Salvando o rolê

por Eduardo Ribeiro

O corre dos skatistas para preservar os mármores do pico de street mais clássico de São Paulo, o Vale do Anhangabaú, em obras de reurbanização. E como é o memorial skatável que será construído lá

De passagem pelo Vale do Anhangabaú em meados do último mês de maio, Marcelo Formiguinha, um dos skatistas mais assíduos do tradicional pico de São Paulo, ficou estarrecido: tinham acabado de começar as obras de reurbanização daquela área, espaço mundialmente reconhecido na evolução do skate de rua. Formiga já morou na rua, passou por muitas dificuldades e foi andando de skate no Vale que encontrou a luz no fim do túnel. Para ele, as resistentes arquibancadas de mármore eram um pedaço importante de quem ele é.

"O nosso maior temor é que fomos tomados de surpresa e não queríamos que as obras avançassem sobre os mármores", disse Formiga. E conseguiram contornar a situação ao abrirem um diálogo com a prefeitura: a reconfiguração do Vale, que a princípio não contemplava as rodinhas, abriu espaço em seu projeto para a inclusão de um  de memorial skatável, elaborado pelos próprios skatistas e construído com as mesmas peças de mármore que antes davam forma às famosas quatro ilhas removidas e seus degraus.

LEIA TAMBÉM: Dan Mancina, o americano cego que superou seus limites e é melhor skatista hoje do que era quando enxergava

“Quando falei com o Formiga sobre a situação, ele já estava desacreditado”, relembra o skatista Murilo Romão sobre as origens do movimento Salve o Vale. “Daí eu pensei: 'Pô, se o Formiga se conformar com isso, nenhum outro skatista vai ter esperança de salvação'.” Romão abraçou a causa. Produziu um vídeo com o mote “Vendendo o Vale” e começou a divulgar. Foi ele também quem lançou a petição na internet. O movimento ganhou força junto com o post de uma foto do Murilo segurando um pedaço de bloco demolido. Deu até no SPTV, telejornal paulistano da Rede Globo.

Formiga, Murilo e outros skatistas organizaram, então, um protesto em frente à prefeitura, na manhã de 10 de junho, para tentar impedir a demolição dos bancos de mármore. A prefeitura, por sua vez, achava mesmo que criar um espaço de quase 800 metros quadrados voltado à prática do skate no novo Vale acalmaria os ânimos. Mas foi só depois que os skatistas se sentaram à mesa com a equipe designada pelo prefeito Bruno Covas (PSDB) munidos da petição em que reuniram mais de seis mil assinaturas, que caiu a ficha. A gestão pública se ligou que estava prestes a arrasar com um mobiliário que era patrimônio histórico do esporte agora Olímpico e, para Covas, que anda marcando presença em diversas inaugurações de pistas de skate, a medida pareceu simpática.

“Mostramos vídeos de skate, livros, vários registros para eles entenderem a importância do Vale pro skate mundial”
Murilo Romão, skatista

“Mostramos vídeos de skate, livros, vários registros para o assessor do Covas, para eles entenderem a importância do Vale pro skate mundial. Aí os caras entenderam”, contou Murilo. “No mesmo dia, o Fernando Chucre, secretário de Desenvolvimento Urbano, ligou pra gente. Combinamos de nos encontrar no dia seguinte pra conversar, no próprio Vale, com ele e o pessoal da São Paulo Urbanismo. Quando cheguei lá, uma das ilhas já estava destruída. Mandei uma foto pro Chucre na hora cobrando a preservação das pedras. Os caras não estavam nem aí, quebrando no trator."

LEIA TAMBÉM: O boom do skate feminino no Brasil. Com a estreia do esporte na Olimpíada, as mulheres manobram para superar os próximos obstáculos

Na reunião, o coletivo de skatistas propôs a adaptação do projeto original das ilhas. E sugeriu o Rafael Murolo, skatista e arquiteto que por coincidência trabalha na prefeitura, para dar vida ao memorial. “Foi a nossa grande sorte”, desabafou Murilo Romão, contente porque Chucre e a SP Urbanismo acataram a proposta. “O Murolo assumiu o projeto e botou a nossa visão perfeitamente no papel.” Murolo, que preferiu não dar entrevista por ocupar um cargo público, fez uma releitura do original que combinou criativamente as peças de mármore das quatro ilhas. As pedras serão polidas antes de reutilizadas. Com exclusividade para a Trip, o pessoal do Salve o Vale revelou como vai ficar o novo espaço.

Conversando com o Murilo, é fácil entender que o grande apego dos skatistas com o Vale do Anhangabaú é devido à qualidade maciça da pedra usada na construção das ilhas. Elas estiveram ali desde 1992, afinal, sem jamais perder o vigor. Ainda que por ocasião, os autores do desenho original, a arquiteta e paisagista Rosa Kliass, em parceria com o arquiteto e urbanista Jorge Wilheim (1928-2014), escolheram a pedra mais adequada para atritar com os eixos e a madeira do carrinho. Qualidade em grande parte, acredita Romão, devida ao acabamento bujardado do material, que possibilitam a fluência livre de entraves das manobras.

