O youtuber marxista que foi citado pelo cantor baiano conta à Trip sua trajetória de, a partir da favela onde nasceu, se tornar um historiador reconhecido nacionalmente
A história de Jones Manoel, 30 anos, é a história de um brasileiro bem comum e quase sempre invisível, vindo de um contexto recorrente no país. Aos 14 anos, precocemente, ele já tinha começado a pular de trabalho em trabalho: foi vendedor de jornal no semáforo, entregou almoços, foi segurança, zelador e exerceu muitas outras funções. E estudava. "Levei toda a minha adolescência trabalhando e estudando, com muita dificuldade. Eu ia para a escola à noite, então, eu estava cansado, os professores também. E nessa época eu não tinha muita perspectiva de politização", conta Jones, hoje um historiador marxista, professor, mestre em serviço social, educador e comunicador popular. Dono de um canal no YouTube com mais de 100 mil inscritos, ele tem ganhado cada vez mais visibilidade desde que há alguns dias Caetano Veloso mencionou seu trabalho em uma entrevista ao jornalista Pedro Bial, na Globo. O músico baiano atribuiu ao livro de Jones, Revolução Africana: Uma Antologia do Pensamento Marxista, o fato de ter deixado para trás alguns pensamentos de "liberalóides", como ele definiu, e também mudado algumas visões que tinha sobre governos socialistas.
Para as discussões na internet, foi uma surpresa, dada a força que a voz de Caetano tem, ele citar Jones. Muita gente se perguntou como um jovem, vindo da favela em Pernambuco, recebeu uma ligação de um dos grandes nomes da música brasileira. E Jones conta que o contato foi e continua sendo importante, mas também que não houve nenhum deslumbramento. "Outro dia me perguntaram como me senti quando eu encontrei Caetano. E eu me senti normal [risos]. Sem menosprezar a importância e o brilhantismo dele na música brasileira, mas eu não era fã porque não cresci ouvindo nem ele, nem Gil, Chico, Maria Bethânia, Gal Costa. Eu ouvia Racionais, Facção Central, RZO, GOG, e forró, Cavaleiros do Forró, Calcinha Preta, Saia Rodada…", conta, pontuando também sobre a importância do rap em sua formação política. "O rap me deu a primeira explicação, o primeiro elemento de construção de uma perspectiva em que eu passei a deixar de ver como negativo ser negro. Isso foi a partir das músicas do Tupac Shakur. Minha primeira referência positiva de negritude foi o Tupac. Eu deixei de achar meu nariz feito, meu cabelo feio – eu alisava o cabelo, meu cabelo chegou a cair de tanto que eu alisava. Ele me deu autoestima enquanto homem negro, que estava saindo da adolescência para a vida adulta. Entendi que o ódio que eu sentia da sociedade era normal, era positivo, e que o crime não era um caminho para a minha expressão da revolta."
Mas não sentir revolta seria impossível. Nascido em Pernambuco, filho de uma empregada doméstica e de um pedreiro, ele tinha apenas 11 anos quando seu pai foi assassinado. As razões eles nunca souberam, algo esperado, já que 90% dos homicídios do Brasil não são solucionados e boa parte deles não são sequer investigados, como foi o caso de seu pai. Assim, sua família entrou para uma incômoda estatística: segundo dados de 2017 do IBGE, cerca de 12 milhões de famílias são chefiadas por mães-solo. Seus passos foram determinados sempre por essa realidade. "Como minha mãe criava a gente sozinha e vivia com um salário mínimo, tanto eu como minha irmã começamos a trabalhar muito cedo para ajudar dentro de casa, a complementar a renda, e também para ter algum dinheiro para lazeres típicos da adolescência, para ter um videogame, comprar um tênis, uma bicicleta... Minha mãe não tinha condições para isso, o salário mínimo que ela recebia mal dava para sustentar a casa", lembra.
Jones está atualmente preparando outro livro pela editora Autonomia Literária, já em pré-venda, o Raça, classe e revolução: A luta pelo poder popular nos Estados Unidos, e ainda neste ano lançará um título pela Boitempo Editorial, Colonialismo e luta anticolonial, os desafios da revolução no século 21, em que organiza textos de Domenico Losurdo, filósofo italiano que usa constantemente como referência em suas pesquisas.
