Leticia Pugliesi
Nathalia Zaccaro

por Leticia Pugliesi
Nathalia Zaccaro
Trip #276

Confeitos, eletrônicos, meias, pomadas... Colamos em nove marreteiros que fazem de tudo para não descer na estação do desemprego

Dia dos Namorados, hora do almoço, linha Coral da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), São Paulo. O trem estava cheio, quase lotado, quando Anderson esperou as portas fecharem e desatou a falar. “Hoje é Dia dos Namorados e você não comprou nada para a pessoa amada! Olha a oportunidade! Relógio diferenciado com pulseira de silicone antitranspirante.” Sabryna esperou ele terminar o discurso, fez um sinal e levou um dos modelos por R$ 15. “Na loja, custa 80”, mandou Anderson.

Antes de o trem parar de novo, mais um relógio vendido. “O povo não pode me ver comprar que compra também”, afirma Sabryna. Faz seis meses que ela trabalha sendo a primeira cliente do vagão e ajudando vendedores como Anderson a transformarem em clientela os 2,8 milhões de passageiros que passam por ali todos os dias.

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Não tem faltado trampo para Sabryna. Só cresce o número de ambulantes nos trens de São Paulo. São os marreteiros. O desemprego no Brasil – que hoje atinge 13 milhões de pessoas – parece ser a explicação mais óbvia para o crescimento do popularmente chamado “shopping trem”. A CPTM proíbe a comercialização ali e avisa que “a pessoa flagrada vendendo produtos irregulares tem a mercadoria apreendida e perde o direito de viagem”. No ano passado, 1.773.217 itens foram confiscados – são 85 mil a mais do que em 2016. Em quase todas as estações, dá pra sacar a movimentação entre marreteiros e agentes da CPTM.

Chocolate, água e fones de ouvido são as principais ofertas dos trilhos, mas, com um pouco de sorte, dá pra achar de tudo. Meias, kit de ferramentas, jogos, seda e até espremedor de laranja. “Tudo na vida se vende. E eu sou um cara criativo demais. Já vendi até absorvente no trem”, conta Bob, que marreta há inacreditáveis 30 anos. Agora ele oferece as pomadas Fisiofort, que anuncia dizendo: “Tá com dor? Chama o doutor!”.

Quem não tem tanta lábia adota outras estratégias. “O importante é falar que custa R$ 1”, afirma Gisele, 34, outra veterana, que está no ramo desde os 14 anos e já enfrentou seis gestações trabalhando no trem.

Demos um rolê no shopping trem na companhia de Anderson, Sabryna, Bob, Gisele e outros marreteiros que toparam trocar uma ideia sobre crise, comércio, talento e promoção. Paga um e leva nove! Só hoje!

“Taí, patrão; taí, patroa. Primeiramente, uma boa tarde a todos, desculpa o incômodo da viagem. Pessoal, meia masculina e meia feminina, tá bom? 80% de algodão. Quem quiser dar uma olhadinha, eu agradeço, e, quem não quiser, eu agradeço da mesma forma. Três pares de meia por 
R$ 5, seis pares por R$ 10.” É assim que Bruno Accioly (foto ao lado) faz seu comercial. Como ele mesmo diz: “Não sou marreteiro, não bato marreta. Eu sou auxiliar de vendas”.

Há mais ou menos dois anos no trem, começou a vender nos vagões depois de ser mandado embora do escritório onde trabalhou por três anos e sete meses. Ele já conhecia os moleques todos e costumava comprar deles, entrar no ramo não foi difícil.

Bruno gosta de ficar na linha Diamante da CPTM (que vai das estações Júlio Prestes a Itapevi), onde, segundo ele, tem mais pobre e é fácil vender. “Pobre é humilde, não fica olhando feio e respeita mais”, diz. Já tentou trabalhar em outras linhas, mas não rolou. “Tem uns passageiros que tratam mal, ficam tirando.” O que Bruno mais gosta de vender são eletrônicos, mas, por conta do inverno, decidiu investir nas meias. “É bom porque sai sempre! Todo hora tão sumindo as meias, o saci-pererê pega, né!?”

