O fundador do movimento dos entregadores antifascistas fala sobre consciência de classe, rap, revolução e a luta dos trabalhadores: ”Essa democracia não é para nós”
Paulo Lima, conhecido como Galo, é um trabalhador desses que trazem coisas até a porta de nossas casas com uma caixa quadrada nas costas. Galo ficou conhecido depois de ter o pneu de sua moto furado e deixar de fazer uma entrega. Por causa da falha, foi bloqueado pelo aplicativo e, desesperado, fez um vídeo no qual dizia, entre outras coisas: “Sabe como é difícil carregar comida nas costas de barriga vazia?". O episódio fez Galo criar o movimento dos entregadores antifascistas e encontrar uma brecha para se transformar num galo de luta. Atualmente, ele vive de bicos de entrega. Nos intervalos, anda pela cidade procurando bolsões de entregadores para sentar e conversar sobre nossa realidade política e econômica. Fala do despertar de uma consciência social revolucionária. Ele sabe que a dinâmica que nos toca a todos é a econômica, e critica o fato de que esse é debate não seja encorajado. Ele parte do princípio que economia não fala só sobre riqueza, produção, consumo; mas sobre desejo, prazer, interesse, sonhos. Que economia constitui sujeitos, e os sujeitos que estão sendo constituídos são os empreendedores de si mesmos, uma lógica cruel. Galo é casado, mora no Jardim Guaraú, periferia de São Paulo, e tem uma filha: Aisha Sophia, de três anos. Filho único de um casal de floristas retirantes nordestinos, para chegar até o Guaraú, onde a avó cedeu a laje para que os pais de Galo erguessem uma casa, morou na favela do Sapé, no Campo Limpo e no Parque Laguna. Hoje, no terreno em que mora com a mulher, com a filha e com os pais, moram também a avó, uma tia, um primo, uma prima e os dois filhos dela. A entrevista a seguir pode abrir frestas em nossas cabeças, e é pelas frestas que a luz gosta de entrar.
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Trip. Como foi sua infância e como você começou a se entender como pessoa nesse mundo?
Galo. Meu pai e minha mãe são um casal de floristas. Hoje, a gente tem Holambra, que é uma cidade produtora de flores, então temos uma variedade de flores à disposição, mas, quando eu era pequeno, pra você decorar um casamento não tinha tanta variedade. Então, você precisava ir na serra de Santos e extrair as flores da mata virgem, extrair Bromélia, extrair Hera... E esse era o corre do meu pai e da minha mãe: extrair Bromélia e Hera da mata virgem pra vender no Ceasa. Eles não tinham com que me deixar então eu ia junto. Aí, teve uma vez que meu pai e minha mãe receberam o pagamento em dólar, um dinheiro bacana. Meu pai pegou parte da grana e a gente foi em uma churrascaria lá perto do Ceasa. Era eu, meu pai e minha mãe, mais um amigo do meu pai e a esposa dele. A gente sentou e esperou, mas o pessoal passava com a carne e não servia. Aí o meu pai subiu na mesa, começou a sapatear, começou a cantar um samba, começou a fazer imitação do Silvio Santos. O pessoal viu o barraco e veio o gerente, e aí começaram a servir carne e tal. Eu achei engraçado, mas não entendi muito bem o que ele estava fazendo, só senti que tinha uma coisa errada acontecendo. Meu pai sempre foi muito bem-humorado, sempre lidou com os problemas com muito bom humor. Um pouco mais pra frente, eu, minha mãe e meu pai estávamos numa avenida que tem aqui perto de casa quando a polícia parou o carro e tirou o meu pai de dentro com agressividade. Eles queriam que meu pai colocasse a mão para trás, meu pai se negou a colocar a mão para trás, ele não queria ser tratado como criminoso, ainda mais ali, na frente da família. Eles tentaram quebrar o braço do meu pai, tentaram colocar o meu pai dentro da viatura à força, e aí foi a vez da minha mãe: ela saiu do carro e começou a fazer um barraco, chamar a atenção da rua. De dentro do carro eu vi aquilo e consegui conectar com o que tinha acontecido na churrascaria.
O que você conectou? Eu tinha oito pra nove, nove pra dez anos, e naquela hora eu fiquei pensando por que eles não quiseram servir a carne pra nós e por que o policial quis quebrar o braço do meu pai. Eu sempre soube que meu pai nunca teve envolvimento nenhum com o crime, nada de errado, meu pai e minha mãe sempre foram muito trabalhadores. Eu ia trabalhar junto com eles. Ali, eu pensei: “O mundo tem problema com nós por motivo nenhum. O pessoal não quer servir carne pra nós, quer quebrar o braço do meu pai por causa de nada. O mundo tem um problema com nós por motivo nenhum”. Eu fui crescendo e fui descobrindo que esse problema não era só comigo, com a minha família; era um problema com o meu vizinho, com o pai do meu amigo, com o meu amigo, com o meu bairro, com o bairro vizinho. E aí, a coisa foi se montando um pouquinho na minha cabeça, sabe? Qual era o problema, qual era o tamanho do problema e como foi se formando.
Como você entendeu qual era o problema? É muito louco isso. Sua mãe fala que você é bonito, aí, de repente, você quer ouvir do mundo que você é bonito, já não serve mais só sua mãe dizer para você que é bonito e você começa a desconfiar da sua mãe. Então, será que eu sou bonito mesmo? Será que é só porque ela é minha mãe que ela acha isso? E eu tinha um outro desejo: eu não queria ouvir do mundo que eu era bonito, eu queria ouvir que eu era respeitado. E as pessoas que tinham respeito aqui na minha quebrada eram os bandidos. Esses eram os caras com quem ninguém mexia. O único ser que desrespeitava o bandido era o polícia, que tentou quebrar o braço do meu pai. Aí, eu fiquei com isso: “'Pô, mano, será que o caminho é esse?”. Ficava ali perto dos bandidos da quebrada só observando, tentando aprender como é que era, como é que fazia, como é que falava, como é que se comportava, como é que se vestia. E aí, um dia eu escutei um rap na rádio em que os caras xingam a polícia. Falavam o nome deles e falavam o bairro que eles moravam, aí, eu falei: “Eu tenho que ser bandido igual o Mano Brown, igual ao Ndee Naldinho, tenho que ser o bandido que toca na rádio porque os bandido da rádio é foda. Os bandido da minha quebrada são bunda mole, os caras tem medo da polícia. Eu quero ser igual ao bandido da rádio”.
