Nataly Rocha: a violência está em todo lugar

A atriz cearense fala sobre as violências que acessou para fazer ”Motel Destino”, a falta de representatividade do Nordeste nas telas e como um elogio de Fábio Assunção transformou sua personagem

Os jardins projetados por Burle Marx do Theatro José de Alencar, no centro de Fortaleza, sempre intrigaram a pequena Nataly Rocha. Moradora de Vila Pery, na periferia da cidade, ela passava as tardes observando fascinada não só o paisagismo que abraçava o teatro de estilo art nouveau, como a diversidade de pessoas que por ali circulavam: artistas ensaiando suas peças, tatuadores, hippies e ciganas. Seu pai, Ivan, era vendedor de sapatos em uma loja ao lado e, apesar da proximidade espacial, Nataly só pisou pela primeira vez no interior do teatro aos 17 anos.

Sua entrada inaugural se deu para a inscrição no curso Princípios Básicos de Teatro, dentro do próprio José de Alencar, instigada após gostar da excitação experimentada ao declamar poemas com colegas da escola. No teatro, a sensação era de finalmente “estar onde era para se estar”, recorda. Somente após algumas semanas Nataly assistiu a sua primeira peça, de um grupo local chamado “Bagaceira”. Ela conta ter fingido costume para uma amiga, na ocasião, a fim de não causar estranheza. “Não tive muito acesso à cultura na infância”, explica a atriz de 38 anos, em conversa por videoconferência com a Tpm, da casa em que morou sua avó, com uma bananeira no quintal, e que hoje é sua.

Desde então, Nataly nunca mais se viu fora dos palcos. “Infelizmente”, brinca, lembrando da instabilidade da profissão e a falta de representatividade cearense no grande circuito. Ela conta nos dedos das mãos as artistas locais que conseguiram romper essa barreira. Para a atriz, existe ainda um olhar estereotipado dos artistas nordestinos: “Acham que daqui só saem humoristas. Mas nossas atrizes são maravilhosas, só precisamos de oportunidade. Por que nunca tivemos uma grande atriz cearense nos holofotes, como uma Fernanda Montenegro da vida? Nem precisa ser do quilate de Fernanda, pode ser menos. A gente não está se vendo nas telas como deveria”, critica ela, que já participou de espetáculos como “Palco Giratório” e “Ultralíricos”, séries como "Justiça" e "Segunda Chamada", ambas da Globo, além de dez longas e oito curta-metragens.

Em cartaz com sua primeira protagonista nos cinemas, no thriller erótico “Motel Destino”, dirigido pelo também cearense Karim Aïnouz e ovacionado por longos doze minutos em sua estreia no Festival de Cannes, Nataly revela que não sentiu nervosismo algum em debutar no tapete vermelho francês: “Encarei como uma performance. O filme, que era o mais difícil, já tinha feito. Estava num lugar de celebração”. “Motel Destino”, que estreia nos cinemas no dia 22 de agosto, foi descrito pelo jornal “The Guardian” como um “thriller noir erótico brasileiro com atuações fantásticas” e pela Vanity Fair como “o filme mais sexy de Cannes, mirando no político”. O longa narra um triângulo amoroso entre os personagens de Nataly, Fábio Assunção e Iago Xavier e traz à tona debates sobre racismo, machismo e violências contra as mulheres.

Sobre sua preparação, Nataly conta que demorou a chegar na atual construção de Dayana, sua personagem, e que um aparente elogio de Fábio Assunção à sua atuação foi justamente o ponto de reviravolta. “Se o Fábio está gostando, então talvez o personagem Elias também esteja gostando. Eu tinha que, de alguma forma, causar algum tensionamento. Ainda mais ele, galã, branco, de olho azul”, explica.

A atriz diz ter se inspirado em mulheres reais para compor sua personagem, que é vítima de violências por seu parceiro no filme, papel de Fábio. “O Brasil é um país muito machista. Não foi difícil acessar esses lugares porque a gente vê, basta sair na rua”, aponta Nataly. Ela ainda criticou o Projeto de Lei 1904, conhecido como “PL Antiaborto”, que equipara a interrupção da gestação acima de 22 semanas a homicídio no Brasil. “É uma violência, muitas mulheres, principalmente as pobres, morrem por não terem um aborto legal. Esse controle sobre os nossos corpos é acima de tudo um desejo de controle os nossos sonhos”. 

