Ao longo dos séculos, milhões de chineses se espalharam pelo mundo buscando a paz ou oportunidades. Fomos a quatro Chinatowns para ouvir as histórias de quem mora ou trabalha lá
Uma jornada de mil milhas começa com um único passo, diz o provérbio chinês. Ao longo da história, milhões de chineses levaram o ditado ao pé da letra e colocaram o pé na estrada. O fenômeno, conhecido como diáspora chinesa, fez do país o ponto de partida do maior contingente de imigrantes do mundo. Segundo os últimos dados, de 2010, mais de 45 milhões de chineses e seus descendentes vivem no exterior, principalmente no sudeste asiático.
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No Brasil, os primeiros habitantes chineses chegaram ainda nos tempos de Dom João VI e Carlota Joaquina, em 1812. Desembarcaram no Rio de Janeiro incumbidos do cultivo de chá na então colônia portuguesa. Mas na letra da lei brasileira, a data oficial do início da imigração chinesa acontece bem depois, em 15 de agosto de 1900, quando o navio Vapor Malange atracou no porto do Rio de Janeiro. Seus 107 passageiros seguiriam para a Hospedaria dos Imigrantes, na cidade de São Paulo. Hoje, 250 mil chineses e seus descendentes vivem aqui; nos Estados Unidos, são 2,5 milhões.
De fins do século 19 até a revolução de 1949, que levou Mao Tsé-Tung ao poder, as ondas de migração chinesa foram principalmente provocadas por turbulências internas, entre conflitos, fome, miséria e invasões estrangeiras. Após a Guerra do Ópio, confronto entre o atual Reino Unido e a dinastia Qing, que ocorreu entre 1839-1842 e 1856-1860, mais de 10 milhões de chineses deixaram suas casas.
Documento na mão
Na década de 1950, sob o regime de Mao, foi instaurado um tipo de passaporte interno, o hukou, para controlar o fluxo de habitantes entre cidade e campo. O hukou ainda vigora dentro do território chinês, mas as políticas de imigração foram afrouxadas a partir da abertura do país na década de 1970. O perfil, dessa vez, era diferente das primeiras ondas: apenas entre 1984 e 1985 foram emitidos mais de 11 mil vistos de negócios e 15 mil vistos de estudantes para cidadãos chineses irem aos Estados Unidos.
Hoje, cerca de 120 milhões de chineses possuem passaporte, o que corresponde a apenas 8,7% da população do gigante asiático. Mas, como são muitos, os turistas chineses fizeram 149 milhões de viagens ao exterior em 2018, injetando US$ 130 bilhões na economia dos países de destino.
Dos primeiros camponeses aos mais excêntricos executivos, os imigrantes chineses não param. Maiores viajantes do mundo hoje, eles vão emendando passos para a simbólica jornada de mil milhas, muitas vezes, longe de casa.
A Trip visitou Chinatowns em Londres, Nova York, Los Angeles, Curitiba e São Paulo para ouvir de chineses que deixaram seu país para trás o que buscavam na nova vida.
Curitiba
O centro antigo da cidade concentra bares, restaurantes e mercados de imigrantes chineses e é ali que Tom Woo, 51 anos, trabalha há 30 anos. Ele é dono de uma lanchonete e conta com a ajuda da mulher brasileira, com quem tem dois filhos, para atender os clientes. O comércio de Tom é um dos poucos que atravessam as madrugadas curitibanas. “Minha rotina é só trabalho. Me divirto jogando bola e mais nada”, diz.
Como você veio parar em Curitiba?
Tom Woo. Meu tio, que chegou de navio ao Brasil e já estava em Curitiba, convenceu meu pai de que o país seria uma boa oportunidade para um dos seus filhos. Família pobre, com quatro filhos, era eu ou meu irmão. Quando cheguei, trabalhei por três anos na lanchonete do meu tio para pagar os custos da viagem e da documentação que ele bancou.
