Emicida: Sei com qual país sonho, mas sei em qual país vivo

por Redação

No Trip Transformadores, o estilista Ronaldo Fraga bate um papo com o rapper e escritor sobre literatura, amor, diálogo e resistência

São muitos os motivos pelos quais Leandro Roque de Oliveira, o Emicida, pode ser considerado sinônimo de transformação. Nascido e criado no Jardim Fontales, periferia da zona norte de São Paulo, o jovem que se destacou nas batalhas de freestyle por sua rapidez de raciocínio se tornou um dos nomes mais importantes do rap nacional, e hoje abre espaço para cada vez mais referências negras na cultura brasileira. Além disso, é escritor de dois livros infantis e dono do hub de entretenimento Laboratório Fantasma. 

De sua casa em São Paulo, Emicida bateu um papo com o estilista e amigo Ronaldo Fraga no programa Prêmio Trip Transformadores, que vai ao ar todo sábado, às 22h, na TV Cultura. Na conversa, o cantor fala sobre sua relação com a terra, a história do Brasil e a importância do diálogo na construção de um mundo justo e coletivo: "A pergunta que me acompanha em toda a vida é: onde a gente se encontra e constrói uma realidade que seja melhor para todo mundo?". Assista a alguns trechos do papo ou leia a entrevista a seguir.

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Ronaldo Fraga. Em uma entrevista, você disse que a sua influência vinha de lugares diferentes. Da igreja evangélica, que você escutava em casa, ao candomblé; do universo do hip hop aos repentistas nordestinos. Quando vi isso, eu falei: esse cara é o brasileiro, mestiço em tudo. E agora, o rapper mais famoso do Brasil se revela um dono de casa, está fazendo yoga, fazendo seu próprio queijo, cuidando da horta. O menino de 15 anos atrás entenderia o homem que você é hoje?

Emicida. Nesse momento em que estamos vivendo, não é só importante, mas urgente que a gente parta do básico. E o básico é entender que somos um animal como qualquer outro, e que a gente precisa se relacionar harmonicamente com a terra. Fazer a manutenção, cuidar dela, tirar meu alimento. Compartilhar sobre isso é minha maneira de dizer para as pessoas que há coisas muito simples que constituem nossa existência, e que a gente não pode se desconectar delas. Tem um poema do Mário Quintana em que ele fala que tem uma foto dele quando era criança. Às vezes, quando ele olha nos olhos daquele menino, ele vira o retrato de costas, porque tem medo do que o menino está pensando dele hoje. Eu acho que aquele menino que me olha do retrato teria muita alegria de ver essa possibilidade de ser humano. 

“Em outros tempos da nossa história, amar foi importante. Hoje, é essencial. A gente precisa partir disso se quisermos construir uma ponte”
Emicida

Quando estourou, você descortinou para o Brasil a realidade de um lugar que todo mundo sabe que existe, mas todo mundo finge que não. Eu e você viemos de bairros pobres, perdemos os pais muito cedo, e o desenho era a nossa forma de nos colocar no mundo. Quando eu vi você falando sobre desenho, eu pensei: "Somos da mesma matilha". Mas teve um outro ponto, que aí você foi no fundo do coração, quando você diz que seu mentor intelectual era o mesmo que o meu, que é Mário de Andrade. Eu acho Mário de Andrade uma figura cara ao Brasil que estamos vivendo. Qual face do Mário que o coloca como um mentor intelectual para você? A característica que mais me fascina no Mário de Andrade é a busca. É até redundante dizer isso hoje, mas a história do Brasil que a gente entende como oficial é muito violenta, muito agressiva, ela soterrou várias histórias. Acho que o Mário se provocou a produzir, a tentar positivar um encontro, e esse encontro é uma realidade. Assim como é um completo equívoco tentar redefinir o Brasil, com toda sua riqueza, pela perspectiva do europeu, a gente também não pode tentar refazer essa história desconsiderando esse componente. O Mário não só sonhou, se arriscou a contar e conhecer o Brasil com as limitações e as liberdades da época, como também se aventurou em tentar construir o Brasil que ele sonhava. 

