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Coisas importantes também serão esquecidas

por Redação

Aos 39 anos, grávida de gêmeos no meio de uma pandemia, a atriz e escritora Martha Nowill resolveu colocar em um diário a avalanche que tomou sua cabeça

Era dia 27 de junho de 2020 quando Martha Nowill viu dois pauzinhos ficarem azuis no seu teste de gravidez. “Positivo. A gente se abraçou. Não fiquei feliz nem triste, só aliviada por ter algo concreto sobre um assunto que me atormenta há anos”, escreveu a atriz em seu diário. Era o auge da pandemia e pouca coisa se entendia sobre o que estava acontecendo com o mundo – e o que seria dele.

O turbilhão de sentimentos, pensamentos, angústias, medos e alegrias que ela experimentou na gestação e nos primeiros meses de vida dos gêmeos Maximilian e Benjamin se transformou no livro “Coisas Importantes Também Serão Esquecidas”, publicado este ano pela Companhia das Letras.

Sem romantização, ela expõe a náusea, o cansaço, as contas que não fecham, o medo da morte e o pavor de perder a própria identidade – tudo isso em um diário íntimo e cru que tem um pouco de muitas de nós. Leia alguns trechos a seguir.

20 de julho

Acordo assustada às quatro da manhã. “São dois”, lembro. Não fosse pelo sangramento, só saberíamos dos gêmeos daqui a um mês, na data do ultrassom morfológico. Nada me tira da cabeça que aqueles dois saquinhos fizeram a gente ir parar no pronto-socorro de propósito, só para a gente saber da existência deles. Danados.

21 de julho

Meu enjoo se estende a lugares. Às vezes estou no quarto e penso: “Imagine que enjoo eu ir pra sala agora”. Ou me lembro da fila do supermercado e uma onda de mal-estar toma conta de mim. E só de pensar na lavanderia de casa, meu estômago revira. Aos poucos, o mesmo começa a acontecer em relação às pessoas.

16 de agosto

Ontem vim dormir na casa da minha mãe. Eu e Luiz temos brigado muito e sinto que isso faz mal aos bebês. Ele me ajuda em tudo, faz massagem no meu pé, é meu parceiro, mas não tem dimensão do que é uma gravidez. Nenhum homem tem. Se os homens engravidassem, o mundo seria um lugar diferente.

3 de setembro

Roseli pede que eu fale dos meus medos. Eu simplesmente não consigo parar de enumerar: medo de nunca mais dormir, de não ter dinheiro suficiente, da minha barriga explodir, de eu não ter mais trabalho, do bico do meu peito rachar e sangrar, de ter depressão pós-parto, dos meus filhos nascerem pequenos demais, de eu virar uma mãe louca, de não amá-los.

3 de setembro

Medo da minha vagina rasgar num parto normal, das sete camadas do corte profundo de uma cesárea, de emburrecer, de me tornar uma mulher desinteressante, do Luiz não me amar mais. Não consigo parar. Luiz fica imóvel como uma estátua ao meu lado. Ela faz a mesma pergunta para ele. Luiz para por alguns instantes, mas não consegue lembrar de nada.

11 de setembro

Todos ao redor estão protegidos, o que me dá a sensação de estar nos corredores de uma nave espacial. Vejo meu avô morto na cama. Pego o celular e coloco uma valsa vienense. Ele adorava música clássica, passou parte considerável de sua vida sentado na poltrona de camurça da biblioteca lendo e ouvindo valsas, óperas e sinfonias. Choro. Queria muito que ele conhecesse meus filhos.

13 de dezembro

Por alguns minutos, esqueci que estava grávida, e foi a coisa mais estranha do mundo quando lembrei.

2 de fevereiro

‘Quando vier a próxima contração, você vai fazer força.’ Já??? Não tenho ideia do que fazer. Lembro das milhares de cenas de novela com mulheres gritando e empurrando bebês para fora, e ali estou eu, doze horas depois de ter começado o soro com a ocitocina, com fome, tremendo de medo.

9 de fevereiro

Sinto uma tristeza e uma alegria absolutas e muito compatíveis. Às vezes me afasto, só para poder chorar, como se eu tivesse que abrir uma válvula e deixar drenar. Se eu não abro algumas vezes ao dia, ela abre sozinha, como uma barragem que rompe. Penso constantemente num trecho do primeiro poema que li de Álvaro de Campos: “Abra as eclusas. E basta de comédias na minh’alma!”

Créditos

Imagem principal: Arquivo pessoal

Fotos: Arquivo Pessoal

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