Tpm. Quais são suas memórias de infância em Fortaleza?

Nataly Rocha. Tive uma infância simples, na periferia de Fortaleza. Meu pai passou 18 anos vendendo sapatos em uma loja no centro da cidade e minha mãe, dona de casa, ajudou a criar as crianças da família. Só depois de mais velha foi estudar biblioteconomia. Ela era aquela pessoa de uma família grande que dava suporte para que as outras conseguissem trabalhar. Alguém tinha de fazer o serviço doméstico e criar as crianças – que é algo muito complexo. Nosso grande lazer era a praia, no litoral cearense. Lembro de muitos piqueniques. Como morava na periferia, não tinha muito acesso à cultura. Fui mais incentivada a praticar esporte, como corrida, futebol e vôlei. E eu jogava bem. Mas comecei a fazer teatro e ficava com medo de me machucar. Pensava: “Meu Deus, ou eu jogo ou vou me apresentar no final de semana com a perna toda machucada”. E não dá para jogar com medo de se machucar...

Como você chegou ao teatro? Meu pai trabalhava na loja de sapatos Casa Pio, ao lado do Theatro José de Alencar. Sempre que precisávamos comprar alguma coisa no centro, ou ir ao dentista, a gente visitava meu pai. E eu ficava olhando para aquele teatro, tão lindo! Me chamava muita atenção o jardim, projetado pelo Burle Marx. Sempre fui muito ligada à questão ecológica e queria salvar as baleias, o planeta e tudo mais. Eu olhava para o jardim, do lado de fora, imaginando o que acontecia do lado de dentro. Às vezes passava alguém ensaiando e eu ficava viajando muito nisso. Também tinha uma galera fazendo tatuagem, uns hippies, umas ciganas... Tudo pra mim era incrível, parecia outro mundo. Até os sons eram diferentes. Aos 15 anos, comecei a declamar poemas com um grupo de estudantes da minha escola. A primeira vez que me apresentei foi na praça de alimentação de um shopping. Zero glamour. Lembro de não ter conseguido dormir de tão feliz que eu estava e pensei: “Quero fazer isso”. Nessa altura já tinha me esquecido de ser ecologista. Fiquei nesse grupo dos 15 aos 17, 18 anos, lendo poemas em diversos lugares. Queria me aprofundar e passei a frequentar o curso Princípios Básicos de Teatro no próprio José de Alencar. Esse curso é muito importante na cidade e já formou em torno de uns 9 mil artistas, como Silvero Pereira e Jesuíta Barbosa. Depois fui aluna da última turma do Curso de Arte Dramática, extensivo da Universidade Federal do Ceará, e cursei Artes Cênicas no extinto Cefet. Comecei também uma especialização em semiótica, mas não terminei.

E quando foi a primeira vez que assistiu a uma peça? Você lembra qual foi? Eu já tinha 17 pra 18 anos, e foi somente após começar a fazer teatro. Assisti a “Ano 4 D.C”, de um grupo chamado “Bagaceira”. Fui com uma amiga e fingi que já tinha assistido a outras peças. Afinal, como eu estaria estudando teatro sem nunca ter ido em um antes? A sensação era de estar em um lugar onde era para estar, familiar.

Até chegar aqui, o que já fez de trabalhos em sua vida? Já fui animadora, palhaça de estabelecimento, já fiz atuação para uma prova chamada “Revalida”, para médicos que precisam validar o diploma. Mais de 50 atores participam dessa prova e é como se fôssemos pacientes em um atendimento. É uma prova seríssima, a gente recebe o roteiro no dia e não pode sair mais. Gosto muito de trabalhar com estudantes de cinema, eles têm um pensamento bem atual, são questionadores. Estar perto dessa galera me recicla, me mantem atenta. A única carteira assinada que eu tive na vida foi na Globo, quando trabalhei na série “Segunda Chamada”, e em um abrigo em que fui professora de teatro para pessoas com deficiência intelectual. Essa convivência me deu um lugar de humanidade muito forte pra tudo que eu viesse a fazer depois, sendo atriz ou não. Percebi o quanto a gente se importa com coisas que não são importantes.