Quintana, Mário de Andrade, vamos agora para Clarice Lispector. Ela disse em Descoberta do Mundo que "amar os outros é a única salvação que conheço. Ninguém estará perdido se der amor em troca". E você realizou um projeto que, no futuro, quando formos entender essa época, com certeza será citado. É um projeto que tem amar no próprio nome, o AmarElo. E ele foi desenvolvido justamente em um momento em que o ódio é o prato principal que está sendo servido na mesa dos brasileiros. A gente já sabe que só amar ou falar de amor já é um ato de transgressão, mas como é isso para você? Eu acho que, em outros tempos da nossa história, amar foi importante. Hoje, amar é essencial. A gente precisa partir disso se quisermos construir uma ponte. Há algum tempo temos sido sequestrados pelo ódio com frequência. Observando a natureza do Brasil, das decisões que acontecem aqui, não houve muito local para o amor florescer. E abrir espaço para que isso aconteça é abrir espaço para que nasça uma ponte entre eu e você.

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“Eu preciso produzir uma sociedade onde a gente vença coletivamente. E isso é fazer uma política que seja pautada no amor”
Emicida

Em geral, colocamos o amor nessa perspectiva individualista, romântica, afetivo-sexual. O amor é colocado nesse lugar onde parece que ele não tem força para construir coisas coletivas, do ponto de vista de uma sociedade. Mas a verdade é que o amor é a única coisa que me faz observar você e pensar: "O Ronaldo é um ser como eu". É o amor de um indivíduo para outro, de um ser humano para outro. Eu preciso produzir uma sociedade onde a gente vença coletivamente. E isso é fazer uma política que seja pautada no amor. Uma política pública de cuidado coletivo é uma fantasia que o amor veste quando ele quer ficar visível ao olho nu. É nisso que eu acredito. 

Nunca estivemos tão expostos. Não tem mais como nos escondermos, ter uma imagem pública de um jeito e uma imagem privada de outro. Eu acho que está virando uma coisa só e isso é muito bom. Mas vivemos em bolhas, vivemos a cultura do cancelamento e, enquanto na bolha, falamos para os nossos. Como você vê isso, de furar as bolhas e estabelecer diálogo com outras frentes? Uma das características mais bacanas que a vida me deu, e isso não é uma característica com a qual eu nasci, eu fui aprendendo, é que eu sei com qual país eu sonho, mas eu sei em qual país eu vivo. É quase um super poder ser um sonhador e não confundir essas duas coisas. É urgente que a gente pare de trocar baldes e resolva a goteira que está no nosso telhado. Porque o que aconteceu é que o Brasil encenou conciliações que ele não produziu realmente nas ruas. A gente se orgulha do desenvolvimento de São Paulo, do desenvolvimento do Sudeste, do desenvolvimento do Brasil, só que o momento, meu mano, é de envolvimento. O Brasil não se relaciona com o lugar no qual ele existe. Não é o momento de a gente se desenvolver, é o momento de a gente se envolver com as causas. Porque as questões culturais, as questões políticas, embora pareçam intransponíveis nesse momento, nem são a pergunta de um milhão de dólares do nosso tempo. A pergunta de um milhão de dólares do nosso tempo é: o que a gente vai fazer com as questões climáticas quando a gente se entender entre nós?

“Em um momento como esse, de tanta escuridão, temos que encontrar a luz que tem dentro de nós e fazer ela virar caminho para outras pessoas”
Emicida

Existem várias bolhas que se identificam comigo, mas eu não me considero parte de nenhuma delas, porque eu troco ideias com todo mundo. E isso é uma das coisas pelas quais muitas vezes eu sou apedrejado, porque no entendimento estrito de algumas pessoas, eu deveria conversar com um único grupo. A pergunta que me acompanha em toda a minha vida é: onde a gente se encontra e constrói uma realidade que seja melhor para todo mundo? Eu acho que a vida só é uma possibilidade quando a gente se encontra. Esse contexto no qual a gente está vivendo é a negação completa do encontro. E nada mais didático neste momento do que essa experiência destrutiva produzida pelo Bolsonaro. É isso que a gente quer ser? Não. Então a gente precisa produzir um encontro melhor do que esse aí. E a gente não vai produzir encontro se a gente estiver falando só para quem concorda, e não para quem precisa. Um momento como esse, de tanta escuridão, é um momento onde a gente tem que encontrar a luz que tem dentro de nós e fazer essa luz virar o caminho para outras pessoas. Por isso eu bato na tecla da saída coletiva. 

