai Weiwei no Brasil’ e isso é uma parte de mim. Se não tiver essas experiências, não terei essa parte de mim e não teria uma desculpa persuasiva nem mesmo para fazer uma exposição de arte aí. O que é a arte? Para mim, ela está no processo. A partir dele, descobrimos uma parte nossa, que poderia ser uma habilidade ou uma deficiência, alguma incapacidade. A gente começa a compreender como os problemas podem levar a áreas desconhecidas.
Você poderia falar um pouco de alguns dos trabalhos que desenvolveu aqui? Como você chegou, por exemplo, a Raízes? Faz muito tempo que presto atenção nas raízes das árvores. Quando eu era criança, aos 8 ou 9 anos, a idade de Ai Lao, meu filho, tinha de apanhar raízes no deserto de Gobi. A árvore estava morta havia milhares de anos, mas havia algumas raízes sob a areia. Pegava— as, limpava a areia e as colocava na minha sacola. Levávamos para casa para usar como aquecimento. O inverno é muito longo lá. Naquela época, morávamos num subterrâneo. Do lado de fora, havia uma grande pilha de raízes. Todos os dias, depois da escola, eu ia ao deserto pegar as raízes. A forma como elas se empilhavam era muito bonita. Toda minha aldeia se orgulhava muito do que tínhamos ali. Demonstrava o nível estético da família. Demonstrava que a família tinha a força de trabalho para pegar e cuidar bem daquelas raízes. Tínhamos muito orgulho disso. O deserto não tem árvores, somente raízes de árvores que morreram há centenas ou milhares de anos, muito tempo atrás. Como é seco, não apodrecem. Não víamos árvores, mas víamos um monte de raízes. O Brasil é um paraíso para as raízes e para a madeira. Mesmo em muitos trabalhos que fiz na China, usei madeira do Brasil. Sempre sonhei que um dia teria a chance de ir ao Brasil. Depois que cheguei, estávamos discutindo sobre fazer trabalhos com raízes, o que faz sentido. O resultado é inacreditável.
Quais são as coisas que ainda te tocam? As coisas pelas quais você luta? Acho que só queremos lutar por algo quando vemos uma circunstância que nos faz sentir que se não fizermos alguma coisa, teremos vergonha de nós mesmos. Não vou conseguir me olhar no espelho se não responder certas perguntas, se não assumir a minha responsabilidade. Mas se não estivermos enfrentando esse tipo de circunstância, sempre podemos ter a ilusão e pensar: o mundo é assim mesmo.
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Imagem principal: Bob Wolfenson