O autor conversou com a Trip sobre sua trajetória e como construiu seu pensamento crítico a partir de estudos, militância, raiva e música.
Trip. Você enfrentou e enfrenta uma realidade social bastante crítica, em que pouca gente tem oportunidade de acessar o ensino superior. Chegou a interromper a escola em algum momento?
Jones Manoel. Eu nunca cheguei a interromper os estudos, mas eu reprovei a quinta série e a oitava série, por misturar estudo com trabalho, e eu também tenho dislexia. Só que na época eu não sabia, eu achava que eu era burro ou que não gostava de estudar. E eu levei a adolescência todinha trabalhando e estudando.
Com um contexto desfavorável, quando você considera a opção de ir para uma universidade? Quando eu tinha 18 anos, consegui meu primeiro emprego com carteira assinada e fiquei muito feliz. O padre Adriano me ajudou a conseguir – na época, eu era da igreja católica, do grupo de jovens. Mas era um emprego horrível, o salário era pago atrasado, era um colégio privado de Recife, de alto padrão, com a mensalidade cara, em Boa Viagem, um dos bairros mais nobres e caros. E a patroa, além de atrasar os salários, gostava de humilhar os funcionários, e eu vivia reclamando para os meus amigos. Nessa época, eu estudava pela manhã, estava no terceiro ano, e trabalhava à noite, pegava às 18h e largava por volta de 1h da manhã. Eu ia para a casa de bicicleta e parava no caminho para conversar, mesmo cansado, para viver um pouco dessa adolescência. E um amigo meu, Julio Santos, uma pessoa que hoje faz doutorado em educação na Universidade Federal de Pernambuco, diferentemente dos outros amigos que eu tinha, tinha na família dele gente com curso superior. Era um pouco melhor financeiramente e era mais tangível na realidade dele fazer uma universidade. E foi ele também que um belo dia me explicou o que era mais-valia.
É esse o primeiro contato com o marxismo? Eu já tinha travado um contato rápido com o marxismo a partir do rap, quando escutei uma música do Tupac Shakur que cita o Fidel Castro. Eu fui no Google procurar quem era Fidel e simpatizei, gostei muito. Ficou esse primeiro contato. E, além de me explicar o que era mais-valia, Julio também me indicou um livro de sociologia do ensino médio na escola dele. A gente estudava em escolas diferentes, e esse livro falava de racismo, de igualdade, de marxismo, socialismo, revolução industrial, liberalismo. Os autores eram marxistas e passei a me considerar marxista. E também passei a desenvolver um certo interesse por estudos. Quando eu acabei o ensino médio, Julio ficou pegando no meu pé para eu começar um cursinho pré-vestibular.
E você podia pagar? Isso veio junto com um apoio importante do meu patrão daquela época. Eu tinha parado de trabalhar no colégio e estava trabalhando num escritório de contabilidade, como office boy e auxiliar de administração. Esse meu patrão, seu Marcelino, também me estimulou a estudar, a fazer pré-vestibular, e aumentou o meu salário para eu conseguir pagar um cursinho conhecido conhecido aqui de Recife, que consumia 40% do meu salário e, por isso, ele me deu o aumento. E ele também reduziu a minha carga horária para eu conseguir estudar. Eu acabei passando no vestibular e ele de novo me ajudou, fazendo um acordo comigo para eu não pedir demissão. Ele me mandou embora, para eu receber meus direitos todos e eu fui embora estudar na universidade, já me considerando marxista. Aí comecei a me aprofundar muito sobre política, economia e sobre a história do Brasil.
Se dedicou integralmente à universidade? Em paralelo, eu participava de um projeto na minha comunidade, a Borborema, chamado Novo Caminho, que foi mantido por dois anos, tocado por mim e pelo Julio Santos, em que a gente fornecia um cursinho pré-vestibular gratuito pros jovens da comunidade. Eu, Julio e Felipe Bezerra fomos os três primeiros jovens da história da Borborema a entrar em uma instituição federal de ensino.