Há quanto tempo está na cidade? Há mais de 40 anos.
Do que mais sente falta da China? Não me lembro muito dos tempos antes do Brasil. Criança não lembra e nem sente muita coisa.
Pensa em voltar para lá algum dia? Pensar todos pensam, mas já estou acostumado com o Brasil.
Nova York
Enquanto a população chinesa de Nova York cresceu mais de 70% desde 2000, a da Chinatown de Manhattan está 30% menor, aponta o censo local. Ali, boa parte dos chineses não fala inglês e os quarteirões costumam concentrar pessoas de uma mesma região da China. Grace Chen, de Hong Kong, trabalha há cinco anos em um loja vendendo leques e hashis (as varetinhas que os chineses usam como talheres).
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Como você veio parar em Nova York?
Grace Chen. A convite dos meus pais, que já estavam em Nova York.
Há quanto tempo está na cidade? Há 22 anos.
Do que mais sente falta da China? Da comida e de alguns locais da minha região, Hong Kong.
O que foi bom deixar para trás? O trânsito.
O que você não tinha na China e valoriza ter em Nova York? Clima bom [em Hong Kong, o verão é bastante chuvoso].
Pensa em voltar para lá algum dia? Não.
O que você fazia na China? Estudava.
São Paulo
Ainda que o bairro da Liberdade seja tradicionalmente conhecido por reunir imigrantes japoneses, não faltam chineses na região. Eles chegaram ali a partir dos anos 90 e são donos de comércios e restaurantes no entorno da Praça da Liberdade. Proprietário de uma loja de produtos de beleza, Weigen Liao, 31 anos, é um deles. No Brasil há dois anos, adotou o nome de Ricardo e ainda não conseguiu aprender português. Suas duas funcionárias brasileiras traduziram nossa conversa com ele.
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Como você veio parar aqui?
Weigen Liao. De avião. Vim trabalhar com meu irmão, que também tem uma loja de produtos de beleza, na rua 25 de março [centro de São Paulo].
Há quanto tempo você está em São Paulo? Há dois anos.
O que você fazia na China e por que escolheu São Paulo para viver? Fazia bolos. Vim para São Paulo porque consigo ganhar melhor. Também gosto muito das praias do Brasil. Aqui tudo é melhor! [risos]
Do que mais sente falta da China? Da mamãe e do papai.
O que foi bom deixar para trás? O trabalho.
Pensa em voltar para lá algum dia? Sim, mas só a passeio e para visitar a família.
Londres
Marinheiros e comerciantes chineses se instalaram no leste londrino a partir do século 18, mas pouco sobrou da área depois da Segunda Guerra Mundial. Foi na década de 60 que imigrantes vindos de Hong Kong (então território britânico) chegaram à cidade, abrindo restaurantes e ajudando a formar ali a maior Chinatown da Europa. É nessa região que Jack Peng, 34 anos, mantém uma tenda. Ao lado de outros chineses, ele colhe assinaturas para buscar apoio do governo britânico para o falun gong – uma polêmica prática que mistura meditação e exercícios, proibida na China.
Como você veio parar em Londres?
Jack Peng. Vim estudar para o mestrado em engenharia mecânica. Sou adepto do falun gong, uma prática chinesa de autocultivo baseada na verdade, compaixão e tolerância. Infelizmente, seus praticantes são duramente perseguidos e torturados pelo Partido Comunista da China. Tudo porque o ditador Jiang Zemin [que deixou o poder em 2003] estava com ciúmes da popularidade do movimento e tinha medo de perder o controle da mente e do coração das pessoas. Estou feliz por ter liberdade para praticar o falun gong e protestar pelos direitos humanos no Reino Unido.
Há quanto tempo está na cidade? Há sete anos. Desde então, não voltei mais à China.
Do que mais sente falta do país? Da minha família.
O que você não tinha na China e valoriza ter aqui? Liberdade de expressão.
Créditos
Imagem principal: Pedro Arieta