A gente espera que alguma coisa grandiosa vá acontecer, mas a verdade é que a vida é no miudinho, no comezinho, no farelo. E quando a gente está olhando para o grande não consegue ver o pequeno
Outro dia uma amiga me mandou uma mensagem de texto no meio da tarde perguntando: "O que você está fazendo agora?" Ela queria saber se eu podia falar pelo telefone, mas eu me fixei nessa primeira parte da pergunta. Eu estava fazendo nada. Estava ocupada entretendo minha paralisia. No momento da mensagem eu estava sentada em minha mesa de trabalho olhando a janela. Não pela janela, mas a janela. Claro que eu tinha uma lista para resolver – todo mundo tem – que envolvia preparar alguma coisa para comer, lavar a roupa, pagar contas, escrever textos, responder emails… Enfim, a lista é grande todos os dias. Mas eu estava ali entregue ao nada.
É como tenho me sentido muitas vezes num mesmo dia: paralisada. Porque eu acho que é esse o efeito que a devastação do mundo tem sobre a gente. Quem antes já tinha enfrentado o fim do mundo? Gerações passadas, claro. Os povos originários dessa terra, sem dúvida. A população negra e periférica? Sim, todos os dias há 500 anos. Alguns entre nós, portanto, já enfrentaram fins de mundo.
Mas aqueles que entre a gente ainda não tinham passado por nada parecido sabem que costumávamos lidar com o infortúnio na ordem do “eu resolvo o problema quando ele acontecer”. O que quero dizer com isso é que quando eu me via diante de um problema, eu ia lá e encarava o bicho. Dois problemas batem na porta? Pois não. Eu lidava com eles. Três? Claro, até porque problemas na vida raramente vêm na forma da unidade; eles tendem a chegar meio todos juntos para a festa das nossas tristezas. A gente sabe como é, a gente já passou por fases ruins na vida antes.
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Mas e quando tudo, absolutamente tudo, em volta é ruína? Quando não existe nem tempo nem disposição para entender o problema porque já tem outro chegando, e uma coisa ao lado sendo devastada, e outra ali adiante colapsando. Quando o noticiário em peso avisa uma coisa apenas: acabou. O mundo acabou. E, pior: acabou a esperança também. Sabe o futuro, aquele lugar projetado logo à frente? Então, no màs. Não tem futuro porque tudo está sendo destruído: a saúde, a educação, as instituições, a verdade, qualquer possibilidade decente de vida e de morte. Acabou. Morrem seis aqui, dez ali, vinte acolá. Morre gente em casa, no hospital, na rua. Tem gente sem casa, passando fome, desesperada, desamparada. Acabou. E vai piorar.
A única forma possível para lidar com o estado de espírito que vem dessa avalanche de conhecimento sobre a morte do futuro é a paralisia. Por isso, lá estava eu entretendo minha catatonice pela enésima vez no dia quando a mensagem chegou.
E aí eu fui falar com minha amiga e ex-mulher Tati Isler, que hoje é monja e professora de meditação, e a quem recorro regularmente em busca de ar. Juntas, a gente entendeu que só existe uma forma de superarmos esse momento de nossas vidas: é olhar para as miudezas.
A gente passa por essa existência esperando que alguma coisa grandiosa vá acontecer, mas a verdade é que a vida é no miudinho, no comezinho, no farelo. E quando a gente está olhando para o grande não consegue ver o pequeno.
É o abraço do filho antes de dormir, uma taça de vinho que a gente toma com a amiga por Zoom, a vizinha que deixa na sua porta um pedaço de bolo, o Corinthians que acerta uma triangulação em direção ao gol, uma dança marota na sala segurando a cachorra no colo, o telefonema matinal da mãe de 84 anos que anuncia que teve uma noite maravilhosamente boa, o sobrinho que no meio do dia escreve para dizer que está com saudade. A vida não é mais do que isso, e nem ousaria ser, porque isso já é muita coisa.
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Eu detesto a ideia de que existem lições a serem tiradas da pandemia e da forma atroz como o governo federal conduziu a pandemia no Brasil. Não acredito que a gente possa aprender com um desastre dessa natureza. Mas eu gosto da ideia de que a pandemia revelou coisas pra gente.
A pandemia revelou, por exemplo, que nunca houve democracia no Brasil, e essa revelação é bombástica. Porque democracia ou é para todos ou não é para ninguém, e se existem aqueles entre nós cujas casas sempre puderam ser invadidas pela polícia mesmo sem um mandado, se a polícia sempre pôde chegar atirando a esmo em algumas regiões da cidade, se ela mata e não deixa espaço sequer para que haja busca por justiça, então nunca houve democracia no Brasil.
A pandemia revelou que o trabalho que se faz dentro de uma casa – lavando, passando, cozinhando, comprando, colocando criança no banho, tirando do banho etc – é uma das formas mais extenuantes de trabalho e que não é por não ser remunerado que vai deixar de ser trabalho.
Revelou também que mulheres não nasceram naturalmente equipadas para esse tipo de trabalho, e que tivemos que aprender a fazer cada uma dessas coisas, inclusive as que se relacionam a filhos e filhas. Revelou que todo adulto funcional é igualmente responsável pelo trabalho que precisa ser feito na casa em que ele mora.
Revelou que alguns de nós precisaram se expor mais ao vírus do que outros, e que essas eram justamente as pessoas menos protegidas pelo Estado. Revelou que só existe saúde pública porque quando a saúde de um homem do outro lado do mundo afeta a nossa então não há como falar em saúde privada. Revelou o tamanho gigantesco do SUS, do trabalho das domésticas, das enfermeiras, dos lixeiros e dos entregadores.
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Saber dessas coisas já dá uma ajustada na linguagem que usamos para nos comunicar. Não estamos lutando, por exemplo, por saúde, mas por saúde pública. Não estamos lutando para que a democracia prevaleça ou para que ela não seja perdida porque não temos como perder o que nunca possuímos. Estamos lutando por democracia. Para que ela seja, pela primeira vez em nossa história, instalada. É uma luta imensa e da qual eu não posso me acanhar.
Quando sou inundada desse tipo de imensidão, eu me desparaliso um pouco. Nessa hora meu cachorro estende a patinha como quem pede um afago, e eu me desparaliso um pouco mais. Enquanto faço carinho no cachorro, olho lá fora, vejo uma maritaca cantando enlouquecida e feliz alheia ao fim do mundo. Sorrio. Levanto e faço um chá. Tomo uma xícara, fecho os olhos e medito. Respiro. Estico meus braços para cima. Abro o computador e começo a escrever esse texto.
E amanhã, ao acordar, serei imediatamente invadida pela consciência de que, outra vez, terei um deserto para atravessar. Um passo de cada vez, eu vou cruzar ele inteirinho, mas sem jamais olhar para frente para tentar entender quanto falta. Falta apenas o próximo passo, e, depois dele, mais um.