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por Douglas Vieira

Com histórias de vida opostas, o juiz Iberê Dias e o rapper Dexter uniram suas forças para dar uma perspectiva de futuro a milhares de jovens que vivem nas casas de acolhimento do estado de São Paulo

Quando você se vê na mesma sala que o rapper e ex-presidiário Dexter e o juiz Iberê Dias, a sensação é de estar presenciando um desses encontros que deveriam ser vistos por muito mais gente, por simbolizar algo de que o mundo realmente precisa: o diálogo com o diferente. Mais do que conversar, hoje eles são uma dupla que trabalha para dar uma perspectiva de futuro a jovens excluídos. O que os une é o Trampo Justo, projeto voltado a inserir no mercado de trabalho os mais de 8 mil jovens que vivem nas 665 casas de acolhimento do estado de São Paulo.

Se para a maioria das pessoas completar 18 anos é, simbolicamente, um ritual de passagem para a vida adulta, para esse grupo – seja um jovem órfão ou de uma família sem condições de cuidar dele –, chegar à maioridade é ainda mais significativo: representa o momento de ir embora desses abrigos. Na rua, precisarão conseguir trabalho, estabilizar a própria vida e construir um lar. Sozinhos. “Eles não têm ninguém, não têm uma família esperando lá fora. Nesse ponto, é bem diferente até de um cara que sai da cadeia, que, na maioria das vezes, tem a mulher, o filho, o pai, a mãe…”, diz Dexter, 46 anos, 13 deles vividos atrás das grades.

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“O dinheiro é bom, mas eu não preciso ficar rico. O hip hop me ensinou a ser útil, não posso mudar a minha diretriz”
Dexter

As palavras do rapper paulista, criado na favela do Calux, em São Bernardo, na Grande São Paulo, ilustram de modo preciso o papel dele na iniciativa: entender e acessar crianças e jovens que, muitas vezes, demonstram muita dificuldade em aceitar conselhos e orientações. A empatia e a certeza de que têm ali uma pessoa que enfrentou questões sociais parecidas com as deles, em uma vida marcada por tombos e recomeços, colocam Dexter num lugar diferente. Um lugar fundamental para sensibilizar esses jovens, como destaca Iberê. “Por mais que eu esteja nesse meio, que eu lide com adolescentes desse perfil, é inevitável que eles olhem para mim e digam: ‘Pô, para você é fácil vir aqui me falar para trabalhar. Você é homem, branco, da classe média alta paulistana, estudou em bons colégios e tal. Não faz ideia do que é ser pobre, preto da periferia’”, conta. “E eles têm razão, por mais que você tente fazer um exercício de empatia, nunca vai ser a mesma coisa do que ter nascido e crescido naquela situação.”

Espelho

“O importante é fazer com que o adolescente entenda que ele tem direitos, pode sonhar e não precisa se conformar com a situação em que está”
Iberê Dias

O paulistano de 42 anos, juiz titular da Vara da Infância e Juventude de Guarulhos e assessor da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, foi o responsável por encabeçar o Trampo Justo, iniciativa do Tribunal de Justiça de São Paulo, em parceria com o Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE). Com bastante experiência com crianças e adolescentes, ele sabia que, mais do que ajudá-los a ingressar no mercado de trabalho a partir de palestras e da criação de pontes com empresas interessadas em participar do projeto, ele precisaria de uma voz capaz de acessar os jovens. Ao conhecer Dexter e convidá-lo para o primeiro evento do projeto, em fevereiro deste ano, teve a convicção de ter encontrado a pessoa certa. “Dexter é um dos melhores exemplos, porque ele tem essa origem periférica, se envolveu no mundo do crime, passou pelo sistema prisional e soube sair. Raramente a gente vai arrumar alguém que tenha um discurso tão forte quanto o dele. ‘Eu sei o que você passa, estive aí, sei o que você deve ou não fazer para sua vida dar certo. Não façam o que eu fiz porque eu já sei que vai dar errado’.”, diz Iberê. “Esse discurso é muito mais poderoso do que eu ir até eles e tentar conversar sobre a importância do trabalho.”

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Tanto Dexter como Iberê não iniciaram uma trajetória de salvar vidas no Trampo Justo. A história do envolvimento deles com projetos sociais é anterior.

O juiz está por trás de outro projeto voltado aos menores em casas de acolhimento, o Sua que é Sua, que trabalha a inclusão por meio da atividade física, especialmente a corrida – uma paixão do maratonista amador que ele é. “Eu já tinha atuado com crianças e adolescentes no começo da carreira e já sabia quais eram os desafios, as dificuldades e os prazeres de trabalhar numa área como essa. Quando surgiu a chance de trabalhar exclusivamente com isso, vi que era aquilo que eu estava precisando”, diz. “É uma área muito mais dedicada ao social, com uma carga jurídica um pouco menor. Claro que tudo é decidido com base nas leis, mas é um trabalho que permite uma atuação do juiz um pouco mais larga e isso me satisfaz plenamente. Tem uma atuação humana, algo que todas as áreas têm em algum grau, mas, no caso da Vara da Infância e Juventude, isso se sobressai.”

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Já o rapper paulista, que alcançou o sucesso no hip hop enquanto estava preso no Carandiru, em 2000, ano em que lançou o primeiro disco do grupo 509-E, entendeu ainda na prisão que ajudar os outros seria um foco importante em tudo que fizesse – na música ou fora dela. E assim continuou depois que deixou o presídio, em 2013. Desde então, participa de diferentes projetos sociais, inclusive dentro de penitenciárias em que um dia esteve como condenado. “O dinheiro é bom, mas eu não preciso ficar rico. O que me faz um cara rico é ter isso para fazer. O hip hop me ensinou a ser útil, não posso mudar a minha diretriz. Mano Brown, Malcolm X, Mandela, Martin Luther King e Zumbi me ensinaram isso.”

Tamo junto

Enquanto estão reunidos para um papo com o Trip Transformadores sobre o Trampo Justo, Iberê e Dexter combinam um jantar durante a semana. A ideia é relaxar, estreitar ainda mais a relação que naturalmente tornou-se uma amizade. Mas, entre uma conversa e outra sobre o São Paulo, time do coração de ambos, surgem planos para os próximos encontros do projeto. Os dois, a cada palavra, externam um desejo de transformar a vida das pessoas. “Não tem cachê maior do que ver a vida de alguém mudar, bem ali na sua frente”, diz o rapper. “O importante é fazer com que o adolescente entenda que ele tem direitos, pode sonhar e não precisa se conformar com a situação em que está naquele momento. Fazer esse jovem acreditar no potencial dele”, diz o juiz.

Mais do que uma relação de trabalho, é esse desejo comum de transformar a vida das pessoas que fez de dois caminhos evidentemente diferentes um só.

 

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Créditos

Imagem principal: Daniel Klajmic

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