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O que faz a coordenadora de intimidade em um filme?

por Julia Alimonda

As denúncias de abuso sexual em Hollywood levaram à criação de uma função no cinema que busca garantir que os limites das atrizes sejam respeitados em cenas de nudez e sexo

Na última temporada de premiações, dois filmes que colocam o prazer feminino em pauta se destacaram: Babygirl (2024) e Anora (2025). Em Babygirl, Romy, interpretada por Nicole Kidman, é uma CEO bem-sucedida que põe sua carreira em risco ao se envolver com um estagiário. Já em Anora, a personagem-título protagonizada por Mikey Madison no filme vencedor do Oscar é uma stripper que se apaixona por um cliente.

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As duas produções fazem parte da nova onda de filmes que voltaram a exibir cenas sexuais, mas possuem uma diferença crucial em termos de produção: em Babygirl, uma coordenadora de intimidade supervisionou as cenas íntimas – contribuição que a diretora e as atrizes declararam ter sido essencial para o processo de filmagem. Já a protagonista de Anora causou certa polêmica após ter afirmado que recusou a opção de ter esta função na equipe do set.

Mas afinal, o que exatamente significa isso? A coordenadora de intimidade é uma profissional responsável por supervisionar e coreografar as cenas que possuem sexo ou nudez em filmes, séries, reality shows ou até mesmo peças de teatro. Ela faz a mediação entre a direção e as atrizes, garantindo o conforto e a segurança dos envolvidos. Além disso, a função também pode ser acionada em gravações que contenham beijo, cenas íntimas com atores menores de idade ou cenas de parto.

Segundo a coordenadora de intimidade Larissa Bracher, que supervisionou a série da Globoplay Justiça 2 (2024), antes da profissão existir era comum que as cenas de sexo não fossem coreografadas. Os diretores deixavam que os atores combinassem entre si os movimentos que fariam no camarim antes de entrar para gravar. Durante a filmagem, o diretor também podia ter novas ideias e pedir que os atores fizessem algum movimento que não havia sido acordado anteriormente.

Um dos casos emblemáticos que exemplificam como a sociedade entendia o consentimento e como lidava com os corpos femininos é o filme Último Tango em Paris (1972), em que o diretor Bernardo Bertolucci e o ator Marlon Brando decidiram filmar uma cena de estupro que não estava no roteiro sem avisar a atriz Maria Schneider. O objetivo criativo da direção era captar emoções mais realistas, mas, décadas depois, ela revelou que se sentiu violada ao realizar a cena.

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Ao longo da história do cinema, muitas atrizes aceitaram fazer coisas que passavam dos seus limites porque não se sentiam confortáveis para recusar. Para Larissa Bracher, a coordenação de intimidade serve para proteger os atores desta dinâmica de poder desigual, afinal, na hierarquia eles estão abaixo da direção. Como em muitas relações de trabalho, as atrizes podem acabar passando dos seus limites físicos e emocionais na tentativa de não bater de frente com o chefe. 

“Pela primeira vez em uma dinâmica de poder, o subalterno tem o direito de dizer 'não'", explica Larissa. "Além de termos uma preocupação com a equidade de gênero no set, a coordenação de intimidade é uma função que advoga pelo bem-estar dos atores e desafia padrões estabelecidos em dinâmicas de poder”.

A profissão, normalmente exercida por mulheres, não serve apenas para policiar o set, proibindo qualquer cena de sexo e nudez. As coordenadoras de intimidade buscam garantir que todos os profissionais se sintam confortáveis, contribuindo com mudanças não só nas relações de trabalho, mas também nas representações audiovisuais. Ao invés de querer censurar a sexualidade, as profissionais entendem a relevância do tema no bem-estar da equipe e no produto final.

A ideia de que as coreografias sexuais não precisavam ser planejadas é um reflexo de como a nossa cultura enxergava a sexualidade, entendendo que o sexo só precisava ser feito de uma forma, sem espaço para a criatividade. Hoje, o prazer feminino, por exemplo, é tido como algo relevante e a sexualidade entendida em sua complexidade, sendo uma ferramenta narrativa para contar a história das personagens.