Você imaginava um dia estar em Cannes? É engraçado, porque pensando agora na experiência de Cannes... Eu estava super ambientada! Não tive nervosismo, mas sim uma sensação de que nasci pra isso. Gosto tanto dos lugares da minha profissão que me sinto muito confortável. Me sinto bem em set de filmagem, no teatro... Mais confortável do que numa igreja. Encarei Cannes como uma performance. Eu já tinha me apresentado para mais de mil pessoas em um teatro municipal do Rio de Janeiro, com uma peça de três horas de duração, e pensei: “O tapete vermelho vai ser só uma performance. O filme, que era o mais difícil, já tinha feito”. Estava num lugar de celebração. Sempre tive muito pé no chão, porque a coisa se faz no dia a dia, sempre trabalhei muito. Já perdi muitos eventos e festas porque estava sempre trabalhando, mas também sempre sonhei alto.

Li uma entrevista em que você dizia não conhecer nenhuma atriz cearense que envelheceu sendo atriz tendo uma vida digna... Teve gente que depois comentou que tinha fulana, ciclana, mas dá para contar nos dedos de uma mão. Ainda assim, elas tinham outro trabalho. É muito sintomático não existir nenhuma cearense, sendo o Ceará um espaço de formação e atores e de atrizes há tanto tempo. Gasparina Germano [uma das mais importantes e famosas atrizes do teatro cearense, que brilhou nas décadas de 1930 e 1940] envelheceu pedindo esmola. Fico sempre muito triste porque quando o artista adoece precisa fazer vaquinha para o tratamento, quando morre, precisa fazer vaquinha para pagar o caixão. Isso é muito forte. Silvia Moura [bailarina, coreógrafa e atriz, com quase 50 anos de profissão] é um patrimônio, já formou muitos bailarinos, mas mora de aluguel, e precisa estar trabalhando e se apresentando o tempo todo. Algo precisa ser feito. Porque a cultura movimenta muito. Ela é o registro do nosso tempo. Sem cultura, como a gente vai deixar aos próximos nossa passagem pelo mundo?

Por que apesar de toda essa riqueza cultural do Ceará, os artistas seguem ofuscados? Porque falta interesse e existe ainda um olhar estereotipado do Nordeste, acham que daqui só saem humoristas. Mas nossas atrizes são maravilhosas, só precisamos de oportunidade. Por que nunca tivemos uma grande atriz cearense nos holofotes? Uma Fernanda Montenegro da vida? Nem precisa ser do quilate de Fernanda, pode ser menos. Mas não tem. A gente não está se vendo nas telas como deveria, por muito tempo. Aqui no Nordeste a gente consome tudo, novelas, séries, então por que não estamos nos vendo, sabe? É um problema a se resolver.

Essa falta de representatividade já te fez desacreditar no futuro de sua profissão? Sim. É sempre um fantasma. Não é fácil. Como diz o Ary Fontoura, a gente está sempre desempregado, sempre buscando, sempre sendo testado. É um lugar muito delicado. Não tem como não entrar em crise e ficar ansioso. O teatro ainda é lugar mais democrático, ele vai te abraçar, você pode inventar e criar coisas, apesar de financeiramente não ser o ideal. Agora mesmo estou trabalhando em um projeto de leituras dramáticas de peças de autores cearenses com música ao vivo. Recentemente também criei uma performance ecológica, chamada Projeto Gestar, com a Secretaria de Cultura daqui, em que distribuímos mudas, um panfleto-manifesto que vira semente, conversamos com moradores e contamos histórias sobre o nosso bairro de Vila Pery.

Como foi assistir ao filme pela primeira vez em Cannes? O resultado final foi diferente do que havia imaginado? Assistir em Cannes foi um furacão, com mais 2 mil pessoas, e eu sendo filmada tanto antes como depois da sessão. Eu tinha saído de um estirão de coletiva de impressa, de manhã e à tarde, e quando fui assistir ao filme já estava até meio zonza. Ainda assim, foi muito emocionante estar ali e ser parte de um festival como o de Cannes. Eu achei o filme muito ágil, as cenas se resolvem rapidamente. Achei interessante. Filmando eu não conseguia prever como as cenas iriam se desenrolar, porque eram vários ângulos.

