Milly Lacombe: Em nome da saúde e da deseducação

por Milly Lacombe

”Quase todos se emocionaram vendo as imagens das primeiras pessoas vacinadas no mundo”, diz Milly. ”Mas quem estiver concentrado na vacina não estará enxergando a imagem completa”

Outro dia, cansada de ficar trabalhando na frente do computador por tantas horas seguidas e me sentindo angustiada, saí para uma caminhada. Antes de abrir a porta é preciso passar pela cerimônia que abusa da orelha moderna: fone de ouvido, óculos escuros, máscara. Escolhi o podcast que me acompanharia e parti. Moro no bairro de IPTU mais caro da cidade de São Paulo, território de ruas limpas e arborizadas que não bate mais panelas – talvez porque tenha inutilizado todas elas para pedir a saída de Dilma – e que anda bem vazio já que muitos moradores escaparam em direção às suas casas de veraneio. Respirando fundo em busca de alguma paz interior, fui andando até uma praça ali perto, muito frequentada mesmo durante a pandemia por crianças de pele clara acompanhadas de suas babás de roupa branca e pele escura.

Depois de meia hora, quando já estava quase voltando, vi uma mãe e seu filho, que aparentava ter uns sete anos, chegando. Notei que a criança olhava para um ponto da rua atrás de mim com expressão que interpretei como uma mistura de espanto, curiosidade e dor. A mãe tirava alguns objetos do porta-malas de um carro preto de proporções grandes enquanto o menino seguia na calçada estupefato. Virei meu rosto e vi o que ele via. Um homem vestido em farrapos, arrastando um carrinho cheio de coisas. Por causa do cabelo e da barba grandes e completamente grisalhos eu o associei a um Papai Noel do fim dos tempos. E então entendi que o garoto talvez estivesse pensando a mesma coisa. O olhar do menino dizia em muitas palavras não ditas que aquilo não podia estar certo. Zumbis, afinal, não existem. Ou existem? A mãe fechou o porta-malas, pegou a mão do garoto e o conduziu em direção às outras crianças e suas babás.

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Daqui a alguns poucos anos esse garoto terá naturalizado a desigualdade que naquela tarde o horrorizou e que sua mãe sequer notou. Ela terá aprendido que quem se esforça chega lá. Que Deus ajuda quem cedo madruga. Que as histórias mais interessantes são aquelas da pessoa que não tinha nada e de tanto trabalhar virou uma empresária de sucesso. Que fora do centro expandido de uma cidade vivem muitos bandidos. Que a polícia precisa entrar lá e tentar acabar com eles. Que alguns corpos são matáveis e que não vale se preocupar com isso. Ele terá entendido que a polícia não entra atirando em condomínios luxuosos como faz na periferia e nas favelas porque em condomínios luxuosos moram aqueles que ali estão porque são dignos de suas posses.

Esse garoto será ensinado que nada é mais valioso do que as liberdades individuais, e que suas propriedades fazem parte dessa lista. Ela vai aprender que proteger a propriedade privada – que seja o seu aparelho celular – é o mais básico dos direitos sociais. Que se alguém tentar te tirar o celular e você estiver armado – porque andar armado é mais uma dessas liberdades individuais invioláveis – você pode atirar. Ele vai aprender que aqueles que querem tirar essas liberdades são autoritários e totalitários – e que essa é derradeira batalha da qual não podemos nos acanhar. A vida de um corpo matável vale menos do que um celular – e isso o garoto não demorará a
naturalizar. O garoto vai aprender que, se ele estiver vacinado contra um vírus qualquer que tenha atingido o status de pandêmico, ele pode sair por aí e fazer o que bem entender, dar as festas que quiser, ainda que a vacina não tenha chegado às camadas mais pobres do país. Daqui a alguns anos os zumbis da cidade já nem serão mais registrados pelo olhar do menino.

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O menino terá aprendido e apreendido essas coisas. E precisará de muita dedicação para desaprender todas elas e, só então, ter a capacidade de voltar a enxergar o outro. O processo de desaprender é dolorido porque está associado a ter vergonha da pessoa que um dia fomos. Mas a compensação vem com a consciência de uma verdade que abre frestas para belezas antes nunca percebidas a respeito do que podemos ser, do que podemos ver e transformar.

