5 anos que mudaram a maconha medicinal no Brasil

por Fabricio Pamplona

A Trip reflete sobre a importância do documentário ”Ilegal” na mudança na maneira como o país lida com a Cannabis

Ontem, dia 8 de outubro de 2019, completou 5 anos do lançamento nos cinemas do filme Ilegal. Para marcar a data, os criadores do filme marcaram uma exibição comemorativa, com depoimentos de alguns dos personagens principais e outras pessoas que têm trabalhado para fomentar esse movimento no Brasil. Conversei com o cineasta Raphael Erichsen pouco antes do evento, que codirigiu a produção com o jornalista Tarso Araújo. Curiosamente, ontem, na mesma data, estava prevista a tão aguardada reunião da Anvisa para consolidar o texto da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC), que vai regulamentar o cultivo e a produção de medicamentos produzidos a partir de canabinoides no Brasil.

A regulamentação desse setor é, entre outros fatores importantes, uma consequência direta também do movimento catalisado pelo filme e a campanha Repense. Como frisou Tarso: "O mais importante foi a Repense. Vejo o filme como uma parte da campanha, que era algo maior. Mesmo assim, foi totalmente secundária em relação às histórias dos pacientes que estavam lutando com unhas e dentes contra o governo pela sua saúde. Apenas retratamos o que aconteceu entre março e agosto de 2014, quando a maconha medicinal começou a pegar fogo no Brasil". De lá para cá, houve várias mudanças, mas a sensação é que ainda tem muito por acontecer.

play

Eu estava presente nas pré-estreias do filme em 2014, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Na época, mesmo as pessoas de "dentro" do movimento estavam começando a se conhecer. Eu sou catarinense, era novo no Rio, e estava começando a entender quem era quem, e o que estava rolando. Já era farmacologista da área de canabinoides fazia tempo, mas foi só quando uma mulher, cuja filha era minha voluntária de pesquisa, chegou pra mim com um frasquinho de cor escura dizendo que aquilo estava reduzindo as convulsões da filha, que entendi uma dimensão mais humana do meu trabalho. Aquela mulher era a Margarete, a mãe da Sofia, uma das personagens centrais de Ilegal, e aquele vidrinho era o canabidiol.

LEIA TAMBÉM: Katiele Fischer conta como a maconha medicinal mudou a vida de sua filha e o neurocientista Fabrício Pamplona analisa o potencial terapêutico da Cannabis

A ciência se conecta com o dia a dia das pessoas das maneiras mais diversas. Em torno dessas pessoas, formou-se uma rede de ajuda, de interesse, de cuidado. Mas também havia espaço para engajamento, luta e reivindicação. O filme retrata muito bem esses dois lados, é sensível, mas, ao mesmo tempo, é uma porrada. Por ambos motivos, faz chorar. Essa história que contei mudou a minha vida profissional para sempre, e o Ilegal tem uma participação importante nisso. Ele deu voz pra mim, e pra diversos outros profissionais, e pessoas comuns que queriam falar sobre a maconha, mas sofriam preconceito. Ele foi a bandeira sob a qual se criou um movimento que envolve pacientes, familiares, médicos, farmacêuticos, cultivadores, advogados, uma lista interminável de pessoas que se importam com a dor dos outros, e que acham que é imoral que as pessoas sejam privadas de um tratamento de saúde, venha ele de onde vier. Por acaso, nesse caso, é de uma planta que se considera proibida.

O dia é 08/10/2019 e a Cannabis sativa, conhecida como maconha, continua proibida no Brasil. No entanto, o uso medicinal dessa planta já é reconhecido pelas resoluções "colaterais" criadas pela agência de vigilância sanitária para permitir o acesso da população a produtos contendo os princípios ativos desta planta. O fato da regulamentação desse mercado de "Cannabis medicinal" ter sido retirada da pauta da reunião da Anvisa de hoje, mostra que o filme continua atual, e a luta precisa continuar. É um movimento forte, mas que ainda não pode descansar. Afinal, se houve bastante avanço nos últimos 5 anos, também é verdade que os tempos mudaram. 

Eu perguntei na lata ao Raphael Erichsen: se o filme fosse feito hoje, você acha que seria censurado? Ao que ele respondeu "Olha, é um momento muito difícil pro audiovisual brasileiro, está tudo uma incógnita. Não sei como seria pra produzir e financiar. Quando fizemos, havia uma esperança ingênua de que era possível trabalhar dentro do ambiente da política. A gente sofreu bastante perseguição, era impensável dizer que chegaríamos aonde a gente chegou". Tenho certeza que isso não seria diferente hoje, talvez fosse ainda pior, ou uma perseguição ainda mais direta, com nome e sobrenome.

LEIA TAMBÉM: O farmacologista Fabrício Pamplona conversou com Box Brown, autor de ”Cannabis - A história da ilegalização da maconha nos Estados Unidos”

Ambos os entrevistados são modestos o suficiente para dizer que os protagonistas de verdade são os pacientes, e que a contribuição do Ilegal foi apenas contar uma história que já estava acontecendo, e que talvez já fosse acontecer de qualquer maneira, visto que esse movimento é algo global, não está restrito ao Brasil. Mas difícil pensar em algo que tenha tido individualmente tanto impacto quanto o Ilegal. Foi a ponto de influenciar a busca pelo tema "maconha medicinal" em todo país e levá-lo à capa das principais revistas e jornais do país. Aliás, a Trip também reconheceu essa história honrando a Katiele Fischer, uma das mães retratadas no filme, com o prêmio Trip Transformadores e a alcunha "A mãe que liberou a maconha". Tive a honra de fazer um podcast com ela no projeto Trip com Ciência, onde discutimos em profundidade o impacto que a ciência canabinoide tem na vida das pessoas.

Brinquei com o Raphael perguntando como ele faria para o tema ter ainda mais repercussão, qual seria a estratégia atualmente. Chegamos à conclusão que talvez se fosse uma ficção com atrizes de Hollywood. Ele sugeriu a Penélope Cruz pra fazer a Margarete, de repente a Katiele poderia ser interpretada pela Jennifer Lawrence. Mas agora os tempos mudaram e temos outros interlocutores. Vamos precisar achar um ator para viver o Cassiano, da Abrace, lá da Paraíba, que representa tantas outras vozes que foram surgindo e construindo ao longo do tempo. Precisamos de verdade agradecer a essas pessoas que têm dado a cara à tapa, porque agora ficou muito mais fácil falar sobre a maconha medicinal sem sofrer tanto preconceito. 

Ilegal não terá uma continuação. Ambos acreditam que o filme só atingirá seu objetivo quando a palavra que nomeia o documentário — ilegal — deixar de fazer sentido no contexto da Cannabis medicinal. Tarso postou há cerca de três meses um novo curta-metragem, A dor dos outros, falando sobre pacientes com dor crônica. 

A dupla ainda tem muita história pra contar. E a maconha medicinal muito espaço pra se desenvolver.

Créditos

Imagem principal: Creative Commons

fechar