Como foi o processo de preparação para o filme? Li que vocês fizeram um intensivo dentro de um motel de verdade. O que encontrou por lá? A gente foi visitar um motel em funcionamento, em Beberipe [no Norte cearense], eu, Fábio Assunção e a Sílvia Lourenço. Fomos entender um pouco a dinâmica, a rotina da portaria, da lavanderia, ouvir casos que aconteceram no motel, quais objetos eram encontrados, as medidas de segurança... Isso tudo me ajudou a compor a esfera do lugar. Existe um certo mistério. Como o motel era ainda na beira de estrada, a atendente não podia contar pra ninguém onde trabalhava. Era uma forma de manter a localização em sigilo, já que muita gente frequentava o local com amantes. E é muito doido porque iam inclusive parentes da atendente, que frequentavam o motel e nem sabiam que ela trabalhava lá, porque a portaria é espelhada. Como o motel ficou uns três meses interditado para as filmagens, os clientes reclamaram porque precisaram ir pra outra cidade atrás de motel.

Quais são os encantos de um motel? Tem essa coisa de ser um lugar acima de qualquer suspeita, para o bem e para o mal. Você tem uma liberdade muito grande e isso também é um pouco assustador, porque pode acontecer alguma violência. Também tem esse fetiche de você ir para um lugar que é um lugar de transar, poder escutar barulho dos quartos vizinhos. Tudo isso gera algum frisson. Às vezes você está viajando e a cidade tem mais motéis do que hotéis. Motel te recebe a qualquer hora da noite, além de ter essa coisa de não ser incomodado. Você só precisa dizer que está vivo, de tempos em tempos, por medida de segurança.

Como assim? Existe essa medida de segurança. Quando passa um tempo, eles interfonam para os quartos para saber se a pessoa está viva. É diferente de um hotel, que tem camareira, que as pessoas descem para o café da manhã.

Em Cannes, as pessoas entenderam o que era um motel? Porque é um formato que não existe por lá, né? Sim, mas o filme explica bem. Já era uma preocupação de Karim mostrar como era o funcionamento desse espaço, porque a gente sabia que as pessoas não saberiam o que era.

Como é o filme “Motel Destino”, na sua visão? É um filme que vai lidar com várias questões relacionadas a gênero, sexualidade, violência contra a mulher, racismo e uma busca por uma vida melhor. É um filme desafiante pela própria estrutura, pelas cores, pelas músicas, pelos animais em cena... Tudo te leva a um lugar de delírio. Engraçado que tinha um gato do próprio motel, e ele acabou entrando no filme. “Motel Destino” tem uma grande pulsão de vida. Os personagens têm uma vontade grande de viver e sabem lidar com as dificuldades de uma forma muito densa. Acho que o filme traz essa vontade do Karim de se ariscar, acima de tudo. São escolhas bastante ousadas. Eu falo que é o novo Karim 2.0.

Como é a sua personagem, a Dayana? Vou te dizer uma coisa e talvez o Fábio Assunção fique com ódio de mim. Mas estava na dúvida sobre a construção da minha personagem, insegura do caminho que Dayana estava indo. Não estava gostando, tava achando fraco. Um dia, Fábio disse que estava gostando muito de como eu a estava criando. Era um elogio. Mas ouvi aquilo e pensei: “Então tenho que fazer o contrário”. Esse elogio me soou péssimo, era a pior coisa que eu poderia ouvir. Ele está dizendo que está bom, mas não está bom! Aí entrei nessa pira. Nunca falei isso pra ninguém. Eu já estava enlouquecida por conta do personagem dele, já estava tudo misturado.

Você não acreditou no elogio? Achei que ele tinha gostado porque eu estava quase sendo uma escada para o personagem dele. E eu não queria ser. Estava achando péssimo, porque uma mulher que sofre tantas violências e não tem uma voz mais ativa e não reage, fica sufocada. Ainda mais ele, galã, branco, de olho azul, superconfortável dizendo que eu estava maravilhosa. Esse foi o melhor conselho, porque me ajudou muito. O Fábio estuda muito o personagem dele. Pensei: se o Fábio está gostando, então talvez o personagem Elias também esteja gostando. Fiquei com a sensação de que estava confortável pra ele, enquanto ator, mas e para mim? Estava muito desconfortável. Eu tinha que, de alguma forma, sem desrespeitá-lo, causar algum tensionamento. Por isso resolvi fazer tudo ao contrário e foquei em desfazer em cena tudo o que ele estava fazendo. Por exemplo, numa cena do churrasco, ele dá um beijo em minha personagem. Mas quando ele vira de costas, eu limpo a boca. O personagem não via, nem o próprio Fábio via. A minha personagem não podia bater tão de frente, as vezes precisava recuar um pouco, pois ela tinha que saber como sobreviver a essas violências. Eu fui aos poucos encontrando essa personagem. O Fábio vai achar engraçado ao ler isso, a gente se deu super bem, mas tinha que ter esse segredo da minha personagem, sabe? Outra preocupação que tive foi com o personagem de Iago, Heraldo, porque sendo eu uma pessoa não negra, tendo desejos sexuais por um rapaz negro, de que forma a minha personagem se relacionaria com ele sem sexualizá-lo? Tentei trazer algum carinho, um lugar de igualdade, para que ele não ficasse nesse lugar de “um cara gostoso”.