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E aí? Aí eu fui na escola e perguntei: “Olha, mano, como é que é esses bagulhos de rap?”. Tinha um parceirinho meu na escola que já manjava muito de rap, o Neto. Infelizmente ele já é falecido; faleceu em um acidente de moto. E aí o Neto falou assim: “Mano, rap, tal, é assim, pá, pum. Escuta esse aqui que é do meu amigo”. Aí, ele colocou um rap que chamava Epidemia, que era do Dugueto Shabazz. Eu falei: “Puta, mano!”. E ele falou: “Mano, quer conhecer ele?”, e eu falei: “Quero, mano”. E o Netinho: “Demorou, vou te apresentar ele”. Aí, quando eu cheguei no Dugueto, o Dugueto já tinha lá seus 18 anos, eu estava ali com os meus 13. Eu falei assim: “Mano, como é que eu faço para escrever um rap igual ao seu?”. E o Dugueto falou assim: “É, mano, você acha que é fácil escrever um rap?”. Eu fiquei meio tímido e ele falou: “Olha, mano, pra você escrever, você tem que ler. Eu li muito livro pra escrever meu rap”. Nesse dia ele me deu Negras Raízes, [livro] do Alex Haley. E falou: “Depois que você ler isso, você escreve um rap e traz aqui para me mostrar”. Eu li o livro e o livro explodiu a minha cabeça, fez eu conhecer um novo mundo. Aí eu cheguei no Dugueto e falei: “Olha aqui meu rap”. Ele falou: “É, ficou mais ou menos. Quer outro livro?”. E ele me deu o Malcolm X, e foi isso, mano. Eu virei uma criança que pedia livro pra adulto. Queria aprender a escrever rap, queria ser o bandido da rádio.
E você aprendeu? Fiquei nessa até que cheguei nos meus 14 pra 15 e o pessoal me levou na Cooperifa [sarau de poesias realizado na e para a periferia]. Eu vi o Dugueto recitar uma poesia dele, o Gato Preto recitou a dele e eu vi um pessoal mais acadêmico, com uma picadilha mais acadêmica de professor, estudioso, levantar e bater palma de pé pra eles. Nessa hora eu tive um estalo e falei: “Ah, mano, os caras do rap não são bandidos, eu tô moscando: os caras do rap são inteligentes, o pessoal respeita eles porque eles são inteligentes. O Mano Brown não é bandido, o Mano Brown é inteligente, é por isso que as pessoas respeitam o Mano Brown. Eu não quero ser bandido, eu quero ser inteligente”. Depois que eu descobri esse segredo, que o rap não tinha nada a ver com crime, que os caras não eram bandidos, que os caras eram inteligentes e que era por isso que eles eram respeitados, comecei a buscar esse caminho. Eu falei: “Mano, agora é isso: eu tenho que ficar inteligente”. Comecei meio que concorrer com os meus professores. Eu tinha que escrever melhor que eles, tinha que ler mais que eles. Então, tudo isso foi me politizando, mas era uma coisa de consciência racial, não tinha o lance da consciência de classe em mim, eu ainda não entendia o que era isso, nunca nem tinha ouvido essa palavra. Era uma coisa de se entender preto, entender que mesmo tendo a pele clara o Brasil tem toda uma questão racial-estrutural que vai te colocar lá embaixo.
Mas e o sonho de ser rapper? Eu estava ali naquele sonho de querer ser rapper, mas a barriga começou a roncar mais alto do que o meu sonho. Em 2010, 2011 fui atrás de arrumar um trampo e o que eu consegui foi um trampo de motoboy. Meu primeiro registro na carteira é de motoboy, em 2012. Eu começo a trabalhar e sofro dois acidentes entre 2012 e 2015. E eu pensei: “Quer saber, mano? Não vou ficar arriscando a minha vida para encher o bolso de patrão, vou sair dessa fita”. Esse é o momento que eu começo a despertar pra consciência de classe. Fui trabalhar de camelô. Nessa época eu conheço minha esposa, minha filha nasce, e eu arrumo um trampo de carteira registrada, que era de técnico de Telecom. Eu gostava muito do trampo porque eu podia viajar pro interior, tinha um carro que os caras me davam para eu viajar pro interior, eu gosto do interior de São Paulo. Mas me mandaram embora na época em que a minha filha nasceu. Eu me desesperei. Eu estava num momento daora: trabalhando, estudando, quase terminando o colegial. Eu falei: “Mano, agora ferrou. Tenho uma filha pra criar, não é só mais eu, não posso mais ser o cara que eu sou, tão desapegado com as coisas, vou ter que ir atrás de uma moto, vou ter que trabalhar de motoboy de novo porque é o que eu sei fazer, é o que eu tenho na carteira, é o que eu tenho de experiência, vambora”. Fui numa concessionária, pedi ajuda do meu pai, meu pai cedeu o nome dele, eu tirei a moto no nome dele, tô pagando até hoje essa moto.
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Em que ano a gente tá? Quase 2019. O único trampo que achei era via aplicativo. Baixei o aplicativo, me cadastrei, comecei a trabalhar e descobri que era uma porcaria logo no começo. Eu falava: “Isso aqui não é trampo, isso aqui é bico. Se for pra fazer isso aqui, prefiro voltar a ser camelô". Só que aí eu já tinha comprado a moto, como é que eu ia trampar de camelô e pagar a moto, entendeu? Fiquei ali um ano e pouco trabalhando no aplicativo até que no dia 21 de março de 2020 eu explodi.
Por quê? Foi quando os caras me bloquearam pela terceira vez. O pneu da minha moto furou, eu não consegui fazer a entrega, eles falaram que não iam me bloquear por causa disso, mas me bloquearam. Eu explodi e fiz um vídeo e nele eu falo: "Sabe como é difícil carregar comida nas costas de barriga vazia?". O vídeo viralizou e essa viralização tá se desdobrando até hoje e com ela vou fazendo a luta acontecer. Tem sido assim desde o dia 21 de março de 2020.
Qual a tua luta hoje? Então, às vezes eu fico confuso nessa coisa de lutar pela democracia porque é lutar por uma coisa que eu nunca experimentei, uma coisa que eu nunca usufrui, que eu nunca tive acesso. Nem eu, nem minha família, cê tá ligado? Nós que é periferia, que é favela, que é quebrada, nós vivemos a vida como se a coisa não tivesse doendo, sabe? O capitalismo é um bom fabricador, e ele se especializou em fabricar anestésico também, entendeu? Então do mesmo jeito que dói, tem anestesia: tem cachaça, tem boteco, tem biqueira, tem igreja, tem novela, tem BBB, tem um monte de coisas pra anestesiar as pessoas, pras pessoas não terem essa sensação de dor o tempo todo, sabe? É aquilo: se você se mexer muito vai feder, não fica brigando muito, não fica discutindo muito. O policial bateu na sua cara, abaixa a cabeça, mano, não discute com o policial: ele pode te matar, pode piorar. Tá ruim tomar tapa na cara? Pode ficar pior, entendeu? Então a gente vive com essa coisa, tipo, mano, é normal tomar tapa na cara, pelo menos nós não estamos morrendo, né? Tipo: agradece pelo ovo que você tá comendo, pelo menos você tem um ovo para comer. Isso não cola em mim.
