Aqui é trabalho

por Carol Ito
Trip #284

Eles nunca dizem não, odeiam improviso, cochilam no escritório e cumprem jornadas de 12 horas, seis dias por semana. Raissa Mendes descobriu um novo mundo trabalhando com os chineses

São 22 horas em Shenzhen, sul da China, e Raissa Mendes ainda está no escritório quando conversa com a Trip. Nada de anormal para os chineses, que costumam trabalhar seguindo o regime 9-9-6 – ou 12 horas por dia, seis dias por semana.

A brasileira de 30 anos vive na China desde 2015, mas teve seu primeiro contato com essa parte do mundo alguns anos antes, logo que se formou em relações internacionais. Ela morava em Washington D.C, onde fez faculdade, e havia sido contratada por uma consultoria de assuntos governamentais, que negociava frequentemente com o país. “Percebi que os chineses trabalhavam de um jeito muito diferente e que nós, ocidentais, não tínhamos ideia de como eles funcionavam”, lembra.

Como muitos brasileiros entusiasmados com as oportunidades de trabalho no gigante asiático, Raissa decidiu saber mais e se mudou para Xangai para um mestrado em negócios. Nessa época, ouviu de um professor que Shenzhen era um hub de inovação, conhecido como Vale do Silício do 
hardware, onde estão gigantes da internet como Tencent e Huawei. A cidade foi a primeira a se abrir para empresas internacionais e se tornar Zona Econômica Especial da China, em 1978. Desde então, pulou de 70 mil habitantes para 12 milhões. 
“É o melhor lugar para quem está a fim de trabalhar”, afirma.

LEIA TAMBÉM: O que leva um executivo chinês de sucesso a se descobrir um cineasta sensível, que faz filmes sobre temas que o governo preferiria que não existissem? Hao Wu responde

Em 2016, um ano depois de sua chegada, ela foi contratada como gerente de marketing da DJI, empresa que domina 70% do mercado mundial de drones. Na conversa a seguir, a mineira fala da rotina de trabalho ao lado dos chineses e da vida como estrangeira em um lugar culturalmente tão diferente do Brasil. 


Trip. Como foi a adaptação na China?

Raissa Mendes. No começo, até comprar um macarrão na rua era um desafio, porque eu não sabia mandarim. Passei a fazer aulas duas vezes por semana, tive que me reinventar. Ainda não me considero fluente, mas nem é o meu foco. Consigo fazer várias coisas usando o inglês na empresa, onde passo a maior parte do meu dia.

O que percebeu de diferente na forma como os chineses trabalham? Eles aprendem rápido e encontram soluções para tudo. São muito eficientes, mas não muito criativos. Tudo tem um método que é difícil mudar, o que pode ser frustrante para quem chega para trabalhar.

LEIA TAMBÉM: Em documentário, Marcelo Gomes apresenta Toritama, um município pernambucano em que as pessoas só param de trabalhar no Carnaval

E por que acha que eles não são muito criativos? O brasileiro pensa fora da caixinha, o chinês, não. Se você for a uma lanchonete e pedir para tirar um ingrediente do hambúrguer, vai dar um nó na cabeça do chinês, porque ele aprendeu que o hambúrguer tem que ser feito sempre do mesmo jeito. Parece bobo, mas é assim que funciona para tudo. Eles também são muito humildes. É fácil um chinês se sentir envergonhado, subestimado, o que eles chamam de “perder a face”.

O que é isso? Vou citar um exemplo. Se um chinês encontra um gringo, ele não vai vê-lo como um amigo, mas como uma fonte de aprendizado ou alguém com quem ele pode treinar o inglês. Se você não é fluente em mandarim, mas insiste em tentar falar o idioma, o chinês vai ficar envergonhado, porque vai entender que o inglês dele não é bom o suficiente.

Como é ter chefes chineses? Existe uma hierarquia muito forte. Não existe essa cultura de brainstorming. Você precisa encontrar alternativas para contornar as decisões dos chefes. Mas, apesar da cultura top-down, eles não tomam os créditos para si e sempre falam “nós fizemos”, na primeira pessoa do plural.

A rotina de trabalho é sempre puxada? O regime 9-9-6, de entrar às 9 da manhã e sair às 9 da noite, seis dias por semana, é muito comum. Muita gente de fora sofre com isso. No almoço, os chineses saem para comer, voltam para a sala, apagam as luzes e dormem por uma hora, religiosamente. Eles têm uma caminha dobrável debaixo da mesa. Umas 18 horas, saem para jantar, voltam e terminam o que têm que fazer. É muito trampo, as horas são muito intensas, ninguém sai antes das 18 horas.

E você, tira um cochilo? Algumas vezes, quando estive de jet lag, cochilei no sofá. Nunca fui de dormir na hora do almoço. Acordo às 6 horas, vou para a academia e umas 8 ou 9 horas chego para trabalhar. Quase sempre peço comida pelo WeChat e almoço no escritório. Saio entre 19 e 20 horas. Às vezes, fico até mais tarde para fazer ligações para a América Latina. Eu faço 9-9-5, mas tô sempre checando e-mails e WhatsApp em casa. Estou numa fase em que o trabalho é prioridade e acredito muito no que faço. O dia passa rápido. É cansativo, mas tenho o privilégio de morar perto da empresa e existe uma flexibilidade de horários.

LEIA TAMBÉM: Confeitos, eletrônicos, meias, pomadas... Colamos em nove marreteiros que fazem de tudo para não descer na estação do desemprego

Rola muita competição? Sim, sempre vai ter outra pessoa para fazer o seu trabalho. Todo mundo quer ser sempre o melhor para não perder a oportunidade. Não existe uma cultura de people management, de RH.

Como é ser estrangeira em uma empresa chinesa? Demora para ter a confiança da equipe. Quando cheguei, levou uns quatro meses para eu ter acesso às informações básicas de trabalho. No começo, fiquei louca. Com o tempo, entendi que precisava sair para jantar com os colegas, levar presentinho depois de alguma viagem, saber como foi o fim de semana. Você tem que desenvolver o social, diferentemente de como era nos EUA, em que trabalho e vida pessoal não se misturavam tanto.

Você tem mais chefes homens ou mulheres? Os cargos mais altos são preenchidos por homens, entre 35 e 45 anos. De chefes imediatos, tenho um estrangeiro e uma chinesa. Ela é mais geniosa, diferentemente das chinesas comuns, que são doces. É jovem e supercompetente. Não me sinto discriminada por ser mulher. A diferença que eu sinto é que ninguém comenta minha aparência, como rola no Brasil. Também não me sinto assediada em nenhum momento, não existe abertura para isso.

O que aprendeu que vai levar para sua vida profissional? Essa ideia de que existe solução para tudo, porque aqui não existe dizer “não”. Aprendi a ser “flexível como um bambu, e não rígida como um carvalho”, como diz o provérbio chinês.

fechar