Ninguém na comunidade toda tinha feito faculdade até vocês? Só em instituições privadas, em instituições públicas nós fomos os primeiros, isso em 2012. Julio fez ciências biológicas na Universidade Federal de Pernambuco, eu fiz história, também na UFPE, e Felipe fez agronomia na Universidade Federal Rural de Pernambuco. Mas, depois, vieram outras pessoas. E nos dois anos que mantivemos o cursinho, mais 30 jovens da Borborema e região entraram, seja na Universidade Estadual de Pernambuco, seja na Federal ou na Federal Rural. Mesmo eu já me afirmando comunista, eu tenho essa ideia muito "paulofreiriana" de mudar o mundo pela educação, de socializar o conhecimento, pensando que, se tivesse universidade e escola para todo mundo, os problemas seriam resolvidos. É aquela ideia que circula muito no Brasil de que a escola vai resolver o racismo, a desigualdade, a pobreza, a miséria, o desemprego, uma visão meio salvacionista que se tem sobre a escola.
Você foi atrás de um reconhecimento acadêmico pensando nisso? Tem uma coisa que é engraçada, que eu não queria fazer o mestrado e nem seguir carreira acadêmica nenhuma. Mas, quando eu me formei, em 2015, eu não arrumava emprego de jeito nenhum. Nessa época, ainda tinha bolsa de mestrado, não estava nessa miséria de cortes que a gente está hoje, e aí, um mês antes de acabar a inscrição, eu fiz um projeto e acabei passando no mestrado. E foi um mestrado bem conturbado, complexo, mas deu para terminar. Nesse meio tempo, eu fiquei muito com uma tarefa de ações de formação política e intervenções públicas. Eu fiz teatro por um tempo da minha vida, tenho uma certa facilidade de comunicação desde sempre. Aí criei um primeiro blog, comecei a escrever também para vários portais de esquerda e ganhei repercussão naquela época que a Grécia estava para eleger o Syriza [partido chamado, em tradução livre, de Coligação da Esquerda Radical]. Eu estudava a conjuntura grega por causa do papel do Partido Comunista Grego, o KKE, e escrevi bastante sobre, textos que ganharam repercussão, alguns foram traduzidos pro espanhol.
Essa trajetória desemboca no YouTube e no começo dessa trajetória como um comunicador marxista? Sim, eu fui escrevendo, até que, num dado momento, eu pensei em ampliar esse trabalho e abri o canal do YouTube, que demorou muito para decolar. Eu comecei a postar vídeos em 2017 e, mesmo não decolando de cara, eu ia fazendo um trabalho de militância. Até que em maio de 2019 fui convidado pela editora Boitempo para o aniversário de Marx, que eles estavam organizando e foi na Casa Marielle Franco, em São Paulo. Foi um evento muito grande que eles organizaram, com vários intelectuais importantes, [o sociólogo] Ricardo Antunes, [o advogado e filósofo] Silvio Luiz de Almeida, [a historiadora] Virginia Fontes... E teve uma mesa só com youtubers marxistas, sobre como a gente começou a ler e estudar Marx. Aí participou eu, Sabrina Fernandes, Humberto Matos, Debora Baldin e Larissa Coutinho, do Revolushow. Essa mesa foi lotada, mais de mil pessoas acompanhando presencialmente, foi um negócio muito forte e minha fala foi aplaudida, elogiada, as pessoas gostaram.
Aí começa a vislumbrar um reconhecimento maior? Nesse mesmo dia eu fui beber no bairro de Santa Cecília, em São Paulo, e estava com o André Takahashi, que trabalha na editora Autonomia Literária, que me fez uma proposta de lançar um livro sobre o marxismo africano. É um negócio que eu já debatia, mas que tem pouca repercussão no Brasil, poucas pessoas debatem o marxismo africano. E a gente lançou o livro na Flipei [Festa Literária Pirata das Editoras Independentes], que rola em paralelo a Flip, em Paraty. Em um mês e meio, eu e o Gabriel Landi conseguimos organizar e lançar Revolução Africana: Uma Antologia do Pensamento Marxista.
Foi com este livro que o Caetano leu e conheceu seu trabalho? O Mauro Lima, cineasta, leu meu livro e gostou. O livro é uma antologia com textos de revolucionários africanos, mas eu escrevi uma introdução de umas sessenta páginas para contextualizar a relação do marxismo com a luta contra racismo e anticolonial, porque existe um discurso muito forte de que o marxismo nunca tocou na questão racial, que marxismo é coisa de branco, sociologia branca e por aí vai. Aí o Mauro deu o livro para o Caetano ler. Ele leu, gostou e no meu texto eu cito muito Domenico Losurdo, um filósofo italiano importante. O Caetano foi atrás do trabalho dele também e me convidou para conhecê-lo, para fazer a entrevista que saiu no Mídia Ninja em janeiro deste ano.
