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A mulher que o Modernismo tentou esquecer

A atriz Luiza Mariani conta a saga de duas décadas para recriar em filme a vida de Maria de Lourdes Castro Pontes, a Cyclone, jovem que morreu ao abortar um filho de Oswald de Andrade

Maria de Lourdes Castro Pontes, a Cyclone

Créditos: Divulgação


Por Luiza Mariani

em 5 de dezembro de 2025

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O ano era 2005. Eu era uma jovem atriz de 25 anos, em busca de um personagem. Foram semanas mergulhada em dezenas de peças de diversos autores, quando então me deparei com um livro chamado O Perfeito Cozinheiro das Almas desse Mundo (1987).

O livro grande, raro, de capa vermelha, é uma espécie de diário de Oswald de Andrade e dos frequentadores da garçonnière que ele mantinha no centro de São Paulo em 1919 – como eram chamados os apartamentos que homens alugavam para encontros amorosos. Mergulhei de cabeça no livro e fiquei fascinada por uma jovem normalista que aparecia misteriosa nestas páginas e trazia com ela o Modernismo impresso no corpo. O nome dela era Maria de Lourdes Castro Pontes, ou melhor, Cyclone. 

O que eu ainda não sabia naquele momento é que aquele livro, aquela história, aquela personagem ia mudar a minha vida para sempre.

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Maria de Lourdes Castro Pontes, a Cyclone
“Cyclone”, filme inspirado na história da escritora Maria de Lourdes Castro Pontes, estreou nos cinemas. Foto: Divulgação

A história interrompida de Cyclone

Maria de Lourdes queria ser escritora. Foi a única mulher a frequentar a garçonnière de Oswald e teve um caso com o escritor. Apesar de participar ativamente do que se tornaria o Modernismo no Brasil, nunca recebeu nenhum tipo de crédito e teve um destino trágico ao engravidar de Oswald, aos 19 anos, e morrer na tentativa de fazer um aborto. 

Cyclone tinha uma mecha ruiva de cabelo na testa, era dramática e tinha pressa. Mesmo sem saber o que o destino lhe guardava, carregava o inquieto apelido com ela. Fugidia e petulante, fascinava não somente o jovem Oswald, mas todos que se aproximavam dela. Foi amor à primeira vista.

Entusiasmada com a história de Cyclone, decidi montar uma peça sobre ela. Naquela época, foquei primordialmente na história de amor turbulenta entre os dois artistas – uma perspectiva que iria mudar drasticamente com o decorrer dos anos.

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Maria de Lourdes Castro Pontes, a Cyclone
A protagonista Luiza Mariani e Eduardo Moscovis em cena do filme “Cyclone”. Foto: Divulgação

Para montar a peça, saí em busca dos direitos autorais. Depois de muitas tentativas, consegui finalmente conversar com Rudá de Andrade, filho de Oswald e Pagu. No telefone, expressei minha vontade de contar a história do casal com muito respeito e delicadeza, ao que fui surpreendida por sua fala irreverente: “Mas também se quiser fazer sem respeito e sem delicadeza, faça. Porque esse era o espírito de meu pai”. Foi ali que decidi que trocaria de corpo com Maria de Lourdes. Com Cyclone.

Meu amor por ela foi arrebatador. Durante o processo de montagem da peça, dirigida por Jefferson Miranda, pouco a pouco fui sentindo minha carne se misturar com a dela. Eu dava um corpo físico para uma mulher que morreu antes que pudesse trazer a sua linguagem autoral para o mundo. E, num intervalo da peça, entre uma cena e outra, fazendo xixi, lembro como se fosse agora, decidi transformar essa história em filme.

Apesar de participar ativamente do Modernismo no Brasil, Cyclone nunca recebeu crédito e teve um destino trágico ao engravidar de Oswald de Andrade, aos 19 anos

Logo antes de morrer, Cyclone entregou os originais do livro que estava escrevendo nas mãos de Oswald e pediu que ele publicasse sua obra, alegando “a vida ser tão curta e a arte, tão longa”promessa que nunca foi cumprida. Oswald narra em um trecho de sua autobiografia, Um Homem sem Profissão (1954), que Cyclone teria sido a precursora do conto policial no Brasil caso ele não tivesse perdido os originais. Isso mesmo, perdido os originais. Silêncio.

Pensei: “Vou trazer essa mulher à vida, porque ela vai me trazer à vida”. Era como se, de alguma forma, eu precisasse continuar a história dela, que foi precoce e violentamente interrompida lá atrás.