Sua personagem é vítima de diversas violências. Infelizmente, acho que todas nós já sofremos algum tipo de violência e passamos a vida inteira ouvindo histórias de pessoas próximas a nós. Onde você foi para acessar essas violências? A violência está em todo lugar, está no nosso dia a dia. Eu não pego Uber de madrugada porque tenho medo de ficar sozinha com um homem. Prefiro pegar Uber moto, porque fico visível. São diversas violências. E muitas vezes dentro da própria família. O Brasil é um país muito machista, não foi difícil acessar esses lugares porque a gente vê, basta sair na rua. As taxas de abusos, de violências, de silenciamentos... A mulher dá uma opinião e o homem fala que ela está fazendo errado. Às vezes, as violências nem são físicas, mas também são chocantes. Enquanto estamos aqui nessa entrevista, quantas mulheres estão sofrendo violência? Moro próximo a um bairro onde aconteceu o assassinato da travesti Dandara dos Santos, que foi espancada até a morte e arrastada em um carrinho de mão. Foi em 2017 e infelizmente essas violências não dão sinais de acabar. Basta você pensar um pouco e já vem uma memória de tudo o que a gente escuta, das histórias, das pessoas do nosso entorno. Infelizmente, o que não nos falta é repertório. Até aumentamos nosso vocabulário sobre a violência. Agora sabemos o que é violência patrimonial, por exemplo. Lembrei agora da palhaça que foi morta, Julieta Hernández. Passei uns cinco dias sem dormir direito, como se fosse alguém da minha família.

Quais são as violências que a sua personagem sofre ao longo do filme? Muitas. Dayana sofre violência patrimonial. Ela ajudou a construir o motel, ela pega no pesado da limpeza dos quartos, dos banheiros, mas é ele, Elias, quem é o dono. Tem também a violência psicológica. Não tem cena dela fora do motel, ela fica enclausurada naquele espaço. Ela só sai após a violência física. A Dayana só ganha um respiro de vida quando Heraldo chega, trazendo um sopro de esperança. Ela o vê como um igual, como um parceiro, alguém em quem pode confiar.

Falando em política, quando a gente pensa estar avançando em algumas pautas, vem um projeto de lei como o que equipara a interrupção da gestação acima de 22 semanas a homicídio no Brasil. É um absurdo decidirem sobre os nossos corpos. É uma violência, muitas mulheres, principalmente as pobres, morrem por não terem um aborto legal. Esse controle sobre os nossos corpos é acima de tudo um desejo de controle sobre os nossos sonhos. É sobre a nossa potência. É uma forma de querer deixar a gente em casa, cuidando dos filhos. Crianças engravidam e ainda teve ator falando a favor da PL, é muito falso moralismo... As pessoas que são contra o aborto não bancam nem algo menor, que é cuidar de uma criança. Essas pessoas não conseguem nem metade do que as mulheres conseguem, que, inclusive, são as que bancam os lares. Por outro lado, acredito que tem muita política boa sendo feita, também. Sou muito fã da Erika Hilton [deputada federal brasileira pelo PSOL e a primeira mulher trans a ocupar uma cadeira na Câmara Municipal de SP], acredito nas lideranças negras e indígenas, LGBTQIAPN+, que estão fazendo avanços em todos os setores, na política, na filosofia, na ciência... Quanto mais espaços essas pessoas tiverem, todo mundo ganha.

Como você acha que o público brasileiro vai reagir às cenas de sexo do filme, que têm um certo apelo erótico? Apesar de consumirmos muito, ainda somos conservadores nos costumes, não? Sim. Acho que vamos ter todo tipo de reação, porque o filme vai para muitos lugares. É surpreendente. Vai ter muita gente que não vai gostar, e faz parte. Porque ele é um filme que se arrisca. E tudo que arrisca divide opiniões.