O que pensou quando recebeu a ligação do Caetano? Tem uma coisa que é interessante: na minha formação cultural, no meu crescimento desde criança e adolescente, músicos como o Caetano não fizeram parte. Meus amigos não ouviam, minha mãe não ouvia. Claro que eu sabia quem era, conhecia algumas músicas dele, no pré-vestibular todo mundo escuta e estuda a música "Podres Poderes"... Mas não era um cara de quem era fã. Então, outro dia me perguntaram como me senti quando eu encontrei Caetano. E eu me senti normal [risos]. Sem menosprezar a importância e o brilhantismo dele na música brasileira, eu não era fã porque não cresci ouvindo nem ele, nem Gil, Chico, Maria Bethânia, Gal Costa. Eu ouvia Racionais, Facção Central, RZO, GOG, e forró, Cavaleiros do Forró, Calcinha Preta, Saia Rodada…
Pensando nisso, qual foi o peso do rap na construção do seu pensamento crítico? Eu sempre senti um desajuste entre a minha realidade e os discursos que existiam no mundo. Não dava para pensar em meritocracia. Eu tinha 18 anos e trabalhava num colégio privado, em que eu via garotos da minha idade fazendo o ensino médio, o pré-vestibular, aula de idiomas, enquanto eu tinha que trabalhar por um salário mínimo. Como eu vou enfrentar? Eu ia trabalhar de uniforme já para evitar ser parado e perdi a conta de quantas vezes eu fui parado pela polícia em Boa Viagem e, enquanto eu era revistado, passavam jovens de colégios particulares – são muitos naquela região – e não eram revistados, brancos, de classe média. Sempre senti que tinha algo errado, nunca colou para mim o discurso existente, e não existia para mim meritocracia, democracia e estado de direito. O rap me deu essa primeira explicação, o primeiro elemento de construção de uma perspectiva em que eu deixava de ver como negativo ser negro, principalmente a partir das músicas do Tupac Shakur. Minha primeira referência positiva de negritude foi o Tupac. Eu deixei de achar meu nariz feito, meu cabelo feio – eu alisava o cabelo, chegou a cair de tanto que eu alisava. Ele me deu autoestima enquanto homem negro, que estava saindo da adolescência para a vida adulta. Entendi que o ódio que eu sentia da sociedade era normal, era positivo, e que o crime não era um caminho para a expressão da revolta. Foi minha primeira forma de consciência política, minha primeira forma de entender por que o sentimento de raiva e injustiça que eu sentia não era errado, ao contrário, estava corretíssimo, e foi minha primeira perspectiva de aceitação da negritude.
Você tem uma lista em mente de músicas que te transformaram? "Changes" e "Brenda's Got a Baby", do Tupac; "Malcolm X foi à Meca", do GOG, que foi a primeira vez que eu ouvi falar do Malcolm X; "Negro drama", do Racionais, que também teve uma importância para eu pensar a negritude, para eu pensar o meu lugar no mundo, é fora de série, indescritível; "Discurso ou revólver" e "Apologia ao crime", do Facção Central. O rap faz um papel fundamental de combater, refletir, e ser também um espaço de memória. A produção marginal é um espaço de resistência, mas você tem que conquistar o poder para mudar a lógica de produção das ideias.
Hoje em dia acha que seus conteúdos conseguem sair da bolha da esquerda marxista? Até 2019, eu dialogava basicamente com pessoas que eram de esquerda, mas em geral não eram marxistas. Então, era um trabalho de trazer para o marxismo, de radicalizar pessoas que já eram de esquerda. Isso refletia nos temas. Eu escrevia muito mais sobre história do socialismo, teoria marxista, discutia marxismo de classe, e os conceitos de ideologia e consciência de classe. A partir de 2019, eu me beneficiei muito da onda que foram os youtubers de esquerda, marxistas. Isso quase não existia, o Humberto Matos foi meio que um pioneiro disso, há cinco anos. Depois surgiu Sabrina Fernandes, Rita Von Hunty, Samuel Borges, Laura Sabino, Dimitra Vulcana. E a Sabrina, que é a maior youtuber marxista, a gente é amigo, é camarada no sentido de publicamente se ajudar, e ela acabou me promovendo muito. A gente gravou um vídeo junto, volta e meia ela indica meus vídeos e o público dela é muito grande e ela conseguiu atrair gente que não era de esquerda, mas volta e meia vê um vídeo de política. E esse público também foi vindo pra mim. Isso fez as abordagens do meu canal e os meus textos mudarem bastante. Eu continuo defendendo a mesma coisa, a revolução brasileira e continuo afirmando que minha política é marxista leninista. O que mudou é que eu estou muito mais preocupado em debater a Petrobras do que debater o conceito de classes sociais na obra de Marx. Fazer uma ligação entre a teoria marxista e os problemas mais imediatos.