“Quando estive em Los Angeles recentemente, não teve uma pessoa que trombei que não demonstrasse preocupação com o futuro do Vale”
Felipe Ventura, skatista

Rosa Kliass lamentou a falta de manutenção e preservação e não ter sido ouvida pela administração municipal. A arquiteta e urbanista Francine Gramacho Sakata, coordenadora da ABAP-SP (Associação Brasileira de Arquitetos e Paisagistas), também lamentou o fim do antigo Vale. Em suas palavras: "O projeto foi vencedor de concurso público e desenvolvido com rara qualidade, tanto de projeto como de execução. Ao longo dos anos, a municipalidade não fez a gestão e a manutenção que seriam desejáveis de forma constante. Os espelhos d'água há muitos anos não funcionam e não seria razoável trocá-los por outros. Outros espaços públicos da cidade têm carências imensas e, neste contexto, o descarte completo do projeto do Vale do Anhangabaú também não se justifica financeiramente".

No começo da década de 1990, quando o Anhangabaú passou pela primeira repaginação, aquela que o transformou num dos prediletos picos de skate da capital paulista, as primeiras sessions rolaram ainda durante as obras. Certa vez, quando os funcionários desligaram as máquinas e deixaram o batente, os skatistas Marcelo Barnero, Alexandre Zik Zira, Daniel Trigo, Ricardo Pinguim, Edu Fernandes e David Toledo removeram as placas de madeirite e mandaram ver nas bordas dos degraus. O endereço chegou a ser palco de vários campeonatos de street ao longo dos anos, como o DC King of SP e o Global Assault.

LEIA TAMBÉM: Pira olímpica. O skate chega à Olimpíada cercado pela discussão polêmica a respeito da cannabis como doping. A Trip foi atrás de entender se fumar maconha é bom ou ruim para o atleta

O lugar é tão famoso por suas aparições em vídeos e revistas especializadas, que skatistas de diversos países, em visita a São Paulo, sempre fizeram questão de colar por lá. Talvez a mais famosa aparição do Vale do Anhangabaú num vídeo de skate gringo tenha sido também a sua estreia, em 2000, no vol. 41 da clássica 411 Video Magazine. O responsável pela façanha foi Rodrigo TX, que estrelou a seção "Wheels of Fortune". Em meio aos estrangeiros ilustres que tiveram a moral de desbravar os brutos degraus do Vale, destacam-se os mestres Mike Vallely, Eric Koston, Brian Anderson, Javier Sarmiento e Paul Rodriguez. Já entre os brasileiros que melhor souberam explorar o mobiliário com suas manobras, estão, além de TX e Formiguinha, Alexandre Vianna, Bruno Aguero, Ari Neto, Anjinho e Bob Burnquist.

"Quando estive em Los Angeles recentemente, não teve uma pessoa que trombei que não demonstrasse preocupação com o futuro do Vale", contou Felipe Ventura, skatista e empresário do segmento. Felipinho enxerga na vitória do movimento Salve o Vale um paralelo com o caso do Southbank, de Londres, um pico das antigas de lá, quase em frente ao Big Ben. "Em 2013, os caras estavam destruindo o Southbank. Daí uma molecada se juntou no movimento Long Live Southbank, e salvou. Conseguiram fazer o governo manter o pico e ainda reconstruir o projeto original. Eles arrecadaram mais de meio milhão de libras em doações para as obras."

“O descarte completo do projeto do Vale do Anhangabaú também não se justifica financeiramete”
Francine Gramacho Sakata, urbanista

A essa altura, o desenho característico do Vale do Anhangabaú já foi completamente implodido pela prefeitura, e o que antes era um cartão postal virou um buraco enorme. Promete-se que em junho do ano que vem, com orçamento previsto de R$ 80 milhões, proveniente do Fundurb (Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano), segundo Fernando Chucre, as obras estarão concluídas. No momento, trabalhadores constroem galerias para a passagem de cabos de concessionárias de energia e telecomunicações, que ficarão subterrâneos.

O novo Vale, concebido na gestão anterior, de Fernando Haddad, inclui a implantação de quiosques, cafés, floriculturas e ludoteca. Mais de 1.500 lugares, entre bancos e cadeiras. Bebedouros, lixeiras, sanitários e paraciclos. A água será reintroduzida. Ao todo, haverá 850 pontos de jatos d’água vindos do chão, com 90% de reaproveitamento; os 10% restantes serão captados por poço artesiano subterrâneo. Depois de concluída a reforma, o Anhangabaú deverá contar com 480 árvores, sendo 355 mantidas e 125 novas espécies nativas. Já a iluminação pública será automatizada com um sistema LED. Serão 28 pontos de iluminação na esplanada, 105 pontos sob as árvores, e 900 metros de iluminação sob os bancos. O que todo mundo quer ver é se depois vai rolar manutenção.

Créditos

Imagem principal: Marcelo Mug/Divulgação

fechar