O reconhecimento da maconha como remédio foi o início de uma revolução silenciosa, que ganha força com uma proposta de regulamentação voltada à nacionalização do acesso à cannabis medicinal
Em 2016, quando a Anvisa começou a liberar a importação de CBD com prescrição médica, parecia um avanço tão arrojado quanto distante da realidade proibicionista do Brasil – coisa “de filme” para quem estava acostumado à marginalização do usuário pela guerra às drogas.
Mal sabiam os incrédulos que era o começo de uma revolução silenciosa, que nascia nos formulários de autorização excepcional e nos pacotes de CBD vindos sobretudo dos Estados Unidos. Pela primeira vez, o Estado brasileiro admitia — ainda que com receio — que a maconha podia ser remédio.
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Três anos depois, em 2019, a RDC 327 tentou “organizar a casa” trazendo uma regulamentação com regras para a comercialização de produtos derivados de Cannabis aqui no Brasil. A resolução abriu as portas para a fabricação nacional de produtos à base de Cannabis, mas desde que com matéria-prima importada.
Não era exatamente a soberania que se desejava, mas isso impulsionou uma mudança de comportamento importante nas indústrias nacionais. Produtos começavam a chegar nas prateleiras das farmácias com “selo de aprovação da Anvisa”, e o CBD virava, aos poucos, um item menos exótico no vocabulário das famílias brasileiras.
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Na época, escrevi aqui mesmo na Trip que a Cannabis estava “voltando pra prateleira certa”. Agora, em 2025, parece que essa previsão começa, enfim, a se consolidar, já que na última semana a Anvisa anunciou a abertura de uma consulta pública para revisar a RDC 327. A proposta traz mudanças concretas — algumas tímidas, outras surpreendentemente corajosas — que indicam uma transição em curso: a nacionalização real do acesso à Cannabis medicinal.
A principal delas: farmácias de manipulação com autorização especial poderão formular produtos com CBD puro. Em outras palavras, o extrato antes importado poderá agora ser transformado em medicamento de forma personalizada, no seu bairro, sob prescrição médica. E aí que entra a segunda mudança surpreendente pra mim: a receita pode ser comum, e não mais só as especiais que tipicamente são dadas por psiquiatras e neurologistas. Na prática, é como se o CBD deixasse de ser “tarja preta”. Isso é uma enorme mudança de percepção, e que está alinhada com a forma como esta substância é enxergada internacionalmente.
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A nova regra propõe liberar a prescrição de produtos com até 0,2% de THC por qualquer médico, com receituário comum. Isso reduz uma das maiores barreiras do modelo atual, que exige receita controlada mesmo para formulações que não dão barato nem em teoria. Agora, com mais médicos habilitados, mais pacientes devem acessar tratamentos legais e seguros.
Outro avanço: novas vias de administração passam a ser reconhecidas, incluindo as formas sublingual, bucal e — importante — tópica. Isso acompanha o que já se pratica na clínica real, onde óleo de CBD é usado em pomadas para dor, inflamações e dermatites. Mas vale lembrar: uso fumado ou vaporizado segue proibido. A planta continua remédio, contanto que não pareça maconha demais. Contém ironia.
E tem mais. Pela primeira vez, a ideia de cultivar cannabis em solo nacional para fins medicinais deixa de ser tabu jurídico. Em novembro de 2024, o STJ autorizou por unanimidade o cultivo de variedades com baixo THC por empresas, sob regulamentação da Anvisa, o que também deve acontecer em breve.
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Coletivamente, estamos observando mudanças importantes na regra do jogo. Isso significa controle de qualidade e rastreabilidade desde a origem, redução de custos, e o mais importante: soberania terapêutica verde-amarela.
A cannabis medicinal está, enfim, virando uma alternativa mais concreta, acessível e cotidiana. Está saindo das importações via FedEx e entrando no vocabulário dos médicos, nos protocolos clínicos, no estoque da farmácia de bairro.
Aos trancos e barrancos, o Brasil começa a reconhecer que a planta não é ameaça, mas sim uma ferramenta valiosa. E quanto mais ela for nossa — cultivada aqui, manipulada aqui, compreendida aqui —, mais ela vai deixar de ser um tabu exótico e virar aquilo que sempre deveria ter sido: parte da farmacopéia brasileira. Afinal, é só uma planta.
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