Falando em assuntos atuais, aprendemos algo nessa pandemia? Eu ouvi muitas pessoas falarem que a pandemia ia derrubar a popularidade de Bolsonaro, que o povo não ia aceitar as mortes e por aí vai, como se fosse algo meio que automático. Que o povo ia ver a desgraça acontecendo, ia se conscientizar e reagir. E, quando começou a pandemia, eu publiquei um vídeo no meu canal, "A negação do povo brasileiro: pandemia, extermínio e luta de classes", em que falava sobre isso. Eu defendia que isso não iria acontecer e que o mais provável seria o povo brasileiro se acomodar com isso, porque o Brasil é formado historicamente na base do genocídio. Você tem um país que é de origem colonial, escravagista, que conviveu por mais de 300 anos com a instituição brutal que é a escravidão e com o genocídio da população indígena, com o extermínio. É bom lembrar que, quando os colonizadores espanhóis e portugueses chegaram naquilo que seria chamado de América, tinha mais de 40, 50 milhões de pessoas, que hoje nós chamamos de índios. A gente chega no século 21 e, se muito, hoje tem 7 ou 8 milhões, se você usar a concepção mais restrita de indígenas. O Brasil é formado a base de genocídio, a república nasce disso. E isso é tão naturalizado na nossa cultura, tão enraizado, que, para dar um exemplo significativo, bem antes de o Bolsonaro ser presidente, o comandante do Massacre do Carandiru [coronel Ubiratan Guimarães] concorreu a deputado estadual com o número de assassinados no Carandiru na legenda e é indiferente. É um massacre no Carandiru, o cara concorre e é eleito. E tudo bem.
Essa lógica independe de quem está no poder, você acha? No Rio de Janeiro, em 2007, quando a polícia matou 19 pessoas no Complexo do Alemão, o presidente Lula, quando foi perguntado sobre o acontecido, disse que não se enfrenta bandido com rosas. Uma declaração como essa não causou nenhum arranhão na biografia de Lula enquanto líder de esquerda. A gente tem uma configuração no Brasil que, em atenuados setores da esquerda, o processo de genocídio da população negra, essa lógica do extermínio da população trabalhadora, não é um problema. E, com a pandemia, teve quem falasse que, diferentemente da violência policial, ela pega todo mundo. E é claro que isso é falso.
Ficou exposto o peso da desigualdade. Os índices de mortes por causa do vírus decorrem diretamente das suas condições socioeconômicas. Isso vai definir o índice de contágio, de letalidade, de tudo. Então, sim, no início, a pandemia teve seu foco nas classes média alta e elite, por causa das viagens. Mas era muito lógico que esse povo seria o menos afetado, assim como era lógico que, assim que chegasse na periferia, seria uma barbarie, uma devastação, e se não acontecesse uma iniciativa unitária das esquerdas do país, todo mundo que é comprometido com um pouco de soberania popular e direitos humanos, isso seria naturalizado como foi. Hoje, no Brasil, a gente pode fechar o ano com 200, 300, 400 mil mortes a mais do que teria por outras doenças e motivos. Não tem nenhum problema e vai continuar não sendo um problema. Eu me surpreenderia se a gente criasse um nível de sensibilidade social e uma unidade nacional no enfrentamento da pandemia, sendo que vários setores progressistas da classe média descobriram só agora o desprezo pela vida. "Como as pessoas continuam indo para a praia enquanto as pessoas morrem?" Nada indicava que seria diferente. No Brasil, cerca de 90% dos homicídios não são investigados. É isso.
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