O repórter Décio Galina encara o desafio de dormir duas noites nas geladas ruas de São Paulo
Só existe uma coisa pior do que não ter nada e dormir ao relento: fazer isso em uma cidade onde o dinheiro é praticamente tudo e que prefere não enxergar seus excluídos. Para tentar entender como vivem esses "homens invisíveis", encarei o desafio de dormir duas noites nas ruas geladas de São Paulo. Realmente não esperava chorar. Mesmo agora, um dia depois, acho difícil identificar a gota d'água que me levou às lágrimas. As cerca de 50 pessoas que me rodeavam também estavam contentes, mas não soluçavam de emoção como eu. Afinal, para todos ali, era mais uma sexta-feira gelada como tantas outras. Fogueira queimando no meio da praça. Homens ocultos sob cobertores. Gente enfileirada sob a marquise. Cheiro de urina. Lixo esparramado. A turma mandando ver na sopa, no bolo doce, no chá e no salgadinho, que não é sempre que aparece. Quase um clima de festa. Quase. Não sobram muitos sorrisos. Percebe-se a alegria no olhar das pessoas, nas colheradas rápidas, na boca próxima à tigela de plástico, no corpo que se aquece por dentro, nas histórias contadas em breves fragmentos, muitas vezes incompreensíveis. Crianças correm pra cá e pra lá, cachorros rodam soltos, e uma pequena fila (que nunca acaba) se forma em frente à Kombi que distribui as refeições. Festa mesmo só no outro canto da praça, onde casacos bem alinhados fazem taças tilintar nas sacadas da secular fachada da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Cada um se diverte como pode nos dois lados do largo São Francisco.
Kombi da esperança
Essa era minha segunda noite ao léu. Segunda noite que sentia na pele o que é não ter casa para voltar, albergue para dormir ou dinheiro para calar o ronco do estômago. Tinha que ficar na rua e arrumar um jeito de comer. Carregava uma sacola do supermercado Futurama com cobertor, caneta e uns pedaços de papel para anotar algumas frases que não podia deixar escapar - o que fiz com eficiência apenas no primeiro dia, pois, no segundo, o sono acumulado deu uma forte dor de cabeça, embaralhou as idéias e me enjaulou em outro patamar, uma espécie de universo paralelo, um lugar, aliás, onde sobrevivem os moradores em situação de rua e os mendigos, pessoas que às vezes nem enxergamos, confundimos com sacos de lixos, ignoramos. Homens invisíveis.
Não participei do rango coletivo no largo São Francisco. Às dez e meia da noite, já estava de barriga cheia. Na verdade, comecei a noite aguardando comida no largo, mas nada de a Kombi encostar. Faminto, não agüentei esperar. Saí batendo perna pelo centrão de São Paulo atento a outras doações de alimento. Fui para o Pátio do Colégio. De novo, nada. Pernas fracas, pensamentos confusos, desânimo, sono. A última vez que cochilei alguns minutos tinha sido na missa das 18h do Mosteiro de São Bento, um dos meus locais prediletos na cidade. Além de achar o lugar lindo e de adorar ouvir os monges cantando em latim, busquei abrigo na igreja também para secar um pouco a roupa: havia passado o fim da tarde de sexta-feira sentado no meio do viaduto do Chá, sob garoa, inerte, com a visão embaralhada pelos passos apressados da multidão em busca do fim de semana. Ninguém me via.
Do Pátio do Colégio, cambaleei para a praça da Sé e. batata! Antes de localizar onde estava o veículo que fazia a doação, reparei em vários moradores de rua com uma marmita metálica - sinal de comida por perto. Achei o carro, entrei na pequena fila e não contive o sorriso quando senti o calor do fundo da marmita esquentar minha mão.
Como não havia talher, improvisei uma colher com a tampa - algumas vezes, no entanto, foi mais prático comer com a mão mesmo, compactando o arroz e o feijão com o purê. Bati papo com a turma da Sé. É no começo da noite que começa a rolar o trabalho da prefeitura de organizar os pretendentes às vagas nos albergues. Tem quem goste, tem quem evite, tem quem reclame da lentidão do processo. "Comigo não tem essa história de não poder sair do albergue quando eu quiser. Já fugi duas vezes da principal cadeia de Recife, não é um albergue que vai me deixar preso e dizer o que posso fazer", conta um senhor com o gorro do Corinthians.
Alimentado, parti para o largo São Francisco e deparei com o pessoal tirando a barriga da miséria. Não resisti e peguei um bolo para fazer uma boquinha mais tarde. Troquei uma idéia com Eugênio, camarada que vi na noite anterior, e segui para o local onde encararia outra madrugada. Impressionante como em apenas duas noites cruzei, em lugares diferentes, gente conhecida nas 40 horas que passei ao relento. Antes de falar sobre a segunda madruga, porém, melhor contar como tudo começou, quando cheguei ao viaduto Condessa de São Joaquim, próximo à estação Liberdade do metrô. Foi ali, às oito da noite, que entrei na fila para comer minha primeira sopa doada por grupos de assistência social. Foi ali que tive o prazer de conhecer Dirceu.