Tipo: você está trabalhando 17h por dia sem garantias trabalhistas, sem folga, mas agradece aí porque você pelo menos tem um emprego. É isso. Essa democracia não é para nós. Igual o Sesc: é bacana, mas só em bairro de boy. Não tem um Sesc Capão Redondo, não tem um um Sesc Guaianases, só tem Sesc Pinheiros, Vila Mariana. Igual faculdade, igual a USP: é uma faculdade pública, mas você não vê muito preto lá, certo? E pra você começar a ver um pouco de preto lá teve que vir cota, teve que vir umas políticas que chacoalharam o Brasil. E as pessoas criaram problema com isso, os ricos do país criaram problema com cota, com Bolsa Família, com coisas muito mínimas, tá ligado? E coisas que estão ainda muito aquém da justiça que a gente merece. Eu não sou dos que acham que tem que se jogar fora essa democracia, mas também não acho que tem que colocar ela num pedestal. Falta muito para ainda ser uma democracia, tá ligado? Muito, muito, mas muito mesmo.
Uma vez, conversando com uma trabalhadora doméstica, ela me disse o seguinte: “Milly, eu fui criada para saber que pobre não sonha, pobre trabalha pra colocar comida na mesa”. Falta muita coisa pra gente poder chamar esse sistema de democracia. Louco isso, né, mano? Louco que o mínimo já incomoda eles ao ponto deles abrirem a jaula do fascismo. Porque eles não me enganam: foram eles que abriram a jaula do fascismo, foram eles que impulsionaram essa onda fascista. Eu já sei como é que a mente delas funciona, certo? Esse fascismo tanto é prejudicial pra eles como é prejudicial para nós. Agora eles querem que algum liberal tome o poder e que esse miliciano maluco volte para dentro da jaula de novo. Eu sei onde dói, mano, eu sei onde a coisa dói, eu sei que é no capitalismo. Aí falam assim: “Mas o racismo não dói, Galo?” Pra caramba. “O fascismo dói, Galo?” Pra caramba. “Homofobia dói?” Pra caramba. “Machismo dói?”. Pra caramba. Todos esses galhos de dor doem pra caramba, só que o problema mesmo tá no tronco, mano. Adianta ficar arrancando os galhos? Não adianta; eu respeito quem bate no galho, porque eu não desmereço a dor de ninguém, mas eu sou das pessoas que quer bater o machado no tronco, quer derrubar logo isso daí, entendeu? Nós sabemos como é que vocês pensam, como é que vocês agem, sabemos que vocês têm nojo da gente, medo da gente. Por que é que o muro da casa de vocês é gigante? Sabe por quê? Porque vocês têm medo de nós. Porque vocês sabem o mal que vocês fazem para nós, mano! Porque você sabe que a hora que nós descobrir o tanto de mal que vocês fazem para nós, nós vamos pra cima de vocês, mano, é inevitável, é inevitável, e é direito nosso! É direito nosso!
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A história conta o que acontece quando o povo oprimido acorda, né? Vocês não estavam tristes naquela época lá atrás, na época que os reis dominavam, cobravam imposto etc? Vocês não arrancaram a cabeça do rei? E se um dia a classe trabalhadora tomar o poder, e a classe trabalhadora oprimir alguém, que esse alguém arranque a cabeça da classe trabalhadora também. E que a vida siga seu curso com constantes revoluções, mano. Que a história seja feita de constantes revoluções. Nós estamos querendo fazer o que vocês já fizeram, entendeu? Só que tentamos fazer de uma forma mais justa. Vocês deviam era ajudar nós, sabe? E falar assim: “Ó, é isso, mano, é direito de vocês essa revolução aí”.
No que você acredita? Eu acredito, mano, que a classe trabalhadora só vai usufruir de democracia, só vai usufruir das coisas boas que tem para usufruir, no dia que a classe trabalhadora se unir e lutar por um objetivo comum. Qual que é esse objetivo comum? A tomada do poder e depois a descentralização do poder. Depois que a gente tomar o poder, a gente precisa descentralizar o poder. Ninguém pode ter muito poder em lugar nenhum no mundo, mano, isso é prejudicial. Não dá para existir pessoas com tanto poder na mão. Poder é uma coisa que foi feita para descentralizar, entendeu? Todo mundo tem que ter um pouquinho de poder. Logicamente, eu respeito as conjunturas, não acho que o mundo é a caverna do Platão, não tô dentro da caverna do Platão achando que o mundo é as sombras, eu sei que o mundo é de verdade, mas eu também sei o que que eu quero.
Essa revolução passa pela necessidade da classe trabalhadora saber quem ela é. A classe média brasileira acha que é elite, quer fechar com a elite, quando os anseios, os sonhos, os problemas e as dívidas da classe média são os mesmos da classe trabalhadora. Na hora em que a classe média entender isso, vai ser de goleada. O cara tem uma loja de colchão em Moema e se acha burguês, entende? Ele tem um rendimento mensal de 20 mil por mês e tá nessa. Filho, se der um terremoto e o seu prédio cair, seus colchões rasgarem, já era, você vem morar aqui onde eu tô, entendeu? Nós somos a mesma coisa, mano, nós somos a mesma coisa. Tem um pessoal de esquerda que é classe média, chega em mim e fala: “Galo, sei que eu sou uma pessoa privilegiada e eu quero ceder meus privilégios”. Mano, primeiro você entende que você é classe trabalhadora. Você é uma classe trabalhadora que tá a algumas folhas sulfites desse bloco para cima de mim. Você entendeu que a gente faz parte do mesmo bloco? Se você entender que a gente faz parte do mesmo bloco, a gente já começa bacana. Agora, se você vem com esse sentimento de que “eu preciso te ajudar” a gente não vai longe. Tem gente que fala: “Galo, como é que a gente pode ajudar você na luta contra a uberização?”. Eu digo: entendendo que a uberização é um problema seu também, que a uberização vai afetar você também, dono da loja de colchão. Dono da loja de colchão, meu amigo, eu não tô falando de você, eu tô falando do cara que tá passando de helicóptero na sua cabeça, filho, entendeu?
