Massami, David, Osas, Mariam. Trip conversa com quatro dos 300 mil imigrantes que tentaram cruzar o Mediterrâneo atrás de uma vida melhor
No ano de 2015, 300 mil pessoas tentaram cruzar o Mediterrâneo em direção à Europa em busca de uma vida nova, deixando para trás guerras, conflitos e perseguições. No mesmo período, foram contabilizadas oficialmente pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) 1.867 mortes que não puderam ser evitadas pelas operações de 114 milhões de euros da Frontex, agência europeia para as fronteiras externas da comunidade. Na Sicília, uma das principais rotas de imigração do mundo, chegaram mais de 20 mil somente em maio deste ano, parte dos mais de 60 milhões de pessoas no mundo em deslocamento forçado.
Números, números. Não. São pessoas que atravessam o oceano em barcos precários, abandonados em alto-mar por seus pilotos após um telefonema de aviso à guarda costeira italiana. São pessoas que, vivas e catalogadas, ganham um número nos cartões de identificação nos campos de refugiados, como o de Mineo, pequena cidade no sudeste da Sicília, com 4 mil imigrantes.
São pessoas como David e Osas, que moram em Mineo. David tem 32 anos, é alto e bonito, seus olhos brilham quando, sorridente, conta de sua carreira musical. David veio da Nigéria. É uma vida muito melhor a que imagina para si na Itália: “A great musician”, fala, sorrindo. Foram dois dias de travessia em um barco com outras 298 pessoas – gente vinda do Paquistão, da Somália, de Gana. No vilarejo em que vivia em seu país, David deixou para trás uma disputa familiar por uma propriedade de palmeirais (ainda que seu pai adotivo o tivesse declarado herdeiro). Para trás deixou também a filha de 4 anos e um menino de 2, que David mostra no celular.
Cinco reais por dia
Nesses deslocamentos contemporâneos, há pouco das imigrações de antigamente, de baús com objetos e fotos de família. David carregava consigo um cartão de memória, enfiado no cós da calça junto com o equivalente a US$ 50. E a menina? Não, nenhuma foto, nem mesmo de Loveth, mãe de seus filhos. Aqui, não se trata de uma relação de afeto. “Amor” soa inapropriado. No futuro imaginado de “great musician”, essa sua família nigeriana não surge espontaneamente. Por outro lado, David pode ser o “pai” adotado por Osas, que hoje tem 18 e chegou desacompanhado em Lampedusa há dois anos. Após ter presenciado uma desova de corpos feita por um grupo criminoso na Nigéria natal, passou a ser perseguido e ameaçado.
De família cristã e sem proteção comunitária ou das crenças tradicionais, Osas fugiu para a Líbia, onde um muçulmano, em pleno período sagrado do Ramadã, o ajudou a embarcar para a Itália. Deus pode sempre ajudar, diz Osas. É d’Ele a incumbência de arquitetar seu futuro, se irá constituir família com uma africana ou com uma italiana, se irá prosperar como mecânico de automóveis, ofício que tem aprendido com o italiano Cosmo, funcionário de Mineo.
Apesar da esperança em relação ao futuro, a realidade nem sempre favorece: as roupas que Osas veste foram encontradas nas ruas de Catânia, capital regional; seu pedido de permanência na Itália foi negado e, devido a um erro do sistema informatizado, Osas chegou a deixar de existir oficialmente por mais de um mês. Não só ele desapareceu, mas também o pouco dinheiro que todos recebem como ajuda de custo: 1,25 euro por dia (cerca de R$ 5).
O sonho é trabalho
Como nas prisões, e outrora nos campos de concentração, uma economia própria acaba por se organizar. Não é diferente em Mineo. Os paquistaneses e bengalis são os responsáveis pelo escambo entre dinheiro, cigarros e outras necessidades. Em geral, todos os internos saem e arranjam bicos ou pequenos trabalhos enquanto aguardam a regularização de seus papéis, o que sempre demora muito, às vezes anos. Os documentos servem para circular livremente e trabalhar em uma realidade que se impõe e achata ambições: o sonho é trabalho.