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Cyclone insistia em virar cinema

Na coxia do teatro, ao tomar a decisão de dar vida cinematográfica à Cyclone não previ a odisseia que me aguardava, mas de alguma forma havia uma força em mim que manteria essa chama viva por mais de 20 anos. Arregacei as mangas e, munida de medo, paixão e coragem, parti rumo à ilha desconhecida.

Para a versão cinematográfica, além de financiamento, eu primeiro precisava dos tais direitos autorais. Mas Rudá de Andrade morreu no meio das negociações e toda a obra de Oswald levaria dez anos para ser inventariada. Nesse tempo, me casei, tive dois filhos e interpretei outros papéis. Tentei desistir diversas vezes, confesso, mas dentro de mim seguia resiliente a chama de Cyclone, que insistia em virar corpo, em virar gente, em virar cinema. As pessoas já me olhavam receosas, certas de que essa história nunca sairia do meu imaginário, o que dirá ir para o papel e, pense só, virar filme. “Coitada dessa menina”, falavam – e, cá entre nós, eu já não era mais tão menina assim.

Mas os dez anos se passaram e, com os direitos finalmente em mãos, comecei a procurar quem seria a pessoa ideal para adaptar o livro para o cinema. Ao longo do tempo, senti uma resistência grande por parte da filha de Oswald, Dona Marília de Andrade, como se por alguma razão ela não quisesse que essa história fosse contada. Foram muitas trocas de e-mails, sumiços e tentativas de convencê-la. Não esqueço de sua fala no dia em que finalmente assinamos o contrato: “Minha filha, você é muito persistente, parabéns”.

O tempo de espera foi virando um fantasma para mim, um inimigo. Eu tinha medo de perder a personagem por conta da minha idade – afinal, eu já tinha 36 anos, e, veja bem, Cyclone morreu aos 19. Sabemos quão lento é o processo de se produzir um filme no Brasil. E agora? Era preciso correr. Eu também tinha pressa.

Cyclone, uma mulher deste tempo

Em 2020, com o projeto em andamento, eu e meus parceiros criativos tomamos a decisão de nos afastarmos da ideia original do livro. Talvez movidos pela urgência da pandemia da Covid-19 ou dos meus 40 anos, entendemos que Cyclone seria uma mulher do meu tempo – faríamos uma manobra política de colocar essa personagem, que foi inviabilizada, no centro da história.

O que inicialmente seria uma história de amor entre uma jovem estudante e um homem mais velho se tornou a história de uma mulher à margem, que tem pressa de inscrever seu talento no mundo

O filme seria sobre ela, é claro. Sobre a vida que ela não teve. O que inicialmente se propunha a ser uma história de amor entre uma jovem estudante e um homem mais velho – que chatice – se tornaria a história de uma mulher à margem, que tem pressa e desejo de inscrever seu talento no mundo. Bingo! Como levamos tanto tempo para chegar nesse recorte? E assim, finalmente, nascia Dayse.

Com essa nova perspectiva, surgiram também novos desafios. Uma vez que a vida de Cyclone no filme não estaria mais atrelada à vida de Oswald, que sua subjetividade se tornaria o âmago do filme, diversas lacunas factuais se abriram. Não há registros históricos suficientes que sejam capazes de traçar de forma precisa quem foi Maria de Lourdes. Quem foi Cyclone. O único material deixado por ela, além das páginas coloridas do livro O Perfeito Cozinheiro das Almas desse Mundo (1987), é um diário de menina com 79 páginas sob a posse da Unicamp, que tivemos a ousadia e a sorte de acessar e transcrever. Aqui agradeço a sagacidade do meu amigo Helder Galvão.

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Trechos do diário de Cyclone

Agosto 19

Minha querida D.

"Calma, calma, coragem sobretudo muita coragem". É o que nunca, em caso nenhum deve faltar a quem tem 18 anos explêndidos. Depois o fucturo virá inédito de bôas surprezas . Tem fé e confiança.   

Cyclone

(Ela morreria um ano depois)

E à noite desse mesmo dia, escrevia a elle pedindo-lhe perdão: de que?

Que desgraça eu ser mulher... e só!    Cyclone

Eu tenho qualquer coisa de Horacio, na minha ambição! E então poderei dizer como elle – a propósito de minha vida! – “Majores pennas nido”

Tenho as azas maiores do que o ninho!
_______

25. Out. 1918

Miramar

Leio neste momento a sua carta que alias não entendi muito bem.

É o effeito da grippe sobre o cerebro!

Aqui em cravinhos ha 4 casos de grippe, 5 com o meu: e em S. Simão há ja bastantes casos de febre amarella. Uma desgraça enfim.