Galo, deixa eu voltar um pouquinho esse papo porque quero perguntar a importância do Racionais MC's na sua formação. Racionais, mano, foi um norte pra nós, morou? Antes do Racionais ninguém tinha noção de território. Antes deles você não tinha gente falando: “Eu sou do Capão Redondo, eu sou de Guaianases, eu sou de Paraisópolis”. A gente tinha vergonha de dizer onde morava. Depois do Racionais veio essa noção. Cada CD do Racionais é uma aula de consciência de classe, consciência racial. Racionais falou assim: Hey boy, o que você está fazendo aqui/ Meu bairro não é seu lugar/ E você vai se ferir/ Você não sabe onde está/ Caiu num ninho de cobra/ E eu acho que vai ter que se explicar/ Pra sair não vai ser fácil/ A vida aqui é dura/ Dura é a lei do mais forte. Tinha show que eu ia do Racionais que não era nem pra escutar música, era pra ouvir o Brown falar. “Fórmula Mágica da Paz” é a minha música preferida de rap. O que o Brown falava mexia muito comigo. Eu saía do show falando: “Ah, mano, esses boy tá fudendo nós mesmo”. O rap não tinha nada de conciliação de classe, sabe? O rap era luta de classe do começo ao fim, e aquilo pra mim era importante. Na escola as mina ficavam zuando o meu cabelo, ficavam me tirando. Eu morava aqui no Guaraú e a minha mãe me colocou para estudar numa escola que é num bairro melhor, que é aqui em cima no Monte Alegre. É escola pública, mas é num bairro melhor. Tinha uma música na época do Sistema Negro que falava assim: “Cara bonita não interessa, aqui é favela”. Aquilo não era só um processo de valorização do preto, era um processo de desvalorização do branco também. Aí me dizem: “Nossa, Galo, mas tem que desvalorizar o branco?”. Claro, os caras nos desvalorizaram e se supervalorizam. Não dá também só pra ficar no “ah, tem que se valorizar, tem que se valorizar”. Eu não acredito nessa ideia de que a gente vai vencer todos os problemas do mundo com um abraço, tipo o Gabriel O Pensador.
Você chegou a compor? Até hoje eu componho. Compor pra mim sempre foi terapia, jogar as coisas num papel, escrever. Mas eu já aceitei que o hip-hop não entrou na minha vida pra eu ser um rapper, pra eu ser o Mano Brown. O hip-hop entrou na minha vida pra me formar. Sou muito grato a isso, sou uma das crianças do hip-hop e tem várias crianças do hip-hop por aí. Eu tô tentando achar elas, morou? Pra gente juntar força.
Tem um trechinho pra cantar pra gente? Ó, o meu favelês é código/ Pros boy não tem lógica/ Finge que entende, é lógico/ Tenta imitar a minha cólera/ A minha mãe sua doméstica/ Seu pai, sua suástica/ Sua mãe é da Suécia/ Meu pai nasceu da África/ Xangô a minha mística/ Me livra da estatística/ Da polícia científica/ Do exame de balística/ Por dentro da logística/ A prática é sistemática/ Contra a matemática sádica/ Sou, será, linfática/ Galo problemático, mágico, enigmático/ Prático, pragmático/ Tático, midiático/ Estereótipo ou arquétipo/ Seria ótimo se no sétimo dia uma máfia gay da Sicília fosse descoberta na Ilha de Guantánamo/ Eu vim pra confundir, fazer o som fluir/ Meu flow, feng shui/ Será que vi um bem te vi?/ Na obra de Banksy/ C'est la vie, la en/ Favelê, problêm/ Babilon, sistêm/ Bonjour, mercier Kanie/ Bonjour, cidadão Kane/ Arquétipo; meu mano eu sou um arquétipo.
“Eu vim pra confundir”. Já vi você falando isso mais de uma vez. A gente tá num momento em que a pessoa está muito cheia de si, a internet deixa você assim, sabe? Bêbado de si mesmo, morou? Então um intelectual comunista em vez de ir pra favela trocar essa ideia comunista com o cara que acabou de chegar da obra vai pra Vila Madalena se embebedar de si se achando super fodão com a camisa do Che Guevara.
Você se define como? Sou uma pessoa que consegue se conectar nos dois mundos, tanto no mundo da classe média, como no meu mundo, que é o da periferia. Eu acredito que o que vai trazer a luta forte é a conexão desses dois mundos. Se eu digo para o jornalista que me entrevista: “Você é classe trabalhadora, mano. Você é nós, mano”. Você, Milly, tá aí me entrevistando, eu tô aqui dando a entrevista, mas nós é a mesma fita, mano, nós é a mesma fita. Sua cortina é mais bonita que a minha, seu sofá é mais bacana, mas nós tá na mesma fita, no mesmo problema. Temos que juntar, juntar, juntar e ficar cada vez mais poderosos pra poder fazer aquilo que precisa ser feito, tá ligado? Tem que vir na favela ensinar o povo a escrever enxada. Se ficar lá na Vila Madalena ensinando o povo a escrever helicóptero não vai longe essa luta. Essa coisa de confundir é isso. O Galo tá falando das coisas que vocês falam também, mano. Ele não tem as palavras, não têm as terminologias, fala um monte de palavra errada, fala um monte de gíria, um monte de palavrão, mas tá falando pras pessoas que precisam ouvir, mano. Os intelectuais precisam se aproximar da favela. Você fica em cima de um pedestal falando pra sua bolha sendo que quem precisava ouvir isso aí era a Dona Maria, o Seu João. Por que nós não estamos fazendo essas ideias chegarem, simplificando mais as coisas? Por quê? Porque nós vamos parecer burros se nós ensinarmos o povo a escrever enxada, é isso? O que faz a gente inteligente é ensinar o povo a escrever helicóptero? Paulo Freire é o cara mais incrível que o Brasil já produziu. E ele não foi lá ensinar o povo a escrever helicóptero, ele foi lá ensinar o povo a escrever enxada. Na verdade, ele não foi nem ensinar, ele foi despertar o que já estava dentro do trabalhador, entendeu? Você tem que ver a sabedoria que a Dona Maria tem, que o Seu João tem.
Você fala com seus pais sobre tudo isso? Outro dia fui explicar para o meu pai o que era propriedade privada, meu pai me deu um banho. Meu pai falou assim: “Eu sei como é que funciona esse negócio de propriedade privada que você tá falando. É igual passarinho. O passarinho pousa no galho, ele não pousa no galho?”. Eu falei: “Pousa”. “E ele é dono do galho?”. Eu falei: “Não”. “Então ele é dono de todos os galhos, ele pode pousar no galho que ele quiser, não é isso?”. Eu falei: "É".
