Edu Lyra: O pobre precisa estar no centro das decisões

por Redação

No Trip Transformadores, o ator e diretor Silvero Pereira conversa com o fundador da rede Gerando Falcões sobre os caminhos para empoderar as periferias e acabar com a miséria brasileira

“Olha só. Bom mesmo é quando tá bom pra todo mundo.” Foi assim que o ator e diretor Silvero Pereira, nascido no sertão do Ceará, abriu seu encontro com o escritor e empreendedor social Edu Lyra, criador da ONG Gerando Falcões, que viabiliza projetos de impacto social em favelas do Brasil inteiro, e um dos homenageados do Trip Transformadores 20/21.

Em comum, além do sucesso e merecido reconhecimento, a dupla tem histórias de vida marcadas pela vulnerabilidade social, pelo abandono do Estado e pela potência de mães que fizeram com que acreditassem em seus sonhos para que chegassem a lugares improváveis, contrariando estatísticas.

No programa Prêmio Trip Transformadores, que vai ao ar na TV Cultura todo sábado, às 22h, Silvero e Lyra discutiram caminhos para empoderar as periferias e levar a miséria brasileira para dentro dos museus – tornando-a, definitivamente, uma história do passado. Assista a um trecho do papo ou leia a entrevista a seguir.

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Silvero Pereira. Edu, a primeira coisa que quero te perguntar é sobre sua história, porque me comove pensar nesse garoto que sai da favela de Guarulhos, de um barraco de chão batido, com um pai que se envolveu com o crime, que foi preso, teve uma mãe diarista… Com todas essas adversidades, tudo te empurrando pra um caminho, você conseguiu driblar essa situação e se tornou escritor, palestrante, foi a Harvard, é apontado como um dos 15 jovens capazes de mudar o mundo pelo Fórum Econômico Social… O que esse garoto pensava? Quais eram as expectativas de futuro do Edu garoto?

Edu Lyra. Sua pergunta me remete a 33 anos atrás, lá no barraco. Não tinha chão de cimento, não tinha berço pra dormir – dormia numa banheira azul – e meu pai não tava dentro de casa porque ele havia sido preso por roubar banco. Costumo falar que nasci com uma bomba-relógio no meu pescoço. Meu desafio era descobrir como desativar essa bomba. Muitos dos nossos amigos, meus e seus, não conseguiram. Nossa história é a exceção da exceção, e nosso desafio é fazer com que outras bombas sejam desarmadas. Eu consegui porque tinha dentro de casa uma preta heroína – minha mãe. Todos os dias ela dizia: “Filho, não importa na vida de onde você veio; o que importa é para onde você vai, e você pode ir pra onde quiser.”

Também sou de uma família muito pobre do sertão cearense, passamos fome, sede, e lembro da minha mãe quando te ouço. Você tá falando do Sudeste, eu to falando do Nordeste, mas esse é um cenário comum em todo território brasileiro, com lugares invisíveis para governantes e empresários. Como faz pra chamar a atenção para esses lugares invisibilizados? É um trabalho de toda a sociedade. Acabei de voltar de Medellín, na Colômbia, que já foi a cidade mais violenta do mundo. Eles passaram a ser um case global de renovação social porque toda cidade entendeu que havia chegado ao fundo do poço. Precisaram se juntar, fazer um novo acordo social sobre quais problemas resolver e ter uma agenda de longo prazo, integrando políticas públicas e tecnologias sociais. Eles mostraram que é possível – e nós aqui também podemos dar um jeito na desigualdade que nunca deveria ter existido. O pobre precisa estar no centro das decisões do governo e da classe alta do país. No Brasil, é OK entregar o pior para os mais pobres, mas é preciso dar o melhor para eles. Os líderes sociais precisam de ferramentas à sua disposição para combater a pobreza em grande escala para que histórias como a minha e a sua apareçam aos montes.

Como é hoje a sua relação com a favela de Guarulhos onde você cresceu? Estarmos conectados com nossas raízes é a melhor coisa que podemos fazer por nós e pelo país. A Gerando Falcões trabalha em rede dentro de favelas, com centenas de ONGs, entregando serviços de educação, desenvolvimento econômico e cidadania em territórios de extrema vulnerabilidade. Nossa visão é que boas lideranças conseguem efetivar transformações sociais ali e em outras centenas de favelas. Só na crise de Covid-19, conseguimos alimentar meio milhão de pessoas. Tenho muita alegria por ter uma base operando na favela onde fui criado. É uma questão de distribuição de oportunidades, de equalizar o ponto de largada de cada brasileiro para que isso não continue sendo tão desproporcional.

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Como você, também tive a ausência do meu pai e tive essa mãe que muito cedo me ajudou a me entender e amadurecer. Essas ligações são responsáveis também pelas suas conquistas? Como é hoje sua relação com a sua mãe? Certamente. Nossas mães foram cruciais na nossa história. Ter uma infância miserável cria reflexos na capacidade cognitiva das pessoas. O Brasil inviabiliza o futuro de muitos cidadãos ainda na primeira infância. Minha mãe cobriu a ausência do Estado com seu amor, carinho e generosidade. Se não fosse minha mãe com toda aquela sabedoria popular, com o conhecimento que foi passado de geração em geração, eu não estaria aqui vendendo ideias e doando minha paixão e essência pro mundo. Tem uma frase que diz que a mão que balança o berço é a mão que governa o mundo. É isso, as mulheres têm um poder extraordinário de refazer histórias.

