Nelson Motta: paixão, generosidade e sorte

por Redação

Jornalista, escritor e compositor, ele mede as coisas pela intensidade, responde ao ódio com humor e tomou como receita de vida a lição do pai: ”Quem recebeu mais tem que dar mais”

Nelson Motta viu nascer a bossa nova, teve João Gilberto como mestre e amigo e circulou com Nelson Rodrigues, Vinicius de Moraes e Elis Regina, entre outros grandes nomes da música e da literatura brasileira. Jornalista, produtor musical, escritor e compositor, criou canções de sucesso com Lulu Santos, Guilherme Arantes e Rita Lee, revelou a cantora Marisa Monte e produziu trabalhos de Daniela Mercury, Gal Costa e Tim Maia, de quem também foi amigo e biógrafo.

Aos 76 anos, Nelson acaba de lançar sua biografia, De Cu Pra Lua, que narra uma jornada que se mistura à história da cultura brasileira dos últimos 50 anos. "A sorte não tem moral ou ética, não respeita mérito, é totalmente aleatória. O que você faz com ela é o que justifica, é uma retribuição por tê-la recebido", diz. Em conversa com a Trip, ele fala dos privilégios que o ajudaram a construir uma trajetória brilhante e o desejo de, antes de ser rico ou poderoso, ser livre e de alguma forma compartilhar com o mundo o que a sorte lhe trouxe.

Trip. Estive uma vez almoçando na casa dos seus pais num sábado ou num domingo. Foi um privilégio enorme conhecer o Doutor Nelson e a Dona Xixa e, principalmente, ver o clima que tinha naquela casa. Confesso, fiquei encantado. Uma mistura de afeto familiar com cultura de todas as gerações, era quase uma jam session de talentos.

Nelson Motta. Eles eram muito agregadores, meu pai e minha mãe. Gostavam daquilo, e as pessoas iam se agregando na família. Eu quase casei com a Helena Gastal, hoje figurinista famosa da Globo, e ia com a Heleninha lá. Depois acabamos não casando, ela se casou com outra pessoa, e passou a levar ele lá para casa. Quando se separaram ele se casou com uma outra, que passou a estar na casa então. Não se sabia quem tinha sido casado com quem, era um clima de grande harmonia, e minha mãe ficava louca, né? Tinha dias que eram dez pessoas e tinha dias que eram vinte, de repente. Meu pai era pra mim o exemplo da generosidade, da tolerância. Ele que me educou nas horas que eu ficava enlouquecido, querendo chupar o sangue do mundo, e sempre me acalmava e me recomendava a não brigar, a fazer um acordo. Era um advogado humanista, essa era a sua combinação vitoriosa. Meu livro está cheio máximas do meu pai, coisas fantásticas. Ele falava: "Quem recebeu mais tem que dar mais". Ele falava isso para mim e para minhas irmãs, que nós tínhamos recebido essa sorte, casa bonita, comida gostosa, maior moleza, e tínhamos que dar mais. E acabou sendo uma ótima receita de vida. Outra máxima dele era: "Quem dá ganha mais do que quem recebe". Posso dar meu testemunho oficial: sempre agi assim na minha vida e sempre sempre me dei bem. Não pode ser uma coisa demagógica, uma coisa para uso externo. É uma coisa de você para você mesmo, que de uma forma ou de outra te fortalece, te anima, te alegra no fundo. 