Como nasceu esse galo de luta? Foi nascendo. A cada enquadro que o Galo tomou, cada treta que o Galo viveu, cada situação foi me modelando para eu ser o que nós somos, nós somos isso aí: a soma da soma da soma da soma, entendeu? Imagina se eu não tivesse lido Malcolm X? Precisou um cara como o Malcolm X, lá do outro lado do mundo, nascer, viver, morrer pela causa pra eu querer ser o cara. Quando eu terminei de ler o Malcolm X coloquei uma roupa social e fui dar um rolê na quebrada aqui com o livro debaixo do braço. Encontrei uns parceiros e falei: “Ô, mano, chega aí. Você já viu esse bagulho aqui. Esse cara aqui é foda, mano, esse cara aqui lutou contra o sistema, tomou tiro, o cara é foda”. “Tomou uns tiros?”. E eu falei: “É, tomou uns tiros, negão tomou uns tiros aí por nós'”. "É mesmo?”.” É mesmo”. Eu tô sendo esculpido faz tempo.
O que você aprendeu nessa trajetória de fazer política de rua? Muita coisa que eu nunca tinha ouvido falar na minha vida. Eu não tinha noção do que era comunismo, eu não tinha noção do que era anarquismo, eu não tinha noção de nada, mano. Quando eu cheguei nisso aqui que vi os trotskista brigando com os stalinistas, que eu vi que o PT brigava com o PSOL, o PSOL brigava com o PSTU, o PSTU brigava com o outro, eu falei: “Nossa, que treta é essa, mano”. Eu achei que era tudo uma coisa só. Mas tem várias formas de fazer política e aí eu fui atrás da minha forma de fazer política, que é a política de rua.
Quantos entregadores antifascistas existem no Brasil? Ó, se for contar nacionalmente, deve ter entre 80 e 100. Aqui em São Paulo tem uns 40 e tantos. As pessoas falam assim: “Ô, Galo, mas por que que só tem isso?”. Porque os entregadores antifascistas não é pé de coentro, mano. Nós não planta hoje e cresce em 15 dias. Nós somos baobá, demoramos pra crescer porque a gente quer crescer saudável, entendeu? Tem muita gente que assim: “Galo, eu queria fazer parte dos entregadores antifascistas'”, e eu falo: “Não é assim, irmão. Pra fazer parte disso aqui tem que entender o que que é isso aqui". Me dizem: “Ah, eu vi que vocês agem como uma família, um cuida do outro, a pessoa se acidenta e vocês já correm pra ajudar, pra ajudar a arrumar a moto, pra fazer a situação. Eu quero fazer parte disso”. E eu falo: “É muito mais forte que isso, mano”. Então quando alguém fala assim: "E aí, Galo, como é que os entregadores antifascistas estão?', eu falo: “Pergunta pro meu bisneto, é ele que vai saber responder pra você”. Eu sou semeador, mano. Eu estou fazendo um trampo de acordar. O Galo é o cara que acorda de manhã e acorda o povo, né? O pessoal brinca assim. Eu ainda tô tentando acordar o povo.
Pelo que vocês lutam, Galo? A emancipação dos trabalhadores. Aí falam assim: “Galo, não é muito?”'. Claro que é muito, nós não somos muitos? Se você trabalha na iFood, a iFood compra a sua força de trabalho. Então eles são obrigados a reconhecer o vínculo empregatício, obrigados a te dar carteira de trabalho, a CLT – o conjunto de luta dos trabalhadores. Trabalhadores morreram, sangraram, sofreram, trabalhadores e trabalhadoras se ferraram na história pra poder garantir esse conjunto de luta, então se é iFood, se é Rappi, se é a Uber que quer sua força de trabalho, eles precisam garantir a CLT. Só que nós, entregadores antifascistas, acreditamos que melhor do que quebrar a tecnologia é utilizar a tecnologia a nosso favor. A gente quer ter a nossa cooperativa, o nosso aplicativo. A ideia central dos entregadores antifascistas é que existe força de trabalho sem patrão, mas não existe patrão sem força de trabalho. Mas pra ter uma cooperativa a gente precisa que os trabalhadores entendam o que é uma cooperativa, o que é o cooperativismo, o que é um anticapitalismo, o que é o antifascismo, o que é o antirracismo, o que é o feminismo. São todas essas lutas que integram o trabalho, que integram o que a gente acredita que o trabalho é.
O empreendedorismo é uma ideologia que é oferecida no muque pra gente. É uma maluquice que o ser humano seja encorajado a achar que é uma espécie de empresário de si mesmo. O capitalismo é bom em fabricar esse tipo de coisa: parece que não é racismo, mas é racismo; parece que não é machismo, mas é machismo; parece que não está doendo, mas está doendo pra caramba. Parece que não é escravidão, mas é escravidão, entendeu? O nome é empreendedorismo. Dizem: “Você que faz o seu horário”. Mentira! Quem faz o meu horário são as minhas dívidas. Eu acordo cedo e vou trabalhar porque eu tenho dívidas pra pagar. Eu só continuei a trabalhar nos aplicativos porque eu tenho dívidas a pagar, senão tinha saído fora dessa porcaria. Olha só como a coisa funciona: o que é o racismo? O racismo é um processo de desvalorização do ser. Por quê? Porque o que não tem valor, tem preço. Se você não tem valor, você tem um preço. O capitalismo não consegue calcular valor. Ele não sabe o valor da sua história, não sabe o valor do seu penteado, da sua pele, da sua trajetória, da sua fé, da sua família. Ele só sabe calcular o preço das coisas, entendeu? Ele desvaloriza pra poder comprar. Acontece com os entregadores também: um processo de desvalorização, de esvaziamento. Eu chego no seu ouvido, através da televisão, através da novela, através do cinema, através da revista, através da internet, e fico falando pra você: “Peão é banguelo, peão não sabe falar direito, peão é feio, peão é burro, peão é xucro”. Desvalorizando, desvalorizando, desvalorizando, e, lá na frente, eu compro. Aí eu chego no seu ouvido e falo assim: “Você não é peão, você é quase igual a mim, você é empreendedor”, e aí a pessoa se chacoalha, porque ela já tá ali naquele processo de desvalorização, e ela não quer ser banguela, ela não quer ser burra, ela não quer ser xucra, certo? Ela quer ser aquilo que é vendido como patrão. É um processo de desvalorizar uns e supervalorizar outros, entendeu?