Hoje, 25, passei a manhã mal, mas o dia bem, ou melhor, quasi bem. Tenho gargarejado bastante porque a garganta está muito irritada. Vomitos, poucos: febre 40o só e assim mesmo com favoraveis alternativas. Almocei caldos de cevada e jantei muito pouco – sopa de galinha.

Tu como vaes, querido?
Não continuo porque tenho de fazer a difficel hygiene anti-grippica. Adeus.
Com alma e coração
Gracia

Ultima hora: acabo de pôr o thermometro: 39 de febre.

Finalmente, o set

O meu desejo de articular o mundo dessa personagem era tão grande que nos levou, então, a fazer uma escolha radical: inventar, confabular, fabricar, elucubrar, ficcionalizar o que foi e quem foi Cyclone. E, claro, nesse processo, minha vida, a de Maria de Lourdes e a de Dayse se intrincavam cada vez mais. Quem era quem?

Talvez a beleza disso tudo seja que o tempo seguiu seu curso, e o mundo mudou por inteiro, com novas discussões políticas e sociais que também transformaram a minha cabeça. As mulheres ganharam força, foram abrindo e conquistando cada vez mais espaço. Novas narrativas femininas foram parar no centro dos debates. #MeToo? Sim, temos! E é sob esse contexto que Cyclone finalmente começa a ser gerada de forma mais consistente. Anos antes teria sido impossível fazer tais projeções.

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Maria de Lourdes Castro Pontes, a Cyclone
Luiza Mariani e Karine Telles estrelam “Cyclone”, filme ambientado na São Paulo do começo do século XX. Foto: Divulgação

Diante de tantas mudanças, tive uma porção de colaboradores, entre eles minhas incríveis produtoras Joana Mariani e Eliane Ferreira. Walter Salles, Karim Ainouz e Sérgio Machado, que participaram da primeira fase do projeto, a historiadora Suzane Jardim, Maria Carlota Bruno, Flavia Castro, minha diretora e peça fundamental desse quebra-cabeça, e Rita Piffer, roteirista e parceira implacável. Juntas reescrevemos o argumento do filme e foi ela quem escreveu, a partir daí, as versões do roteiro que foi filmado.

A vida inventada de Maria de Lourdes se apresentava diante das câmeras. Nascia ali a história de uma mulher de quase 40 anos que tem sonhos, medos e o desejo de existir para além dos muros impostos

Em 2023, aos 43 anos, entrei no set para dar literalmente luz à personagem que tomei a decisão kármica de dar voz há 18 anos. Era a vida inventada de Maria de Lourdes que se apresentava diante das câmeras orientadas pelo olhar delicado de Flávia Castro. Nessa orquestra, nascia Dayse. Nascia ali a história de uma mulher de quase 40 anos que tem sonhos, medos e o desejo de existir para além dos muros impostos.

Foram cinco semanas de ensaio e cinco de filmagem, em que me senti viva e em dia, não só com o meu tempo, mas com o tempo de Cyclone e de tantas outras mulheres que conheço e admiro. Durante o processo de ensaio, fui convocada a mergulhar no desconhecido. Tive medo. Aliás, tive medo dezenas de vezes ao longo desse percurso. Foram muitos anos convivendo com a ideia dessa personagem. Agora não tinha mais escapatória, ela precisava virar algo para além do sonho, para além de mim. Tinha finalmente chegado a hora: concretizar era a palavra de ordem. 

Foram horas trancadas numa sala de ensaio, sozinha com Maria Silvia, preparadora de elenco, tateando o impalpável, falando horas a fio sem pensar, tirando baratas do ouvido, dançando ao som de Patti Smith. Andei pelo centro do Rio com os olhos vendados, num gesto de inteira confiança e entrega. Passada a estranheza, era como se de repente eu estivesse perambulando invisível pelas ruas da cidade. E, para além dos ruídos e dos cheiros tantos – pipoca, esgoto, bolo de fubá –, me locomovia de forma plena e guiada pelas mãos de Maria Silvia, me entregava ao mistério e à escuridão. Me sentia só, mas tinha um universo inteiro pulsando dentro de mim. Ora bolas, se não era mesmo esse o espírito da minha personagem? E assim, aos poucos, de mãos dadas com o medo, fui construindo essa moça Cyclone, que era mais dura, mais solitária, mais corajosa e mais forte do que eu.

Vivemos momentos bonitos de comunhão no set. Com uma equipe majoritariamente feminina, tecíamos um filme sobre o passado, que nos parecia mais presente e inquietante do que nunca. Talvez seja essa a beleza do tempo que, com sua sabedoria de rei, costura, renova e fortalece o sentido das coisas. Éramos todas Dayse e sabíamos. 

