Branca Vianna fala sobre o podcast em torno do assassinato de Ângela Diniz por Doca Street e seu impacto no movimento feminista da época
Você pode não ter vivido os anos 70, mas ainda assim ter ouvido falar sobre o assassinato de Ângela Diniz pelo seu então namorado Doca Street, em 1976, na Praia dos Ossos, em Búzios (RJ). Na noite de 30 de dezembro daquele ano, a socialite mineira colocou um ponto final no relacionamento. Doca foi embora, mas, inconformado, voltou e deu quatro tiros em Ângela. O assassinato – que poderia ocupar as manchetes de hoje, diante das altas taxas de feminicídio no Brasil –, marcou a época e a geração de Branca Vianna, então com 14 anos.
Apresentadora de Maria vai com as outras, podcast sobre a relação da mulher com trabalho, família e outras esferas, e criadora de uma produtora de podcasts, a Rádio Novelo, Branca ficou surpresa ao descobrir, numa conversa despretensiosa, que uma colega mais jovem não conhecia a história de Ângela. “Eu lembrava não só do assassinato, mas da defesa do Doca, da movimentação feminista porque minha mãe [Branca Moreira Alves] é uma das pioneiras do feminismo no Brasil, nos anos 70”, conta à Tpm.
Branca viu no caso um potencial podcast, não para os fãs da linha true crime, já que nunca houve mistério em torno do crime, mas para quem se interessa pelo episódio, pela época, pela evolução da legislação do Brasil relacionada aos direitos da mulher e por feminismo. “O episódio foi um ponto importante de virada do movimento”, conta. O que se seguiu ao feminicídio foi uma cobertura em boa parte machista pela imprensa, que retratou Ângela como uma libertina – e não apenas uma mulher livre — , enquanto a defesa alegou legítima defesa de honra de Doca, sentenciado a uma pena branda, dois anos, dos quais cumpriu um terço. “Ele a matou, mas na imprensa, na opinião pública, virou a vítima”, diz Branca.
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Praia dos Ossos, que estreou no último sábado e terá outros sete episódios semanais, contextualiza isso e mais. Em dois anos, Branca e a pesquisadora Flora Thomson-Deveaux ouviram mais de 60 pessoas em Belo Horizonte, Búzios e no Rio de Janeiro, mergulharam em arquivos de TV, jornais, revistas da época, em um projeto que teve mais de 40 pessoas envolvidas. Antes que o podcast fosse concluído, a Conspiração comprou os direitos para uma série ficcional. Branca conversou com a Tpm sobre o caso, o feminismo da década de 70 e feminicídio no Brasil.
Tpm. Houve alguma espécie de revisão jurídica do caso? Você vê reflexos dele nos dias de hoje?
Branca Vianna. O argumento da legítima defesa de honra nunca existiu no Código Penal. Existe legítima defesa, não legítima defesa da honra, mas os advogados usavam isso com muita frequência. Ainda tem quem use isso hoje, mas acaba sempre derrubado na segunda instância, não é mais aceito. Às vezes, tentam usar isso para diminuir a sentença, mas hoje em dia já não cola muito até porque há a Lei do Feminicídio [de 2015]. Não sei te dizer se dá para traçar um paralelo entre o julgamento do Doca e os dias de hoje, porque muitos anos depois continuou havendo essa defesa da honra. Depois dele, há casos conhecidos de parceiros que mataram as mulheres e foram absolvidos por legítima defesa, alguns até mais de uma vez.