E o que você sente quando alguém que é da classe trabalhadora consegue estudar em Harvard, volta, se elege e aí vota a favor de reformas como a da previdência, tão dura para o trabalhador? O sistema é sofisticado. Ele vai lá na periferia, pega uma Tabata Amaral, manda pra fora, pra Harvard, e aí qual é o primeiro sentimento que vai ativar na Tabata Amaral? Sentimento de gratidão, porque quando o pessoal vem aqui e traz uma cesta básica, a gente fica: “Nossa, o cara é muito gente boa, trouxe uma cesta básica para nós, olha que bacana, olha que legal”. Aí eu te coloco em Harvard, mano, eu te coloco lá no lugar mais liberal do mundo pra você fazer só amizades liberais, pra você beber liberalismo, pra você comer liberalismo e voltar pra cá, pro Brasil. E aí, aqui no Brasil, você já é outra pessoa, você já não é mais aquela pessoa pobre, sabe, você já é uma pessoa estudada em Harvard, você já tem amigos liberais, ideias liberais, eu te transformei. A pessoa que passa pela Fundação Lemann já não enxerga mais o que ela é porque ela foi esvaziada. A Tabata Amaral fez um projeto de lei que certifica a exploração. Transforma em lei a exploração, a precarização. Os advogados do iFood amam o projeto de lei da Tabata. Como você faz um projeto de lei para os trabalhadores e o patrão gosta? Que loucura é essa? Teve um pessoal do PSOL, que foi entrar como coautor desse projeto, e eu fui lá e bati no projeto. Aí o pessoal saiu, respeitou. Mas o Reginaldo Lopes, um deputado do PT de Minas Gerais, ainda continua como coautor desse projeto, tá ligado? Então, não é só a Tabata, morou? É um bonde, cabuloso. Quem foi que impulsionou o fascismo? Foram os comunistas? Quem foi que impulsionou o fascismo no Brasil? Não foram os liberais? Foram, mano.
Você bateria um papo com a Tabata? Posso ser sincero com você? Eu acredito que a Tabata assiste às minhas lives e uma hora ela vai bater aqui na minha porta. Ela vai falar: “Galo, vamos tomar um café?”. Eu vou falar assim: “Vamos”. Aí, eu vou falar pra ela: “O que fizerem com você, hein, meu? Vamos voltar para casa? Vamos voltar para casa, mano”.
Tomara que isso aconteça. Seria um bom encontro. Eu queria que você falasse um pouco sobre o “pobre de direita”, essa figura sempre tão criticada por parte da esquerda. O pobre de direita é aquele cara que tem um boteco aqui na quebrada, o boteco dele já foi roubado seis vezes, e aí chega alguém dizendo que bandido bom é bandido morto e ele vai nessa ideia. Como é que eu vou ser contra esse cara sendo que esse cara acorda cedo, tem dificuldade de alimentar a família, passa pelas mesmas coisas que eu passo, leva uma vida muito parecida com a vida que eu levo? Tem um amigo meu que fala: “Galo, nós não podemos cair nessa ideia de ficar brigando com os nossos”. Eu não sou dos que falam assim: “Ah, fascista não vale nada”. O seu João tá falando que bandido bom é bandido morto. Como é que eu não vou trocar ideia com o seu João? Tá louco? Tem que trocar ideia com o seu João, irmão. “Não, Galo, mas com o fascismo não se dialoga”. Mas o seu João não tá nessa aí não, o seu João não é fascista. “Como que ele não é fascista se ele falou que bandido bom é bandido morto?”. Irmão, nós somos um reflexo do bagulho, um reflexo da coisa que tá acontecendo aí, irmão. Nós não podemos ser culpados por isso, nós somos vítimas disso. Vítimas da desinformação, vítimas da falta de educação, vítimas de tudo isso. Pergunta para o seu João se ele sabe o que é Revolução Francesa, se ele sabe o que é burguesia, o que é proletariado. Pergunta pro seu João se ele entende o que é esquerda e o que é direita. Ele não entende, mano, ele só bebeu esse copo de chorume que deram para ele falando que era água, entendeu? Tem que continuar dialogando com ele, tem que continuar trocando ideias. Eu preciso deles, mano. Sem eles eu não sou ninguém, sem eles eu sou igual ao Sansão careca. Meu poder tá neles, o poder deles tá em mim.
Você fala: “A gente é bonito. A gente é bonito sem dente na boca”. E você também fala que os ricos querem ser vocês. Explica por que os ricos querem ser vocês. O que acontece, mano? Os ricos querem ser nós e o [psicanalista e filósofo Frantz] Fanon diz isso aí. E olha que eu nem li o Fanon, eu só escutei quem leu. Os caras querem ser nós, os caras tem tara em nós, tem fetiche em nós, porque nós é foda, mano, nós é foda! Nós é incrível! Nós sabemos fazer cada coisa. Olha só como é que nós é foda: fecha o olho agora e imagina que nós somos trabalhadores italianos. Aí você tá lá com o pão, alimentando a sua família, e a sua família tá passando necessidade porque você tem oito pessoas e só um pão. Um belo dia você fala assim: “Quer saber, mano? Eu vou amassar essa massa e vou dividir ela em oito e vou dar um pedaço para cada um, vai ficar melhor, mano”. Sua esposa chega em casa e fala: “Como é que é o nome disso aí?”, e você: “'É pizza. E vai alimentar oito”. Agora pega um trabalhador africano. Chega um senhorzinho lá, joga um monte de resto de porco pra ele: “Toma aí, seus nojentos, come essa porqueira”. Aí nós joga feijão, joga esses restos de porco no meio do feijão e alguém vem e pergunta: “Como é que é o nome disso?”. “É feijoada”. Olha como nós somos incríveis, mano. A gente criou a feijoada dos restos de porco. Na França custa 80 euros o bagulho, entendeu? Vocês acham que os ricos não querem ser nós? Os ricos pagam 80 euros para ser nós, fio. É igual o Brown fala: Esse não é mais seu, oh, subiu/ Entrei pelo seu rádio, tomei, cê nem viu/ Nóis é isso ou aquilo, o quê? Cê não dizia?/ Seu filho quer ser preto, ah, que ironia'. Olha o Mandela. O Negão fica 28 anos preso, sai e vira presidente. Você acha que o Bush não queria ser ele? Você acha que o Fernando Henrique não queria ser o Lula? Os caras querem ser nós porque nós não temos nada e queremos mudar o mundo. Os caras tem tudo e querem manter o mundo como ele tá. Nós batemos de frente sozinhos contra o sistema, foda-se, vou bater de frente, porque eu sou corajoso, eu sou peitudo, eu vou fazer o barato acontecer, entendeu, mano? Nós somos cabulosos, irmão. É que os caras não vão ter nunca essa coragem de falar: “Galo, você é foda e eu quero ser você”. Mas é claro que os caras querem ser nós. Se não nós não ganhávamos tanto Oscar, não ganhava tanto prêmio Nobel, não ganhava tanto Pulitzer, entendeu? Nossas histórias não ganhavam tantos prêmios. Pergunta lá pro Justin Bieber se o sonho dele não era ser o Tupac. Nós somos os seres humanos que inventaram a pizza, a feijoada, o baião de dois, a macarronada. Nós somos o seres humanos que inventaram a luz, os carros. Nós somos os seres que construíram as pirâmides do Egito, a Torre Eiffel, mandamos pessoas pra Lua. Nada no mundo que tá sobre a Terra foi construído por um burguês, por um patrão. Tudo foi construído por nós, pela classe trabalhadora, pela força de trabalho. Por isso que nós é foda, entendeu?