Em dado momento seu pai largou o que seria a vocação dele, que era o jornalismo, e foi para a advocacia. Meu pai também precisou largar a medicina porque o pai dele o chamou para ajudar na fábrica, e ele foi se formar em Direito. Essa coisa da pessoa ir atrás do dinheiro e deixar a vocação é um negócio que me pegou muito. Em algum momento você acha que o seu pai foi infeliz por ter feito essa escolha? Não. No jornalismo naquela época, anos 40, a vida era muito dura. Ele ainda me sustentou como jornalista pelo menos durante meus dois primeiros anos. E ele escrevia maravilhosamente bem, o que acabou o ajudando muito como advogado. Isso já veio para mim de fábrica. O jornalismo tinha mais emoção para ele porque a família era de políticos, e ele foi editor de política com 22, 23 anos. Aquela paixão, aquela sensação de estar interferindo na história. Mas eu sempre o vi muito feliz com a advocacia, sem reclamar. O meu, com o perdão da palavra, sucesso como jornalista, foi dele. Ele desfrutou muito disso, tanto quanto se fosse ele mesmo, talvez até mais, de me ver realizando o sonho dele. E do lado da minha mãe também, ela sempre adorou a música, era compositora e recebia músicas do além. Eu cheguei a concorrer em festivais com ela. E de novo, com o perdão da palavra, o meu sucesso como compositor vingou as frustrações dela como compositora. Ela era quem mais vibrava com o sucesso das minhas músicas. E ela era uma figuraça, amiga íntima de gente tipo Cazuza, Neusinha Brizola, Ezequiel Neves. Ela era tarja preta, e eles adoravam ela. Ficavam tocando piano ali a tarde inteira. Cazuza foi até mais próximo dela do que de mim.

É como se a sua vida fosse a vida que seria legal que todo mundo pudesse ter, né? Uma família estruturada, que tem uma certa grana, um conforto. Você conseguiu fazer viagens internacionais, uma coisa que na época era pouco comum, ainda garotinho embarcou num navio para ir para a Europa. E você narra essa experiência de chegar lá com um guia te mostrando cidades européias, te mostrando Roma. Foi a minha universidade, que meu pai nos deu de presente. Foram quase dois meses viajando pela Europa e, cada lugar que íamos, às oito da manhã estava todo mundo com o guia. Tinha que ir nos monumentos todos. A gente aprendeu de história e arte nessa viagem, realmente o melhor presente que o dinheiro podia comprar.

Tem uma frase, acho que do Warren Buffett, que alguém teria perguntado para ele se ele se considerava um cara de sorte, e ele respondeu: "Quanto mais eu trabalho, mais sorte eu tenho". Tenho a impressão de que você trabalhou loucamente, mesmo que em alguns momentos você nem estivesse percebendo aquilo como trabalho. Porque se fechar num lugar para produzir Elis Regina, por exemplo, não dá para imaginar que isso seja exatamente um sofrimento. Eu pagaria para fazer isso.

“O que você faz com a sorte é o que justifica, é uma retribuição por tê-la recebido”
Nelson Motta, jornalista, escritor e compositor

É muito interessante ver o que você fez com esse privilégio. Você deu um jeito de espalhar ele por aí em forma de músicas, de peças de teatro, de textos, de reportagens, de colunas em jornais. Como é que se converte privilégios em coisas que são socialmente úteis? O ponto de partida desse livro foi um estudo sobre a sorte. Por que há sorte para uns e para outros não? Por que tem num momento e não tem no outro? E a sorte não tem moral ou ética, não respeita mérito, é totalmente aleatória e vai para bandidos, torturadores, como vai para gente boa. Eu pensei tanto nisso que imaginei uma espécie de uma ética da sorte: a sorte que você recebeu, que caiu do céu e você nem sabe o porquê, o que você faz com isso? O que você faz com a sorte é o que justifica, é uma retribuição por tê-la recebido. Por outro lado, desde o meu início no jornalismo, no Última Hora, meu rumo era "curtir e compartilhar". Era o que eu fazia. E dizia: "Eu jamais vou perder um amigo por causa de uma notícia". Me dei bem, ninguém teve notícias melhores do que eu desses personagens da música brasileira porque eu respeitava a privacidade deles, sabia até onde podia ir, e isso facilitou muito a minha vida.

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Dá a impressão que você viveu umas oito vidas. Viu o aflorar da bossa nova, trabalhou com o Samuel Wainer, produziu a Elis Regina, foi uma espécie de confidente, parceiro e depois biógrafo do Tim Maia. E não é que você bateu um papo com eles um dia, você teve uma relação com essas pessoas. Eu aprendi muito com eles, muitos deles foram meus mestres.