Não existem liberdades individuais nem saúde privada. Essa regra básica não nos é ensinada na escola, mas deveria. Não existem liberdades individuais porque não existem indivíduos. Não somos indivísiveis: somos atravessados por medos e angústias e sombras. E somos incapazes de existir sozinhos. A todo instante estamos nos relacionando, trocando, compartilhando. Somos uma espécie que chegou até aqui porque socializa. Somos a continuação dos que vieram antes e deixaram conhecimentos que aprimoramos para entregar aos que vêm. Somos afetados a todo instante uns pelos outros a ponto de a saúde de uma pessoa na outra ponta do mundo impactar a minha aqui em São Paulo. Estamos profundamente ligados ao homem que comeu o morcego mal-passado – e exatamente por isso não existe saúde privada, apenas saúde pública.

No período de um ano a espécie humana foi capaz de desenvolver vacinas que salvarão vidas contra o vírus que atualmente nos perturba. É um feito e tanto, mas os cientistas que realizaram essa conquista não podem se sentir desligados de todos os cientistas que vieram antes deles porque o conhecimento acumulado é o que nos fez desenvolver a vacina em tempo recorde. Quase todos se emocionaram vendo as imagens das primeiras pessoas vacinadas no mundo. É de fato comovente perceber que depois de tanta dor, de tantos medos e de tantas perdas, talvez consigamos passar por isso e sair do outro lado. Mas quem estiver concentrado na vacina não estará enxergando a imagem completa.

A vacina só vai nos salvar se alcançar todos e todas nós. O rico que se vacinar estará protegendo sua preciosa vida, mas não a da faxineira, do motorista, do jardineiro, do garçom. E como vírus são extremamente inteligentes, ao seguirem circulando eles sofrerão mutações e esse rico-vacinado merecedor de sua riqueza estará, em pouco tempo, outra vez vulnerável. O que não é um problema, ele imagina, porque logo outra vacina será desenvolvida e, caindo na rede privada, ele pode pagar por ela e outra vez se salvará sozinho. Mas não há como se salvar sozinho porque ninguém existe sozinho e, cedo ou tarde, ele também será impactado pela devastação social, ambiental, econômica.

A corrida não é exatamente para que nós, os ricos, tomemos a vacina. A luta é para que a vacina seja dada, antes de mais nada, a quem mais precisa dela. A parcela mais rica da população deveria ser a última a tomar justamente porque temos como nos alimentar decentemente e assim fortalecer nosso sistema imunológico. Além disso, podermos nos proteger ficando em casa ou indo para nossas casas de campo, e, em casos que precisem de médicos ou de internação, temos redes mais acessíveis.

A vida é a arte do encontro, disse uma vez o poeta. É de fato a arte do encontro. Com pessoas, com nossas fraquezas, nosso egoísmo, nossa sordidez, nossas belezas e realizações. Encontro com o microbioma composto por fungos, vírus e bactérias que habita cada um de nossos corpos aos trilhões nos mantendo vivos, e o encontro com o modo exploratório e imoral que saqueamos as maravilhas desse planeta tão improvável – maravilhas que chamamos de recurso.

Mas o planeta não foi criado para nos servir. Não houve seis dias de trabalhos divinos e intensos para que chegássemos por aqui com a casa feita e nos deitássemos em berço esplêndido – aqueles de nós que merecessem isso, evidentemente. A Terra existe a despeito da nossa espécie e apesar de nossas ações. E respiraria melhor sem nossas pegadas. Mas existir é a arte do encontro e agora que nos encontramos com essa esfera azul e molhada que não faz outra coisa que não seja tentar se curar de nossa fúria, seria bom buscar uma forma decente e justa de nos relacionarmos.

A vacina é um ato de justiça e de empatia. Que seja gratuita, que seja farta e injetada primeiro naqueles que entre nós mais precisam dela. Que isso aconteça no mundo inteiro, em cada canto, em cada mínimo cantinho, porque estamos todos ligados numa enorme teia de afetos que, se tudo der certo, um dia merecerá ser chamada de amor.

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