Eu sou um artista, eu vivo de show, meu ativo maior foi suspenso há um ano. Eu estou aqui, não demitimos ninguém, estamos nos desafiando e nos reinventando nesse momento. E eu vejo artistas que têm popularidade para conseguir fazer uma pressão no poder público, e todos eles estão em silêncio. E aí eles levantam as vozes deles para dizer que é o momento dos shows serem liberados novamente? Passando de mil pessoas morrendo todos os dias, no meio de um tiroteio absurdo? E aliás, às vésperas de ser literalmente um tiroteio, porque todo mundo pode ter seis armas, mas não pode ter uma vacina. No meio de tudo isso, só tem uma forma de sair. Não adianta eu pensar no que é a salvação do meu setor, no que é a salvação da minha bolha, no que é a salvação do meu bolso, não é sobre isso. É sobre pessoas. E se a gente não salva pessoas, é melhor se entregar para a barbárie. 

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Vivemos em um país de distâncias abissais, onde temos uma Finlândia e uma África lado a lado. Nesse momento, seja pela pandemia ou por um governo pandemônico, nossas fraturas estão ainda mais expostas. E uma fratura que já vem de tempos, da formação do povo brasileiro, é a questão relacionada ao racismo, que gera essa desigualdade racial gigante. Mais do que nunca, os negros estão associados à imagem de resistência, de luta. Isso para você, em algum momento, é um peso? Ou um estereótipo que, ao invés de libertar, te aprisiona? Sim. Eu acho que as pessoas pretas são entendidas como fortes não porque elas tiveram necessariamente a oportunidade de mostrar suas forças, mas porque todo mundo já subentende que essas pessoas vivem em um ambiente muito difícil. E isso é uma faca de dois gumes. Por um lado, é importante que a gente seja incentivado a resistir, porque vivemos em uma realidade que não é nada fácil. Por outro lado, a gente não quer resistir. Quem quer viver resistindo? A gente quer existir. Por isso que eu canto: "Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes". Porque até quando as pessoas são bem intencionadas, elas me limitam a ser o que me traumatizou, e não eu mesmo. As pessoas que sofreram de alguma forma com a desigualdade racial são colocadas no posto de referência a respeito da desigualdade racial, quando a minha luta é para que a gente possa ser tudo. 

“Se a gente permite que um professor seja agredido debaixo dos olhos de todo mundo, que tipo de país a gente está permitindo que nasça? ”
Emicida

No documentário AmarElo ficou muito claro que você tem um fascínio, tem conhecimento sobre a história do Brasil, e acho que isso é o que te diferencia dos seus pares. Quando você olha para o passado, você tenta pensar o presente, mas de olho na construção de um futuro. Por que você acha que a história se repete sempre aqui nessa terra? Se a gente realmente estudasse a história do Brasil, não estaria condenado a repeti-la. Por que a gente não aprendeu com a nossa história? Porque a gente não a estudou direito. No momento em que a gente tiver conhecimento das catástrofes que o Brasil produziu, sejam elas a escravidão ou o genocídio indígena, a gente vai querer se distanciar disso. O Brasil não consegue entender o poder revolucionário, do ponto de vista humanitário, de uma escola. O professor é a pessoa que constrói o intelecto da geração que está por vir. Se a gente permite que um professor seja agredido debaixo dos olhos de todo mundo, que tipo de país a gente está permitindo que nasça? A gente tem o desafio de fazer esse Brasil real, esse Brasil pulsante, esse Brasil que inspirou a gente a ser quem a gente é, ocupar um lugar de reverência que consiga criar um outro parâmetro para essa sociedade. E aí a gente vai terminar tipo o Gonzaguinha. O Gonzaguinha não cantava "eu fico com a pureza da resposta das crianças"? Mas o que estamos dando para as nossas crianças? O que a gente está ensinando para elas? Estamos sendo professores delas também. 