Em que circunstância você sentaria à mesa com um porta-voz da burguesia? Ao vivo, com muita gente vendo. Sozinho, não dá pra sentar com essas pessoas. Eu não vou perder a oportunidade de jantar eles nunca, mas eu preciso fazer isso na frente de muita gente. Eu acho que se tem uma coisa que eu prezo, mano, é que o meu pé sempre tem que estar fincado no chão. Eu sou classe trabalhadora, eu acredito na luta de classes e que isso fique como registro aqui. O dia que eu mudar essa opinião, mano, esquece o Galo, firmeza? Esquece o Galo. E eu tô falando isso porque existe essa possibilidade. Ninguém é tão forte assim, mano, ninguém é tão forte assim, parça, entendeu? Nós só somos fortes em conjunto. Vamos supor que se passam dez anos e eu não consigo acordar tanta gente. O que eu vou fazer? Eu vou me desesperar, entendeu? No dia em que o Galo parar de falar de consciência de classe, de luta de classe e de ódio de classe, não é mais o Galo, firmeza? Aí alguém fala assim: “Nossa, Galo, ódio de classe?”. É ódio de classe! O ódio que o pessoal fica gerando dentro de nós e que nós temos que organizar e devolver para eles, falar assim: “Olha, isso aqui é seu, isso aqui não é meu. Tá vendo esse carro que eu queimei aqui? Tá vendo esse ônibus que eu queimei? Tá vendo essa parede que eu derrubei? Tá vendo esse portão que eu derrubei? Isso aí é proveniente do ódio que vocês geraram dentro de mim, e eu tô devolvendo pra vocês, tá bom? É de vocês, não é meu, porque o que motiva é amor, mano”. O que motiva o trabalhador é o amor. O amor que ele tem pela família dele, sabe? Você acha que a mulher, ela vai, acorda cedo, vai lá para o telemarketing trabalhar, da onde que ela tira essa força? Ela tem uma nenê para ela criar, mano, entendeu? Ou então, ela quer terminar a faculdade dela. É amor que motiva esse ser humano, e é ódio que destrói ele. E é esse ódio que não pertence a nós, esse ódio pertence a burguesia, a burguesia que gera esse ódio, mano, entendeu? Então, nada mais justo devolver esse ódio para eles, firmeza? Igual a frase do Mano Brown que fala assim: Às vezes eu acho que todo preto como eu/ Só quer um terreno no mato, só seu/ Sem luxo, descalço, nadar num riacho/ Sem fome, pegando as frutas no cacho/ Aí truta, é o que eu acho/ Quero também, mas em São Paulo/ Deus é uma nota de cem.
O sistema é bom em fabricar desejos, mas quando a gente se aquieta entende que a vida não é o que vendem pra gente que ela é. Olha o que nós queremos, mano. Nós queremos uma casa, um gramado, um pé de frutas, mano. Nós não queremos helicóptero, Ferrari, nós queremos o bagulho, sabe? Felicidade para nós se resume a outras coisas, é vocês que estão muito embebedados com o demônio, que vocês acham que felicidade é Ferrari na Itália, almoçar na Torre Eiffel, sabe, mano? Andar de helicóptero, passar por cima da cabeça dos outros, ser o fodão, dormir na pena de ganso, vocês acham que felicidade se resume a isso, felicidade se resume a gente sorrindo, morou mano? Pé de fruta, comida sem veneno, sabe? Quando você fecha o olho, como é que você se imagina feliz? Andando em uma Ferrari sozinho? Ou você se imagina em um terreno cheio de frutas, um monte de gente dando risada ao seu redor, um monte de gente sorrindo? Você se imagina contando uma piada e dez pessoas rindo. E as pessoas nem riram porque a piada é tão engraçada assim, as pessoas riram porque te amam, as pessoas riram porque te amam.
Como você incorpora o feminismo nessa tua luta? Como que você se desconstrói do machismo e da LGBTfobia? Primeiro, entendendo que sou machista. Sou um homem machista e fico tentando me desconstruir. Se desconstruir não é fácil, se desconstruir é muito difícil, mano. Você precisa colocar a sua sombra pra fora e deixar as minas darem porrada, só assim que se desconstrói. Botar a sombra para fora e falar assim: “Mano, o que está errado, aí? Onde que eu tô errando? Onde eu estou pecando? O que eu estou falando que está errado? O que eu estou fazendo que está errado?”. E mesmo assim não é um botão, que você descobre que tá errado, aí é só apertar e nunca mais fazer, sabe? É uma eterna vigilância que você tem que ir mantendo, ir mantendo e ir mantendo. Eu não gosto dessa ideia de falar “eu não sou machista”, sabe? Porque a coisa é estrutural, ela é uma coisa que vem de estrutura, é uma coisa que vem do meu bisavô, do meu avô, do meu pai, é uma coisa que está aqui no meu bairro, impregnado, certo? Aí, você fala assim: “Galo, você é homofóbico?”, aí, eu falo assim: “Não, não sou”. Tá, mas aí eu junto com o grupo dos meus amigos, dou uma falha e o amigo fala assim: “Ê, viadinho”. Aí, eu falo: “Não, pera aí, viadinho eu não sou”, certo? Ou seja, você tem que ir colocando sua sombra pra fora para essa sombra ser modelada e ajustada para você conseguir voltar para dentro da melhor forma possível, filtrar isso da melhor forma possível. Então, como é que eu acredito na luta feminista, na luta dos LGBTQIA+? Tem que ouvir, mano, tem que ouvir. Eu acredito em um lugar de dor, sabe?