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Por este motivo, uma das funções da coordenação de intimidade é colaborar criativamente com a direção, sugerindo novas formas de narrar a história através das cenas íntimas. A profissional pode questionar estereótipos de gênero e raça, contribuindo para uma mudança nas representações e tornando a sexualidade presente nas obras mais madura. Afinal, sexualidade não é só o ato sexual. "Ela está em tantos lugares: num olhar frente a frente, numa respiração, num toque, no roçar de pele com pele", explica a coordenadora de intimidade Roberta Serrado, responsável por supervisionar as cenas íntimas de filmes como Motel Destino. "A sexualidade pode ser contada de diversas maneiras, o corpo fala de diferentes maneiras”.

A profissão se consolidou no mercado estadunidense após o Me Too, movimento contra abuso sexual em locais de trabalho que se popularizou nos EUA em 2017. Neste período, várias violências sexuais em Hollywood foram reveladas e, com isso, a indústria cinematográfica passou a se preocupar mais com as filmagens de nudez e sexo. A primeira série a utilizar a coordenação de intimidade foi The Deuce (2018), da HBO, a pedido da atriz Emily Meade, que sugeriu que existisse uma profissional para supervisionar as cenas de sexo, como acontece com as cenas de luta.

No Brasil, a função começou a ganhar reconhecimento em 2021, ano em que as primeiras coordenadoras de intimidade formadas começaram a atuar por aqui. Segundo Roberta Serrado, a maioria dos profissionais do audiovisual vê a função de maneira positiva. Ela acredita que houve uma reeducação dentro dos sets de filmagem em relação a como se comportar em gravações de cenas de nudez e percebe que a indústria se adaptou às novas concepções de consentimento e de ética.

“O corpo está contando a história junto com o texto do roteiro, um não pode estar desconectado do outro”, explica Roberta. Ao invés de deixar a atuação mecânica, o trabalho da coordenação de intimidade faz com que os atores se sintam mais confortáveis, o que pode resultar em uma melhor interpretação. Por este motivo, é preciso ensaiar como os movimentos corporais irão transmitir as emoções necessárias. Como o sexo pode ter múltiplos significados ao longo da narrativa, a expressão corporal também muda, dependendo do que o roteiro pede. Os movimentos dos atores em uma cena de violência sexual não podem ser os mesmos de uma cena romântica, por exemplo.

No dia a dia da profissão, primeiro elas conversam com a direção sobre o que é esperado das cenas de intimidade. Depois, consultam particularmente os atores para garantir que seus limites não sejam violados e pensam em como a coreografia pode ser montada. Elas também combinam com os departamentos de maquiagem e figurino qual será o tapa-sexo utilizado.

A profissão de coordenação de intimidade veio para ficar na indústria do entretenimento, e essa transformação é também uma conquista dos movimentos feministas. “Para além da técnica, essa função é uma afirmação de valores e de direitos, é uma função política na medida em que afirma uma mentalidade da cultura”, diz Larissa. Ao garantir que a ética faça parte das relações sociais e trabalhistas, essa mudança fortalece a cultura do consentimento.

Mas uma situação de abuso pode acontecer em qualquer relação de trabalho – e a coordenação de intimidade não é uma segurança apenas para as mulheres. Roberta Serrado percebe que os atores também têm preferido trabalhar com a sua mediação: “Tenho visto um movimento de homens aceitarem bem essa função porque é para proteger toda a equipe também”.

É claro que a função não deve ser apenas um checklist progressista para as produtoras passarem a imagem de empresas éticas. Além disso, a falta desta profissional em uma produção não pode virar motivo de cancelamento: é possível fazer filmes em que a voz das atrizes seja ouvida sem a presença de uma coordenadora de intimidade no set. "No caso da recusa de Mikey Madison em ter uma coordenadora de intimidade em ‘Anora’, o que me preocupa é que, ao ela dizer ‘não', o resto do elenco perdeu a oportunidade de trabalhar com uma profissional”, diz Larissa Bracher. “Mas as atrizes falarem de forma tão aberta e esclarecedora sobre essa presença no set é uma oportunidade maravilhosa para a gente refletir".

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Imagem principal: Reprodução / Divulgação

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