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Maria de Lourdes Castro Pontes, a Cyclone
O longa “Cyclone” é um projeto pessoal de Luiza Mariani, que interpretou a protagonista no teatro e lutou por 20 anos para levá-lo para as telonas. Foto: Divulgação

Virando a página

Parece muito tempo, mas, também como num suspiro, Cyclone nasceu. E no último dia de filmagem, em 17 de maio de 2023, depois de uma noturna intensa que terminou às 9h da manhã no centro de São Paulo, ganhei flores das minhas produtoras entre lágrimas, aplausos e latinhas de cerveja. São essas mesmas flores que levei ao túmulo de Maria de Lourdes horas depois, no cemitério da Consolação. Eu tinha estado ali uma única vez, em 2007, quando, às vésperas de estrear no Sesc São Paulo, fui pedir licença e proteção. Anos depois, finalmente, me despedia de Cyclone. Era preciso deixá-la partir. Eu também precisava seguir sem ela.

Quando assisti ao primeiro corte do filme, fiquei espantada. Não me reconheci nela. Não entendi quem era aquela personagem, grave, que se apresentava diante dos meus olhos. Como um filho que não reconhecemos imediatamente ao nascer, fui tomada por uma sensação estranha – era assim que ela tinha nascido de mim depois de tantos anos?

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No cemitério, virada e um bocado do avesso logo depois da última noturna do filme, deixando flores para Maria de Lourdes, para Dasy. Com amor, Luiza. / Créditos: Arquivo pessoal

A minha ilha desconhecida agora tinha nome, endereço, sapato, sombra e luz. Foram muitos anos dividindo o mesmo corpo com Maria de Lourdes. A essa altura, em 2024, já me sentia sufocada pela própria personagem. Aquilo que dei vida e que me norteou agora parecia me exaurir por completo. Era importante virar a página. Fechar o livro. Encerrar a trama e abrir um novo caminho.

Para o aborto, no filme, Cyclone precisa fazer uma histerectomia, tirar o útero. Ao fim do longo processo de montagem do filme, descobri um carcinoma in situ, um câncer em estágio inicial, e precisei me submeter a uma mastectomia dupla, tirar as mamas. Mais um diálogo com Cyclone.

No caso dela, seu corpo estava submetido às regras e legislações de 1919 e foi condenado pela lei que ainda pune e mata uma mulher a cada dois dias no Brasil de 2025. Eu, apavorada, tive o privilégio de combater a doença e dar um outro destino para minha história, para o meu corpo – o mesmo que empresto para que novas histórias sejam contadas.

Posso dizer depois de tanto tempo que essa longa jornada me ensinou a ser resiliente, paciente, persistente. Me ensinou também que tem certas coisas na vida que não acontecem exatamente como a gente sonha e imagina – ah, como eu sonhei esse filme. E, no final, o que fica é mesmo a travessia, o realizar e os encontros que mudam a vida da gente, para sempre. Sigo aprendendo diariamente que o tempo, apesar de tudo, quando unido ao desejo, move mesmo cyclones e constrói coisas belas.

Estrear o filme no Brasil é como trazer uma personagem apagada da nossa história, enfim, de volta para casa

Cyclone estreou no Festival Internacional de Cinema de Xangai em junho de 2025 e depois seguiu viagem para o Festival Internacional de Cinema de Munique. Foi bonito e comovente ouvir de tantas mulheres na China e na Alemanha que um filme sobre uma mulher brasileira de 1919 ainda ecoa e faz tremer o coração. Ela, que morreu tão jovem e acreditava na força da arte, atravessou fronteiras através do meu corpo e saiu do esquecimento para reforçar questões sobre autoria, autonomia e liberdade, ainda tão caras a nós mulheres. 

Agora, estrear o filme no Brasil provoca uma emoção diferente – um misto de euforia, frio na barriga e sensação de dever cumprido. É como trazer uma personagem apagada da nossa história, enfim, de volta para casa. Talvez Maria de Lourdes nunca tenha imaginado que, 106 anos depois de sua morte, seu nome estaria mais vivo do que nunca. 

Como diria a própria nas páginas finais do seu diário: “É o milagre! É a maravilha! É o incrível! É o Sonho impossível que se firma! Amemos sem saber como nem porque e teremos realizado a maior gloria contemporanea!”

Valeu a pena. Seguimos.

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Maria de Lourdes Castro Pontes, a Cyclone
Cartaz de “Cyclone”. Foto: Divulgação