“O trem foi uma mãe pra mim”, conta Anderson. Aos 16, ele estava sem perspectivas de arranjar emprego e resolveu tentar a sorte como marreteiro. “Minha vida mudou. Já comecei um curso de eletricista com o dinheiro que ganhei aqui.” Nesses dois anos, ele sacou que o segredo para lucrar é sempre se reinventar.  
“Já vendi escova de dente, chocolate, spinner… Ah, spinner foi o maior sucesso de todos os tempos! Sem mentira, dava pra tirar mais de R$ 300 por dia!”, lembra.

A lucrativa moda passou e Anderson agora investe em relógios multicoloridos. “Na loja, custa R$ 80, eu vendo por R$ 15. E você me pergunta: por que no trem é mais barato? É porque eu vendo barato para não perder de graça!”, avisa. A média de mercadoria confiscada pelos agentes da CPTM é alta. “É questão de sorte. Eu perco quase todo o dia. Se o cara te pegar, perdeu e pronto. Tem que entender que é normal, é o trabalho do guarda.”

Para minimizar o prejuízo e vender tudo mais rápido, Anderson conta com a ajuda de Sabryna. “O povo hoje em dia pensa que nossos produtos não prestam. Quando eles veem alguém comprando, sentem um conforto. Por isso que eu chamo a Sabryna de incentivo!”, explica Anderson. Ela recebe R$ 70 por dia para ser a primeira cliente do vagão. “O povo não pode me ver comprar que compra também”, conta Sabryna, cuja identidade foi preservada por ser menor de idade.

Entre os anúncios que faz do pão de mel a R$ 2, Luís Roberto encontra espaço para dividir com os passageiros seus pensamentos sobre a vida. “Sou um dialoguista. Aproveito meu talento e dou palinhas sobre social e moral. Falei outro dia sobre educação alimentar. Por exemplo, se eu almoçar ovo, berinjela, arroz e feijão, eu comi bem. Mas acham que se não come bife, não alimenta. Explico que o ovo tem vitaminas, porque no Brasil existe o mito de que sobe o colesterol e aí o pessoal não come. Mas, às vezes, sou mal interpretado. O pessoal não me entende”, reclama.

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Luís é marreteiro há cinco anos. Não foi um processo fácil. Ele trabalhava como metalúrgico, mas perdeu o emprego e não conseguiu encontrar outro. “No começo, eu tinha muita vergonha de trabalhar no trem, mas agora não tenho mais.” Com a grana que levanta vendendo pão de mel, consegue pagar a faculdade dos dois filhos. “Se eu fosse advogado, legalizaria esse trabalho. Já fui até procurar os direitos humanos. Tem que legalizar. É caso de sobrevivência”, argumenta.

“Eu me lembro como se fosse hoje da primeira vez que vim trabalhar no trem. De roupa social, carregando uma mala. Era pra vender salgadinho”, conta Gefson. Embora o comentário seja carregado de nostalgia, faz só três anos que isso aconteceu – ele tinha 20 quando foi demitido do escritório onde trabalhava e percebeu que não conseguiria nada rapidamente. Seguiu uma dica do cunhado e vestiu o paletó e a gravata para tentar a sorte no trem. Com o tempo, sacou que um sorriso vende mais que uma gravata. “Gosto de vender porta-cartão, porque é a mercadoria com a qual mais me identifico. Mas tava meio devagar, então estou apostando no jogo UNO.”

A concorrência dentro dos vagões está cada dia mais acirrada e Gefson não curte ficar andando de lá pra cá anunciando o preço do produto. Ele é do tipo que investe na propaganda. “Todo mundo pode jogar UNO. Criança, adulto, idoso. Quem teve infância, sabe, são 110 cartas no baralho. Na Ri Happy, são dois por R$ 25. Hoje é dia de megaoperação [quando os guardas saem em busca para fazer mais apreensões], então, vou fazer por R$ 10. Não, peraí. Quem tiver R$ 10, não leva um só, não. Leva dois.”