Não é diferente com Massami e Bamba, duas nativas da Costa do Marfim, que se fizeram irmãs de coração quando juntas passaram seis dias no Mediterrâneo – o barco à deriva, sem comida nem água, muito choro. Elas hoje moram em uma casa, mas que também é estranhamente chamada de “campo”.
Em uma área afastada do centro de Siracusa, na Sicília, Massami e Bamba vivem com outras mulheres, algumas com bebês e crianças pequenas. Ainda que num território tão diminuto, as fronteiras acabam por se estabelecer, e elas não têm amizade com as outras internas da Nigéria, do Mali, da Somália. Apesar de terem chegado em outubro de 2014, devem começar a ter aulas de italiano somente a partir deste mês. E, para além da origem, a língua pode mesmo constituir uma barreira implacável, especialmente se o esforço não é mútuo.
Enquanto conversamos, Aleksandra, a funcionária italiana responsável pelo “campo”, passa para se despedir, seu turno acabou. Ela não diz “Arrivederci”, nem “Au revoir”, e ri ao começar a dizer “Auf Wiedersehen”. Não soa engraçado. Apesar de estar há dois anos no “campo”, ela não fala o mínimo de inglês ou francês, muito menos árabe ou qualquer dialeto africano. Ex-baby-sitter, não revela interesse ainda que seja de 200 mil a estimativa de recebimento de imigrantes somente em 2015, segundo os órgãos oficiais europeus. De uma forma distinta, talvez também para Aleksandra o que importe mesmo seja ter um trabalho – desde que não precise se envolver com essas mulheres, a maioria marcada por violência e abusos.
Uma delas é Mariam, nigeriana de 20 anos, também chamada de “Musa”. Nas mãos, carrega um celular moderno e caro, possível “evidência” das “suspeitas” de Aleksandra de prostituição. Mas assim como “amor”, “prostituição” também soa completamente deslocado. Ainda mais se pensarmos que Mariam foi obrigada a se casar com um homem que dava dinheiro a seu pai, que fugiu e, ainda recém-chegada à Itália, foi estuprada por um conterrâneo, de quem engravidou e abortou. As relações entre feminino, afeto, corpo e sexo são outras.
Busca de sentido
Fico atenta para ouvir e não julgar. Não seria justo. Hoje, ela diz querer casar com um italiano e ter uma família grande. Não fala de trabalho. Sorri. Ao me despedir, eu a abraço e fico de lhe enviar a foto pelo Facebook. Não dá para ver suas tranças, mas Musa está bonita: a boca de lábios invejáveis e o brilho nos olhos, parecido com aquele de David. Eu imagino Mariam e David desembarcando como aqueles que vi no porto de Augusta semanas antes.
Ao me aproximar sinto um golpe, sobe uma vontade de chorar: uma massa de pessoas está sentada no convés da embarcação. São 600 à espera e, ainda assim, calma e silêncio. Do lado oficial, máscaras e luvas, figurinos de filmes de ficção científica, armas. O clima é de desconfiança e muda tensão. Somos todos suspeitos de trazer ou fazer algo de contaminante, de inesperado e indesejável – os imigrantes, mas também nós, forasteiros inoportunos. Não devo conversar com os imigrantes, não é seguro para eles, é o que o Polizia diz. De onde vêm? Bangladesh, Somália. Quantos dias no mar? Pergunto sobre as camisas de futebol que alguns vestem. Sorrisos surgem ao anunciarem Tottenham, Real Madrid.
Após os primeiros procedimentos, os 600 seguem em direção às tendas armadas ainda no porto. Nos pés, genéricos de Crocs e Havaianas que receberam ao chegar – coloridos, tão fora do tamanho. Os sapatos são o de menos. Todo o resto por se ajustar: expectativas, sonhos, a tal vida melhor. Melhor é sempre uma comparação e, então, após as conversas, desejei a todos que tivessem uma vida boa – sem saber o que cada um possa querer dizer com isso.