Você é um artista brasileiro. No meio desses 35 anos de trajetória, você vendeu a alma para o diabo em algum momento? Enquanto criador, a gente é consequência do sonho e da luta de muita gente. Para você pegar um lápis, uma folha de papel e conseguir fazer um desenho, eu imagino a quantidade de infernos que as pessoas que cuidaram de você seguraram, para que existisse a paz que você precisava para fazer o que estava dentro da sua cabeça ir parar no papel e hoje você ser o Ronaldo Fraga. Dessa mesma forma aconteceu na minha vida. Como eu digo 'obrigado' para várias dessas pessoas que nem estão aqui mais? Qual é o tamanho do 'obrigado' que eu devo para essas pessoas? Para mim, é eu nunca esquecer da minha origem, e cada vez que eu vencer, abrir portas para que cada vez menos infernos cerquem essas pessoas.

Eu tive a oportunidade de ver muita gente trabalhar e manter suas convicções. Mas infelizmente não havia circulação de informação e possibilidade de emancipação para que essas pessoas dissessem os 'não' que eu disse. Elas tiveram que se entregar a outras coisas. E aí eu acho que parte da minha vitória e parte da minha obrigação como um vencedor é anistiar todas essas pessoas, não dizer para elas que elas se entregaram antes de mim. Porque o contexto era muito difícil. Se para a nossa geração de criadores é difícil, imagina 50 anos atrás, querendo fazer justiça, construir um país melhor. Mas que espaço havia para se sonhar com um país melhor nas ruas do Brasil? 

“Eu tenho a consciência que eu sou a junção de um monte de coisas que o Brasil odeia, mas que ele odiando, eu ainda consiga atravessar”
Emicida

Para encerrar, vamos falar de Estela e Teresa, suas filhas. Que Brasil você imagina que elas vão receber? Essa é uma reflexão que me pega, por uma série de elementos. O primeiro é a responsabilidade enquanto homem de criar duas meninas. Eu sempre me pergunto: "Em que momento o homem se torna uma barreira para o sonho de uma mulher?". Eu preciso construir uma atmosfera que possibilite que essas meninas sonhem o mais alto que elas conseguirem. Eu não posso permitir que nenhuma estrutura, que não seja o amor que eu tenho por elas, interfira nesse sonhar. E no Brasil de hoje eu estou sendo esperançoso de teimosia, só para mostrar que eu não sou igual a isso aí. Eu vivo em paz porque eu tenho a consciência que eu sou a junção de um monte de coisas que o Brasil odeia, mas que mesmo ele odiando eu ainda consiga atravessar. Porque eu sou uma pessoa preta, inteligente, bem-sucedida, com consciência de classe e que não esqueceu de onde veio. A junção dessas cinco coisas é uma parada que o Brasil não consegue lidar com facilidade, mas também não é uma coisa que o Brasil consegue derrubar com facilidade. 

Essas duas meninas têm a oportunidade de ver todos os dias que elas não podem se render a nenhuma estrutura desumanizante, e que é possível vencer olhando no espelho, sentindo orgulho de quem você é. E vencer nunca é individual, é sempre coletivo. Elas veem isso em nós, elas veem isso na Laboratório Fantasma, nas pessoas que se relacionam com as músicas, na retidão do tratamento de todas as pessoas que nos rodeiam. E isso é vitória, é isso que eu vou deixar. Então, em geral a gente se pergunta: "Que mundo a gente vai deixar para os nossos filhos?" Mas uma das coisas que mais pacifica o meu coração e me alegra é que filhas eu estou deixando para esse mundo. E eu estou deixando pessoas incríveis para esse mundo. 

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