E essas histórias levam pra história da Gerando Falcões, que nasceu do seu primeiro livro, “Os Jovens Falcões”, que você publicou e saiu vendendo de porta em porta, garantindo que histórias de jovens que foram atrás de seus sonhos chegassem às pessoas. Qual é a ambição desses jovens dentro de uma estatística que diz o contrário? Quanto mais a gente oferecer oportunidades, mais condições eles terão de seguir suas trajetórias de inclusão social. A distância entre Poá, que é a periferia de São Paulo onde estou agora, até a Faria Lima deve dar algo em torno de 60 quilômetros. Mas a distância social para quem nasce na periferia pode ser de 9 gerações – isso significa mais de 20 anos. Essa desigualdade só acaba através do empoderamento e da educação formal, sócio-emocional dessas pessoas. Só chega onde chegamos quem conseguiu conhecer a própria potência, porque cansa ser incansável. Temos que diminuir essa distância para que as pessoas não cansem, não fiquem no meio do caminho.

As vozes periféricas têm ganhado mais espaço nos últimos anos, seja nas artes, na literatura ou em iniciativas como a sua. Você consegue identificar o porquê desse crescimento e seus impactos na nossa sociedade? Tem crescido porque apesar de toda a vulnerabilidade que vemos nas favelas, esses territórios são potências. É muito mais do que criminalidade. Existem forças autorais, artísticas, uma capacidade empreendedora que quer emergir desses territórios. Quando olho para o futuro, acho que vai ser muito melhor do que o nosso passado. Mas me pergunto como que a gente acelera esse processo, investindo nesses empreendedores e criando políticas públicas de fomento a esses artistas, colocando tecnologia para trabalhar a favor da inclusão. Quando toda a sociedade enxergar esses territórios como jazidas de potência e levar tecnologia para a favela, vai ter um impacto surreal. Imagina numa favela digitalizada o tanto de e-commerce que surgiria? O novo Jeff Bezos ou o novo Bill Gates pode ser um preto ou uma preta vindos da favela. Sabe? O sucesso não tem que vir só de Harvard, Stanford ou do MIT. Ele pode vir de regiões mais vulneráveis se o país faz um grande acordo social para levar as melhores oportunidades para esses espaços.

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Você fala de um sucesso que não é individual, mas de um sucesso coletivo porque a sua história é assim. O que você espera que a sociedade possa fazer, nesse momento de pandemia, para desconstruir as estruturas e levantar uma outra história de nação? Essa urgência da pandemia e o lockdown atingem as favelas como um soco do Mike Tyson no queixo, porque a economia de favela não é resiliente. As famílias já estão na corda, e a sociedade tem que tomar uma decisão: se vai assistir o nocaute ou se vai entrar no ringue para lutar e defender os pobres.

Você acredita que a pandemia pode deixar um legado de solidariedade? A gente vai depois disso continuar combatendo as desigualdades ou existe um receio de que depois disso a gente possa retroceder com o fim dessa história? A sociedade doa de uma forma muito cíclica, em períodos de crise. A transformação social de um país não vem de um ato, ela vem de um processo de longo prazo. O que vai mudar é muita gente engajada nesta década, em torno de agendas estratégicas do país. O crucial nessa história é que todo mundo encontre um lugar de transformação nesse país e não faça um mês ou dois de ações. É trabalhar no longo prazo. O contrário disso não move o ponteiro no país.

No Gerando Falcões, você tenta construir lideranças jovens nas favelas para que elas façam o que você está fazendo agora. O que você espera dessa geração daqui pra frente? Espero que nossa geração escreva cada vez mais histórias como as nossas. Madre Teresa de Calcutá dizia que as mãos que doam são mais sagradas do que os lábios que rezam. Nesses anos, tenho mobilizado muitos empresários, mas ainda não é suficiente. A transformação do Brasil não cabe no bolso de dez famílias. Está nas nossas mãos que cada um encontre seu papel transformador nessa sociedade.

O Brasil é feito mais por destruição do que por construção. É um país que tem um legado de violência, exploração de terras, escravidão… Queria que você encerrasse falando pra gente o que seria uma nação decente mesmo. Uma nação decente coloca o pobre no centro de suas decisões. Toda vez que o Brasil formular uma política pública, é pensar se ela vai chegar a quem mais precisa e se é efetivamente o melhor que a gente pode construir para os mais pobres. A gente precisa de uma transformação estética no país, mas precisa fundamentalmente de uma transformação ética. Entregar o pior para os mais pobres é colocar a gente numa rota que entra em colisão e inviabiliza muitos futuros. É preciso entregar o melhor que existe para os que mais precisam.

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Imagem principal: Divulgação

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