Nascida em Diadema, na periferia de SP, a atriz que trabalhou como babá aos 10 anos, se tornou um dos grandes nomes das séries brasileiras mais aplaudidas
“Em relação à minha saída de vida, hoje estou milionária. E construí com o dinheiro do meu trabalho como artista no Brasil, como mulher negra. Tenho uma segurança hoje em dia, um chão, um teto. Que é o sonho de todo mundo, ter uma casa. Esse cenário era muito impensável”, diz Ana Flavia Cavalcanti. A atriz nascida em Diadema, na Grande São Paulo, construiu sua carreira no teatro, ganhando destaque com a peça “A babá quer passear”, onde reflete sobre questões estruturais e de raça no Brasil. “Acho que muitos dos nossos problemas estruturais, e do racismo, estão relacionados ao trabalho doméstico. Tudo bem você contratar uma babá, ter uma faxineira, mas como essa pessoa está vivendo? Quais são as condições de trabalho que você vai oferecer? E os filhos dessa pessoa? Também fazem natação? Deu para ela financiar um carro? Acho que todo mundo merece e quer uma vida melhor para si e sua família”, diz ela.
Nos últimos anos, passou a estrelar grandes produções na TV, como a novela “Amor de Mãe”, e fez parte do elenco de séries aclamadíssimas como “Sob Pressão”, “Onde Está Meu Coração”. Hoje, ela dá vida à personagem Sandra, uma vizinha que se dá bem com todos os moradores, na série "Os Outros", sucesso de audiência no Globoplay. A atriz é responsável também por uma série de intervenções artísticas que refletem sobre a sua infância pobre nas periferias das cidades de Diadema e Atibaia.
No papo com o Trip FM, Ana conta um pouquinho de tudo isso, fala de sua mãe, uma empregada doméstica aposentada, de beleza, dinheiro, sexualidade, televisão e muito mais. A conversa fica disponível no play aqui em cima e no Spotify.
Trip. Você dá vida à personagem Sandra na série "Os Outros", que está fazendo muito sucesso no Globoplay. Como foi sua experiência nesta obra?
Ana Flavia Cavalcanti. Em "Os Outros", você pensa: não dá para ficar pior. Só que dá. Essa série é um retrato disso e da incomunicabilidade que tomou o Brasil nos últimos anos. E eu não quero falar aqui de um ou outro governo. Estou falando de quanto, como sociedade, a gente se distanciou, se perdeu. Brigou com a família, rompeu com o pai, com a mãe…. Imagina com o vizinho. Uma incapacidade geral de diálogo. Acho que a gente tem um trabalho longo pela frente. E se você parar para analisar, os motivos das brigas são muito pequenos, mas eles estão enraizados. Na série, tudo começa com a briga das crianças, dos filhos. E a gente sabe que é muito difícil ser adolescente nas escolas. E o bullying está diretamente relacionado com as personalidades que estão fora da curva, que estão fazendo o caminho inverso do pelotão. Então se você tem um cabelo liso meio pro lado é considerado um menine e tratado de um jeito diferente. Se você é gorda, se você é gay, se você é preto, 'ah, não senta aqui com a gente'. Os jovens estão assistindo muito essa série e isso tem a ver com esse sucesso estrondoso.
Nos espetáculos "Serviçal" e "A babá quer passear", que falam sobre raça e questões estruturais, você joga luz e busca trazer a conversa sobre a condição das trabalhadoras domésticas no Brasil. Como você enxerga essa situação no país? "Serviçal" é um trabalho que eu trago para trazer a luz e a conversa sobre a condição das trabalhadoras domésticas no Brasil. As pessoas me perguntam não pode ter mais empregada doméstica? Não pode ter mais babá? Acho que muitos dos nossos problemas estruturais, e do racismo, estão relacionados ao trabalho doméstico. Tudo bem você contratar uma babá, ter uma faxineira, mas como essa pessoa está vivendo? Quais são as condições de trabalho que você vai oferecer? E os filhos dessa pessoa? Também fazem natação? Deu para ela financiar um carro? Acho que todo mundo merece e quer uma vida melhor para si e sua família.
Você fala do orgulho e da satisfação de ter construído uma casa, de estar fazendo coisas que antes não tinha condições. Nesse momento, você é protagonista de um movimento de mudança nas artes cênicas. Ao mesmo tempo em que agora existem produções para o streaming, independentes, a estabilidade que os atores tinham na Globo acabou. Como é ser atriz diante desse descolamento de placas tectônicas do tablado das artes cênicas? Essa pergunta é muito interessante porque ela é bem controversa. Em relação à minha saída de vida, eu estou milionária. Eu tô vivendo no sul da Bahia, apenas. E construí o meu palácio com o dinheiro do meu trabalho como artista no Brasil, mulher negra. Então quando eu junto tudo isso, sim, tenho uma segurança hoje em dia, um chão, um teto. Que é o sonho de todo mundo, ter uma casa. Aqui eu tô segura. Em relação ao mundo, ao mundo do trabalho, das artes, não dá para ter segurança no Brasil. Os últimos seis anos foram muito perigosos, tenebrosos.
Créditos
Imagem principal: Jorge Bispo