Rebeca vendia roupas na Feirinha da Madrugada, no Brás, até que tudo desandou. O valor da locação do espaço aumentou demais e, mesmo descolando um empréstimo no banco, ela não conseguiu pagar os custos mais a mensalidade da faculdade. Precisou abandonar o negócio. Ao lado de Ana Letícia, sua namorada, seguiu os passos do pai e virou vendedora nos trens. As duas moram em Poá, cidade localizada na região metropolitana de São Paulo, mas não trabalham na linha que passa por ali para evitar trombar parentes. “Lá tem muita gente da família, aí querem fazer fiado. Não dá, né?”

Já faz um ano que o casal trabalha os sete dias da semana. Rebeca aposta no bom humor: “Chama com R$ 1 que já vai levar. Pode levantar a mão, o cotovelo, só não pode o dedo do meio.” Citar supostas aparições dos produtos na televisão também funciona. “Nessa linha [Turquesa], as pessoas compram pela marca”, diz.

Para ganhar mais, elas se dividem; uma sai anunciando a pipoca, enquanto a outra fica com o KitKat. “Água dá um lucro maior, você paga R$ 5 no fardo e faz R$ 18. A gente costumava vender a bebida, mas o peso dava dor nas costas. Sem contar que era mais difícil de correr dos guardas”, conta Rebeca, a única marreteira desta reportagem que nunca foi pega durante o serviço.

Gisele começou nos trens aos 14 anos. Teve seis filhos, todos eles trabalhando como marreteira. “Faltava uma semana para nascer e eu tava aqui no trem.” Ela já foi empregada doméstica e funcionária de supermercado, mas a linha Diamante sempre foi uma constante. “Aqui é um passatempo da vida.”

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Todos os seguranças a conhecem, não adianta mudar de linha. A tática é correr. “Já perdi mercadoria muitas vezes, não tem jeito. Se eu tô sentada e vejo eles chegando, subo a escada correndo e vou para o outro lado.” Uma vez os seguranças apreenderam a mercadoria de Gisele. Sem grana para comprar novos produtos, foi pedir dinheiro nos trens. “Foi uma humilhação, mas foi de coração.” Uma das passageiras lembrou dela de outras viagens e ajudou. “Tem um monte de cliente que me conhece”, conta.

Depois de 20 anos de luta, Gisele conclui: não precisa de muito marketing, o negócio é falar que tudo custa R$ 1. “Comecei vendendo bananinha e paçoquinha, tudo a dez centavos. Agora, a pururuca é R$ 1, amendoim, R$ 1, tudo por R$ 1.” Outra estratégia que garante o sucesso é escolher bem o que vender. “Aqui, tudo é moda, nada dura muito. Só minha pururuca [salgadinho feito com a pele do porco desidratada] que não sai de moda nunca.”

O RG diz Robson Teixeira, mas é como Bob “o Trem” que ele é conhecido. Bob era um rastafari good vibes quando foi demitido, aos 18 anos. Sem rumo, apostou no carisma que sabia que tinha e foi tentar vender uns badulaques no trem, na época chamada de CPTU. Deu certo. “Sou um cara diferenciado, sempre trabalhei com o diferente. Vendo de tudo, porque tenho lábia.” O produto da vez é a pomada Fisiofort. “Ela é aprovada por quem? Pelo médico dermatologista! Um produto nacional, do estado de Goiás, com resultado imediato e validade até 2020!”, avisa. Por R$ 10, dá pra levar uma e testar. Agora ele teve uma ideia para aumentar os lucros. “Semana que vem já vou estar com a maquininha de passar cartão! Isso é fundamental!”

O maior prazer de Bob é bolar as propagandas. “Ando por todas as linhas, só não gosto de ir no metrô. Lá é tudo muito rápido e não dá tempo de ‘gravar’ meu comercial, fora o barulho do túnel”, conta. A vocação publicitária fez de Bob uma celebridade na CPTM. Em 2014, ele apareceu no icônico clipe “O trem”, do grupo de rap RZO – “No trem é assim, e assim que é. O bicho pega”, diz um dos versos. A fama só não ajuda com os seguranças das estações – razão pela qual ele prefere não mostrar o rosto. “Já perdi muita mercadoria, mas faz parte. Se você não perder, não aprende a viver.”

Créditos

Imagem principal: Gabo Morales/Acervo Trip

Fotos: Gabo Morales/Acervo Trip

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