E em lugar de fala? Essa coisa do lugar de fala você tem que respeitar, porque assim, como é que vou falar de feminismo com mais propriedade do que uma mulher? Não tem como, mano, isso não existe. Assim como não tem como burguês falar da classe trabalhadora com propriedade, entendeu? Não tem como. Então, o que tem que ser feito, mano? Eu acredito que nós não temos que deixar de falar porque quando essa ideia do lugar de fala te coloca para não falar ele funciona ao contrário, mano. Aí, é prejudicial. Então, nós temos que falar, nós não podemos ter medo de apanhar, essa é a verdade. É machista o que você pensa? Fala, irmão. Agora, se as mina vieram dar porrada, escuta. Vira e mexe, eu dou falha, tomo as minhas porradas, escuto. Vambora, vamos tentar consertar a caminhada e é isso, mano. Agora, quando esse negócio desse lugar de fala te silencia, você fala assim: “Eu não vou falar desse negócio porque se eu falar o povo vai me cancelar”. Aí eu acho que é prejudicial, mano.
Trazer nossas sombras para a luz, né? Isso. O cara tem um problema com o amor, olha que merda, mano. O cara tem um problema com um homem amando outro homem. Qual o problema, irmão? O que você está vendo nisso? Você tá vendo problema na solução, meu parceiro. Como é que esse cara vai conseguir desconstruir isso? Só se ele tirar a sombra dele para fora, mano, entendeu? Quanto mais ele reprimir essa sombra, mais essa sombra vai crescer dentro dele. Então, a gente também precisa criar mecanismos que as pessoas também se sintam à vontade de se colocar pra fora, pra serem desconstruídas, entendeu?
Vamos imaginar uma situação hipotética. Vamos supor que você fosse uma mistura de um homem com o poder do Jorge Paulo Lemann, mas com a sua consciência. O que você faria para mudar o mundo? Eu compraria uma chácara muito grande, com muitos metros quadrados, ia construir umas casas foda com energia solar, um poço artesiano, cada casa ia ter uma horta, eu ia chamar vinte famílias pra morar junto comigo e nós não íamos deixar o dinheiro sair dessa Chácara, o dinheiro ia ficar fechado. A gente ia produzir as coisas, ia fazer tudo ali. Quando essa chácara tivesse muito poderosa e com o PIB lá em cima, a gente ia ajudar a construir outra chácara e aí, a gente ia fazer comércio de uma chácara com a outra chácara. E aí, depois, essas duas chácaras iam ajudar a construir mais duas chácaras, depois mais oito chácaras, oito chácaras e a gente ia poder comer aquilo que a gente plantava, a gente ia ser feliz, certo? Então, se eu fosse o Lemann eu ia comprar utopia pra todo mundo, não só pra mim. Porque quando esses caras têm dinheiro, eles compram a utopia só pra eles. As pessoas me dizem: “Pensar assim é utopia, Galo”. É? Mas a conta bancária desses caras não é utópica? A casa deles não é utópica? As viagens que eles fazem são utópicas? As roupas que eles vestem são utópicas? Eles vivem a utopia do começo ao fim, até o cachorro deles vive uma utopia. E quando a gente quer viver uma utopia eles começam a desacreditar a gente. “Isso não dá certo, isso não funciona”. Como que não funciona se vocês vivem isso? Vocês acham que nós quer o quê? Unicórnio voando no céu? Nós quer é morar na casa que vocês moram, também, caramba. Entendeu? Então, se eu fosse o Lemann, eu ia comprar a utopia pra todo mundo. Eu sou um cara feliz com pouca coisa, mano. Eu não sou esse cara que acredita nessa ilusão do capitalismo. O capitalismo vai lá e faz um filme que chama “O Segredo da Felicidade”. Felicidade não tem segredo, não, mano. Ser feliz é tão simples, mano. Ser feliz é você amar as pessoas, morou? Felicidade é simplicidade. Ser feliz tem a ver com você se preencher com coisas boas. Sabe coisas boas? Sabe ver seu filho subindo em um pé de árvore catando uma manga? Sabe seu filho pegando a joaninha na mão e falando assim: “O que é isso aqui, pai?”. “Olha, filho, isso aqui é uma joaninha, tem que respeitar ela", sabe? Sabe seu filho correndo com os amigos, pulando no lago? Sabe você com 80 anos conversando com mais dez velhinhos de 80 anos, falando: “Caramba, nós vivemos, hein?”. Ser feliz é essas coisas, mano, ser feliz não é segredo, entendeu? Aê, Lemann, se você estiver ouvindo isso aí, eu sei que você é triste, fio, eu sei que você daria todo o dinheiro do mundo para ser eu, entendeu? Só que como eu tenho valor, eu não tenho preço, você nunca vai conseguir ser eu, certo? Essa felicidade que eu sinto, isso aqui ninguém tira de mim, eu sou um cara feliz, mano. Eu olho pra a minha esposa, pra minha filha, pros meus amigos, pras coisas que nós fizemos... Sou feliz, mano, sou feliz. É difícil de roubar a minha brisa, hein? Então, se eu fosse o Lemann, eu ia comprar a utopia pra todo mundo porque eu não consigo entender como é que as pessoas conseguem ser felizes sozinhas. Felicidade vem da coletividade. Felicidade vem do coletivo.
Como que você gostaria que a sua filha falasse de você? Quem foi o Galo? Caralho, que pergunta difícil, mano. Eu quero ficar velho igual ao Mujica, ter um pedacinho de mato e uma kombi. Um fusquinha não, porque aí é querer ser muito o Mujica. E quero a minha filha feliz, mano, igual eu sou. Eu quero que minha filha fale assim: “Meu pai me ensinou que felicidade não tem nada a ver com vencer ou com dinheiro. Felicidade tá nas coisas simples, na coletividade”. Eu quero que a minha filha viva através do coletivo, assim como eu vivo através do coletivo. E que ela no futuro olhe para trás e fale assim: “Meu pai me ensinou a viver através do coletivo, essa coisa de ser individualista não está com nada, é caminho da tristeza. O caminho da felicidade é coletivo, não dá pra ser feliz sozinho”. Se ela olhar para trás e ver isso do pai dela, eu já vou estar realizado como pai pra caralho. Eu queria poder ouvir um dia da filha do Paulo Freire o que que ela acha do pai. Eu quero que minha filha fale a mesma coisa de mim que a filha do Paulo Freire fala dele.
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Imagem principal: Marcelo Rocha/Arquivo pessoal