Nariz de suíno
"Não dá pra fugir deste planeta. Aqui é a nossa prisão perpétua. Não adianta inventar essa história de disco voador - não há como escapar. Só se sai da Terra entrando em óbito. Isso aqui é o inferno." Dirceu, um senhor de seus 50 e tantos anos, diz o que diz com certeza. Não lhe resta dúvida. Sentado numa mureta, ele apenas observa de longe a fila que se forma com moradores de rua no viaduto que passa sobre a avenida 23 de Maio. Pergunto onde é seguro dormir nas redondezas. "Está vendo aquela árvore?", responde Dirceu. "Pode dormir ali embaixo. Se a sua consciência estiver tranqüila, limpa, você consegue dormir em qualquer lugar. Nem a chuva atrapalha." E por que você deixou a família para viver na rua, Dirceu? "Não quero saber do dinheiro deles não. Também não quero saber dos meus filhos, que não dão a mínima para mim e só fazem besteiras, aconselhados pela mãe deles e pela minha mãe. Não dá pra entender o que meu pai, descendente de italiano e português, foi fazer com aquela nordestina. É uma família complicada. Querem me convencer que nariz de suíno é tomada."
Dirceu só acredita naquilo que vê. A essa regra, abre apenas uma exceção: Deus. "Ele eu não vi. Mas ouvi. Foi quando entrei em óbito, em 1999, após ser atropelado por um ônibus. Ele quis que eu voltasse pra cá. Quando acordei, a médica disse que eu fiquei em coma por uma semana. Nem contei pra ela essa história de Deus porque ela não ia acreditar. Sabe como é médico. pior do que advogado. Estou contando porque você está na rua como eu, e não tenho por que ficar inventando essas coisas." Poucos minutos na fila e chega nossa vez de nos servirmos de uma sopa deliciosa, com pedaços de carne de vaca, de frango, legumes e muito bem temperada. "A melhor sopa da semana", crava um amigo do Dirceu. "Só faltou a caipirinha." Para comer, voltamos à muretinha, que recebe a visita de baratas a todo instante. Cuidado com a barata, Dirceu!, alerto, me levantando com nojo da cena.
"Barata não faz nada, rapaz. Você tem que temer é o ser humano." Explico que não tenho muita experiência de rua,
e Dirceu me dá outra lição de como conseguir uns trocados:
"O quilo da latinha sai por R$ 2,80 ou R$ 3. Pra juntar um quilo você tem que achar umas 67 latinhas, mas o problema é que tem muita gente fazendo isso em São Paulo, então você anda quilômetros e quilômetros.".
Despeço-me de Dirceu e sigo pela avenida Liberdade, sentido praça da Sé. Encontro outro grupo de moradores de rua amontoados num canto da calçada e colo pra saber o motivo. "Estamos esperando uma marmita", responde Dimas. Aproveito pra perguntar se é limpeza dormir pela região. "Se você não está devendo nada, não tem com o que se preocupar. Você dorme aqui e amanhece aqui, mas eu estou mais acostumado com o Tatuapé, então vou andando até lá." Dimas está na rua há 12 anos, desde que perdeu seu barraco na Justiça para a ex-mulher. "Tenho família, mas não agüento ficar ouvindo indireta toda hora - isso é pior do que os chutes na cara que às vezes levamos na rua."
Adrenalina a mil
A ótima sopa do viaduto Condessa de São Joaquim me dá energia para seguir firme na caminhada. Converso mais um pouco com os moradores da praça da Sé e logo emendo o trekking urbano até a esquina da São João com o vale do Anhangabaú. Hora de descansar num banco verde enquanto o samba rola solto no bar da esquina. E que banco confortável. Puxo papo com o segurança do bar e pergunto se o banco tem "dono", pois tenho plano de lá estender meu cobertor. "Vai deixar uma caixinha?", pergunta o segurança. Depois de ouvir minha negativa, ele conta a história do morador de rua que dormia em outro banco do Anhangabaú, mas que, de uns meses pra cá, passou a ocupar o banco que me interessou. "Um cara engravatado, pinta de grã-fino, jogou um paralelepípedo na cabeça desse mendigo. Maldade mesmo, sabe? Sorte que a quina da pedra bateu primeiro no chão e não atingiu direto o coitado. Mesmo assim, ele ficou meio tantã e trocou de banco." Ao perceber que eu não tinha experiência no pedaço, o segurança advertiu que não era uma boa idéia passar a noite por ali. "Os bares fecham à meia-noite e aí a coisa complica. Dormir na rua não vira não. É a fome roubando a miséria."