Você já tinha feito cenas de sexo? Como foi? Já tinha feito em “O Animal Sonhado”. É sempre bastante cansativo, porque é muito técnico. Mas tivemos uma coordenadora de intimidade que acompanhou a gente nessa coreografia, a Roberta Serrado, que fez uma condução bem interessante. O filme tinha muitas mulheres na equipe e isso fazia com que eu nunca me sentisse sozinha. O Karim sempre teve uma escuta maravilhosa, sempre muito cuidadoso, e me deixou rodeada de mulheres incríveis. Elas me perguntavam como eu estava me sentindo, o que eu precisava. Isso fez toda a diferença. A fotografa também era uma mulher, a Heléne Louvart, e isso me deu ainda mais conforto para as cenas de sexo. Sabia que ela não faria uma fotografia gratuita sobre o meu corpo. A equipe tinha muitas mulheres, pessoas trans, e essa diversidade foi muito legal no set. Foi um set muito cuidadoso. Não entrava nem celular. O Karim não queria um ator se lascando em uma cena para alguém estar ali, mexendo no celular. Ele era muito performático também. Quando a gente chegava, ele anunciava que o elenco estava chegando para que as pessoas fizessem silêncio. Aquilo tudo vai elevando a concentração. Quando a gente terminava a diária e ele dizia “temos cena”, aplaudia e nos abraçava. Era uma loucura. E quando chegamos nas cenas de sexo, já estávamos com essa educação, da galera não conversar com o elenco, de ficarmos bem concentrados.

Você estranhava não poder falar com a equipe? Eu adorei. Porque às vezes alguém dá uma opinião que te atrapalha depois. E eu tinha tanta coisa já para dar conta. Me sentia sozinha às vezes, sim, mas pelo menos entre a gente do elenco, convivíamos bastante. Em certo momento, até para a construção da personagem foi legal, porque me via tomando sol sozinha e pensava: “Acho que a personagem estaria se sentindo assim na piscina e pegaria sol ouvindo tal música”.

E depois do set? Como se dava esse distanciamento entre elenco a equipe? A gente estava na mesma pousada, elenco e equipe. A gente não podia conversar com a equipe, somente entre nós do elenco. Só o Fábio ficou em uma casa na cidade, porque a pousada estava aberta para hóspedes, e ele seria muito assediado. Gostei desse lugar de concentração porque você se cansa menos. Apesar de às vezes me sentir realmente muito só. Penso que era um pouco como a personagem deveria se sentir, uma mulher sozinha trabalhando em um motel.

O filme é um retrato de uma juventude que teve o futuro roubado. Quais são as saídas? Escutei esses dias o historiador Luiz Antônio Simas citar uma frase do cantor e compositor Beto sem Braço no podcast “Desiguais” que achei genial: “A gente faz festa não porque a vida é boa, faz pelo contrário. E o que espanta a miséria é festa”. O que acha disso? Você falando isso me fez pensar nos povos indígenas, que nunca deixaram de fazer festa, por mais massacrados que fossem, e mesmo sem motivos. Festejar é uma forma de resistência, de lembrar que estão ali. E isso é realmente muito forte para mim.

O afeto é uma forma de resistência? Sim. E entre as mulheres é fundamental. A gente saber como a outra está, ajudar, perguntar. Quando existem redes de afeto não ficamos isoladas.

Qual a sua ascendência? Você tem antepassados indígenas? Por parte de pai eu não sei. Pobre não sabe de sua ascendência, não. Mas o que eu já ouvi falar era que uma avó da minha avó foi roubada de uma comunidade indígena na Amazônia. Ela era criança e por volta de 10 a 12 anos foi trazida para cá. Nunca mais a viram na aldeia. Em uma viagem de cogumelos, na beira de uma cachoeira, entendi que isso abalou muito essa comunidade. Pude compreender sobretudo por que as mulheres de minha família escolheram suas profissões. Sou atriz, assim como a contadora de histórias da aldeia, minha prima, médica, minhas tias, professoras, todas se relacionam com as grandes lideranças que constituem uma aldeia. Entendi até as relações com o álcool em minha família. Nessa época, os homens se sentiram muito humilhados com esse roubo.

Créditos

Imagem principal: Fabio Audi

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