A cobertura em torno do julgamento foi machista? Sim, não de toda a imprensa, mas uma parte considerável foi bastante machista. A Manchete foi um exemplo disso. Era uma revista muito popular na época e suas matérias eram de um modo geral muito machistas com relação a Ângela, condenando a atitude dela. Ela era separada do marido, namorava uma pessoa e, quando terminava, namorava outra. Queria terminar com o Doca, e ele não. Mas a Manchete tratava o fato de ela ser desquitada, a mulher fatal, que namora, como se fosse um enorme pecado, algo que merecesse um castigo. Uma parte considerável da imprensa tratou dessa forma. O Jornal do Brasil chamou o Fernando Fragoso, que era um grande advogado da época, para acompanhar o julgamento e ele fez uma cobertura excelente, explicando tudo e dizendo que julgamento havia sido machista e que a defesa era muito machista. O Artur Xexéo [hoje colunista d'O Globo e escritor], que era um jovem repórter do Jornal Brasil, também cobriu dessa maneira e ficou muito chocado com o que ouvia, que ela merecia morrer porque era uma libertina. A opinião pública se voltou muito rapidamente a favor do Doca, tratando o assassinato dela como crime passional. Hoje em dia as mulheres continuam morrendo às pencas em feminicídios, mas as pessoas não chamam mais de crime passional. Isso é uma coisa que ficou para trás, crime passional é feminicídio. Na época, ele virou um herói porque ele matou – “Que pena que ela morreu, mas ele matou por amor, porque ela era sedutora demais, o provocava demais”. Ele a matou, mas na imprensa, na opinião pública, virou a vítima.
Como era o movimento feminista da época do qual sua mãe fazia parte? E como o caso impactou as feministas? Esses encontros aconteciam muito na minha casa e na de outras mulheres. Na época, se chamava grupo de reflexão, principalmente porque era um grupo de estudo, mas também de conversa, em que essas mulheres se juntavam para falar sobre questões políticas, estruturais e pessoais também. Para falar de sexo, casamento, maternidade, amizade e entendendo todas essas questões como políticas. Um dos lemas da época era “o [aspecto] pessoal é político”. E liam juntas as feministas brasileiras, literatura sufragista, alguma literatura feminista do século 19 e a literatura feminista estrangeira. A gente tem que lembrar que naquela época a ditadura militar estava no auge, você não podia sair fazendo protestos na rua impunemente, tinha um risco real de prisão, de tortura. Era um movimento que estava começando e, quando aconteceu o julgamento do Doca e ele teve uma sentença muito leve, aconteceram também outros assassinatos de mulheres, em série – como sempre acontece. Isso deu um certo gás no movimento feminista, que começou a se organizar como movimento social. Não é fácil organizar um movimento nacional, mobilizar pessoas em várias cidades, organizar manifestação, aprender a conversar com a imprensa, com o governo, começar a montar estruturas permanentes para o movimento. Foi um ponto de virada no movimento feminista, nesse sentido.
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Temos falado muito mais sobre feminismo nos últimos anos, mas as taxas de feminicídio não diminuíram e tiveram um aumento durante a pandemia. Consegue ver explicações para isso? Eu acho que o motivo de não evoluir é simplesmente o patriarcado, o machismo estrutural, mesmo. Esses homens matam as mulheres muitas vezes na hora que elas querem separar ou depois, quando elas começam a namorar outra pessoa. É simplesmente porque existe essa noção de que a mulher pertence ao homem, de que ela tem que fazer o que ele quer. Sempre há motivos que são dados que não são a razão real desse crime – “Ah, porque ele bebia”, “porque ele está o tempo todo em casa na pandemia”, “porque ela queria se separar”, “porque ela teve um caso com o vizinho”, “porque ela queimou o feijão”. A motivação real é que o cara acha que é o dono dela e ela fez alguma coisa que ele não gostou e, na cabeça dele, pode fazer o quiser com ela. E isso porque a gente vive ainda numa sociedade patriarcal em que os homens se consideram e agem como donos das mulheres. Não tem outra explicação.
Você acompanhou a sua mãe e outras feministas da década de 70, apresenta um podcast centrado na mulher. Como você a discussão feminista hoje? Avançamos, de fato? Acho que a gente avançou muito. Uma das coisas que a gente traz nesse podcast é como era ser mulher naquela época – que perrengue, que difícil. Continua sendo, principalmente para as mulheres mais pobres, negras. O movimento feminista negro sempre existiu, desde o Império, não se chamava feminismo, mas já existia uma militância negra feminina muito forte. Mas acho um avanço enorme o fato desse feminismo jovem, negro agora estar na imprensa, em todo o lugar, e gente que não é ligada ao movimento conhecer, saber quem são essas pessoas, se interessarem. Acho maravilhoso, acho elas incríveis, tenho muita admiração. Mais poder para elas.