E foi um pouco depois desse horário que voltei a andar. Primeiro fui para o viaduto Santa Ifigênia, mas não cheguei a
atravessá-lo graças a um trio de homens que mudou a direção para onde ia e passou a me seguir. Virei rapidamente 180º e apertei o passo rumo ao posto da Polícia Militar do largo São Bento. Ainda com a respiração ofegante, peguei a Libero Badaró e resolvi experimentar outro viaduto, o do Chá. Assim que virei à direita no viaduto, vi sob a marquise do prédio de esquina diversos moradores de rua debaixo das cobertas. Entre dois deles, um espaço vago, de poucos metros: o suficiente para esticar o meu cobertor e, quem sabe, repousar um pouco. Adrenalina forte. Deitei.
Entre o capuz e o cobertor, deixei uma brecha pra olhar o movimento da rua. Incrível a perspectiva de quem observa os pedestres do nível do chão. As pessoas crescem, parece que estão ainda mais distantes. De repente, um cara de cobertor na cabeça se aproxima e joga suas tralhas ao meu lado. A adrenalina, que já estava rodando a mil por hora, acelera a um ponto que deixei de sentir o frio que emanava do solo. "Opa, beleza? Tudo bem se eu dormir aqui? Esse lugar tem dono?" O rapaz respondeu afirmando que não havia problema, mas, logo em seguida, levantou e saiu andando. Aí que pirei de vez. Para onde ele ia? Por que não deitou? Enfim, dúvidas demais para quem tem um filhinho de 10 meses em casa e está babando para vê-lo andar nas próximas semanas. Levantei.
Num movimento rápido, guardei o cobertor na sacola do
Futurama e atravessei o viaduto. Segui para o Teatro Municipal sem olhar para trás. Mal tinha digerido o medo dos momentos sob a marquise e deparei com outro: o vazio completo da escadaria do Teatro Municipal. Ninguém, ninguém. Sentei nos degraus, por volta da 1h30 da madrugada, para tentar entender aquele lugar desabitado. Nunca tinha ouvido tanto silêncio no Municipal. Em busca de respostas externas, notei que "por dentro" certas percepções estavam bem alteradas. Estranho. Com poucas horas solto pelas ruas, já experimentava uma liberdade curiosa. Passei a observar detalhes incríveis da fachada do teatro que jamais havia reparado. Não podia, porém, marcar touca. Afinal, o lugar não é exatamente uma rambla de Barcelona. Tracei uma rota mental e me mandei para a Augusta. Precisava ver gente.
Ossos congelados
Garotas de programa, carroceiros, policiais, carros tunados com som alto. Estavam todos lá. Quase como uma homenagem ao gênio João Antônio (escritor paulistano que lançou Malagueta, Perus e Bacanaço em 1963), entrei em uma sinuca, mas não no sentido figurado. Ao redor da mesa verde, os jogadores apostam R$ 10, R$ 20, R$ 50 a rodada. Os personagens de João Antônio logo são identificados: o falastrão que não joga nada, o come-quieto que fisga a vítima só depois de dar muita linha, o laranja. Entre uma bola encaçapada e outra, os olhos começaram a pesar. Escorei a cabeça na quina da parede próxima ao banheiro e tirei um cochilo. Acordei com dois caras se engalfinhando, trocando sopapos, bravejando palavrões com bafo de uísque barato. Hora de partir para o lugar onde me sinto mais em casa no planeta: avenida Paulista.
Às quatro da manhã, no frio que fez em maio, não tem jeito: os ossos congelam. Tentei puxar mais um soninho num estrado largado em frente ao restaurante Spot, mas não deu tempo nem de engatar o primeiro sonho: logo apareceu um segurança me expulsando do local. Pra fechar a noite, fui parar num banco sem encosto na agradável rua das Flores, a travessa de pedestre ao lado do Banco Real. Fiquei ali, estirado, até morrer de frio e de fome. Esses dois ingredientes misturados com sono formam um estado de esmorecimento que dificulta qualquer tipo de reação.
Busquei café-da-manhã nos viadutos na Liberdade, mas não encontrei. Fui parar na igreja de Nossa Senhora Achiropita, no Bexiga, onde tracei feliz três nacos de pão com margarina e uma xícara de leite. Pedaços de bolo e bananas acumulados da noite anterior me seguraram na hora do almoço. Durante o dia, consegui dormir principalmente em dois lugares: na arquibancada da pista de atletismo do Constâncio Vaz Guimarães (ao lado do ginásio do Ibirapuera) e sob uma figueira no parque do Ibirapuera. Voltei ao centrão e aí você já soube no início do texto que meu roteiro costurou viaduto do Chá, São Bento. A seqüência da segunda madruga foi parecida, com a diferença de que rostos agora familiares passaram a me cumprimentar, oferecer comida e espaço no chão. Encontrei de novo inclusive o cara que me encheu de medo na noite anterior e percebi que, ao fugir, agi de forma precipitada. A rotina ficou completa quando me estiquei pela segunda vez no banco da rua das Flores. Só não resisti a um outro café-da-manhã. Desisti. Exausto, retornei para meu apartamento. Mesmo depois de um longo banho quente, não me senti limpo completamente. Deve ser esse cheiro da rua que impregna e não sai mais.
Créditos
Imagem principal: Peetsa
Fotos: Peetsa