2020 será o ano da Cannabis medicinal no Brasil?

por Fabricio Pamplona

Estamos atrasados ainda (e bastante), mas o ano, ainda que com ressalvas, termina apontando novos caminhos. Que sejam explorados e ampliados

Falta menos de duas semanas para o final do ano, momento em que começam as clássicas retrospectivas de 2019, analisar o que deu certo, o que deu errado e tentar prever ou planejar o que vem por aí. Respira fundo que 2020 promete. Escrevo da Holanda, no coração de Amsterdã, e não poderia estar num lugar mais inspirador para fazer esse exercício com o olhar voltado para o mundo da Cannabis. Foi onde tudo começou, para mim e para a maconha. Foi exatamente aqui que tive contato pela primeira vez com a Europa, participei de meu primeiro congresso internacional e comecei a mergulhar de cabeça nesse universo. Para a maconha, é daqui a mais antiga produção de Cannabis medicinal do mundo. E não tem nada a ver com os coffee shops, cujo fornecimento é oficialmente ilegal.

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Este ano foi uma verdadeira montanha russa para todos que acompanharam de perto o desenvolver dessa indústria. Teve otimismo, pessimismo, revolta e surpresa. A dita "bolha" financeira inflou, inflacionou e até já estourou, mas, nesse agitado e promissor mercado, o Brasil ainda engatinha. 

Segundo dados da variação do índice financeiro consolidados pelo The North American Marijuana Index  , é possível observar a oscilação das expectativas ao longo deste ano. Começou "por baixo", aumentou imensamente no início primeiro semestre e depois foi só ladeira abaixo. Engraçado que só agora estão saindo notícias dos "grandes fundos brasileiros que são grandes oportunidades de investimento" por corretoras brasileiras famosas. Só agora? A onda já veio, já passou e agora começamos a oferecer esse tipo de produto? Ou demoraram a sacar que a oportunidade era boa (mas passageira) ou foram espertos e deixaram baixar o tsunami da euforia antes de fazer algo um pouquinho mais consistente. Esse cenário me lembra muito a euforia das pessoas tentando investir em bitcoin olhando "no retrovisor" da valorização exagerada, que nunca mais vai voltar. 

Quase todo mundo envolvido com as iniciativas de Cannabis no Brasil está atrasado em relação ao que está acontecendo no mundo, em relação a essa tendência, e muitos "espertinhos", que acabaram de descobrir essa oportunidade, acham que estão no Colorado há 5 anos, antes da bolha, antes de tudo. 

Neste final ano, vimos repercutir três acontecimentos que mudaram o rumo desse movimento em nosso país. As regras do jogo mudaram. 

Não plante, compre. Eu praticamente cresci ouvindo que o certo era fazer o contrário disso, com o Planet Hemp evangelizando na direção contrária ao tráfico de drogas e estimulando as pessoas a plantar sua Cannabis em casa. A Anvisa ainda não pensa assim, ao contrário. Para o órgão, o correto parece ser comprar, assim, mantiveram a proibição do cultivo.

Tentaram patentear o "óleo de CBD" e não deu certo. Aos 45 minutos do segundo tempo, com a patente já solicitada, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) recebeu um subsídio técnico e decidiu por não concedê-la, pois poderia gerar artificialmente um monopólio da Cannabis medicinal. Isso não rolou porque teve gente que se mexeu e foi atrás. Era injusto, afinal a empresa não inventou nada, estava apenas se apropriando de informação de domínio público. Ponto para o Inpi, que se manifestou corretamente sobre o tema.

Só vale se não fizer a cabeça. No mesmíssimo dia em que a Anvisa decidiu pela regulamentação da Cannabis medicinal no Brasil — confirmando a proposta de registro de produtos para comercialização ao mesmo tempo em que rechaçava o cultivo de plantas psicotrópicas e proscritas —, acontecia um movimento contrário: um juiz autorizou uma grande empresa do ramo agrícola brasileiro (flores) a produzir o cânhamo (hemp) com finalidade industrial e potencialmente de saúde. Ora, o cânhamo também é um tipo de Cannabis. Qual a diferença? Não dá barato. Ou seja, o problema é fazer a cabeça. A psicoatividade é o que incomoda, o grande tabu.

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2019 já vai tarde, ainda que agora tenhamos pelo menos uma regulamentação. Estamos um pouco melhores e, para o próximo ano, temos no horizonte uma iniciativa muito interessante. Um grupo de parlamentares montou uma comissão que está estudando profundamente o tema e formulando uma proposta de lei sobre "Medicamentos Formulados com Cannabis" (PL 0399/15). A lista das consultas públicas dá uma boa ideia do mergulho que estão fazendo no tema. Tem de tudo: jornalistas, empresários, ativistas, advogado, ministro, cientistas e diversos profissionais que de alguma forma se relacionam com este universo. É provavelmente um dos fóruns mais ricos já organizados "oficialmente" sobre esse tema no Brasil. 

Então, de modo surpreendente, é do Congresso Nacional, de onde a gente menos espera visão e comportamento progressistas, que está vindo a onda de resistência à resistência do poder executivo às inevitáveis mudanças regulatórias para permitir o uso de Cannabis de maneira mais ampla, segura e protegida pela lei.

Tudo, por enquanto, limita-se ao âmbito medicinal, sob o guarda-chuva da Anvisa e com a liderança da indústria farmacêutica nesse processo (o que frustra muita gente). Ainda assim, considero um avanço, com absoluta certeza. De toda maneira, remédio é remédio, e eu não esperava nada diferente do que veio, já que a discussão ocorria sob os domínios de uma agência regulatória de saúde.

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No cenário político em que estamos vivendo, eu nunca apostaria que essa iniciativa regulatória realmente fosse levada a cabo. Minhas hipóteses envolviam teorias da conspiração, viradas de mesa homéricas, pedidos de vista, renúncia de diretor da Anvisa. Eu vi tudo bem de perto e parecia menos plausível do que de fato aconteceu. No final das contas, eu realmente acho que evoluímos. E, se não dá para dar gargalhadas de euforia, pelo menos é possível acreditar que podemos arregaçar as mangas pra fazer acontecer. 2019 foi o ano em que a Cannabis medicinal se tornou uma realidade um pouco mais concreta no Brasil, um divisor de águas.

Meu chute é que 2020 é o ano em que finalmente vamos ter as empresas produzindo no país e vamos começar a naturalizar ações importantes: uma mãe ou um pai pegando um produto com CBD para o filho que sofre epilepsia, um paciente com dor crônica comprando seu óleo de Cannabis, um paciente sorrindo e levando a vida de maneira mais tranquila enquanto faz quimioterapia... Parece um futuro distante, mas está logo na esquina e ela nunca esteve tão próxima.

É isso. Levanta aí, respira e vamo que vamo. 2020 promete e espero que cumpra. Não tenho bola de cristal, mas sei de uma coisa: a melhor maneira de acertar uma previsão de futuro é ajudar ela a se tornar realidade.

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