“O maior inimigo do ódio é o humor, o ridículo, a desmoralização”
Nelson Motta, jornalista, escritor e compositor

É muito difícil ver alguém conseguir navegar bem por praias tão diferentes. Ao que você atribui essa sua habilidade? Eu acho que o meu temperamento é cordial naturalmente, e isso ajudou bastante. Eu também não julgo meus amigos, nem as pessoas, por isso ou aquilo. Ou aceito as pessoas pelo que elas são ou não aceito, não sou obrigado. Assim como meu pai, eu gosto de calor humano, de amizades. Tive vários casamentos e romances na minha vida, tenho essa coisa emocional muito forte, e a emoção sempre une as pessoas. Eu escrevo e faço peças de teatro para emocionar as pessoas. Ou para fazer rir também. Eu amo e sou gratíssimo a todos os comediantes, mesmo os mais vagabundos, porque eles fazem rir. E, especialmente no tempo que a gente está vivendo, alguém que faz você rir merece tudo. O maior inimigo do ódio não é o ódio, é o humor, o ridículo, a desmoralização. Se você ficar xingando de volta, não vai a lugar nenhum. Mas se você revela o ridículo daquela pessoa ou daquela situação, é uma arma poderosíssima.

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Uma das coisas legais da sua história é que, apesar de você estar sempre pensando "como é que vou fazer para arrumar uma grana?", a grana não é o seu motivador nunca. Não é atrás dela que você corre, embora ela acabe correndo atrás de você em algumas situações. Como foi a sua relação com o dinheiro ao longo da vida? Eu adoro uma frase do Nizan [Guanaes, empresário]. Ele falou que dinheiro não traz felicidade, felicidade é que traz dinheiro. Eu achei perfeito. Como dizia meu pai: "Dinheiro não se ganha, se arranca". Então eu arranquei dinheiro para criar minhas filhas, para sustentar a minha vida toda, mas eu nunca lutei por dinheiro e por poder. Nunca tive a ambição de ser um milionário ou poderoso, eu sempre lutei por independência e liberdade. Você falou que parece que eu vivi oito vidas, e é verdade. Eu aprendi com o meu analista, que foi analisado pelo próprio Lacan, o conceito do tempo lógico em oposição ao tempo cronológico. O tempo cronológico é o relógio, o calendário, não é nada, é uma convenção. O tempo lógico é medido pela intensidade – tanto que tem sessões de psicanalistas lacanianos que podem levar 10 minutos e outras que podem levar 30 ou 40. Se em 10 minutos você já disse tudo o que era importante, o cara tem que cortar. Eu estendi esse conceito do tempo lógico para toda a minha vida. Eu meço as coisas pela intensidade.

Me lembrei de uma passagem do seu livro em que você conversa com o seu pai e ele, meio doente, teria dito: "Chegar à velhice é uma merda". E você respondeu: "Mas não chegar é pior". Foi meu último diálogo com ele.

“Eu tenho dentro de mim um tesouro incalculável de memória, de aprendizado, de experiências”
Nelson Motta, jornalista, escritor e compositor

Você acaba de completar 76 anos. Como é que está sendo essa fase da sua vida? O que tem de legal é essa experiência, que não tem preço. Ainda mais uma pessoa que teve as experiências que eu tive. Eu tenho dentro de mim um tesouro incalculável de memória, de aprendizado, de experiências. Tudo isso eu preservo e, mesmo sendo um maconheiro histórico, tenho uma memória espetacular. Eu vivo da minha memória, na verdade. Então eu vejo uma certa serenidade na velhice. Eu brinco que a minha geração foi privilegiada porque, na juventude, teve a pílula anticoncepcional, que foi o estouro da boiada. Depois, na maturidade, o Viagra: a salvação da lavoura. E, na velhice, o Google, que lembra tudo o que a sua memória não lembra. Como dizia João Gilberto, o meu swing é todo daqui pra cima.

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Em 36 anos de Trip FM, você já esteve no programa 4 vezes. Em uma delas, há uns 25 anos, eu te falei: "Porra, Nelsinho, todo mundo só fala bem de você e suas histórias sempre dão certo. Você produz o disco que vende, escreve livro que é best-seller, tudo dá certo. Eu quero saber de fracasso". E você me contou de uma broxada, nem isso, uma fuga de uma mulher que queria te engolir. Como não dá pra você relembrar suas milhares de histórias, poderia relembrar essa aí? Foi uma mancada com uma famosa promoter?

Exatamente! A mulher era muito grande, muito forte. Ainda bem que nós éramos amigos ali, não havia nenhuma intenção outra. E foi também num péssimo tempo da cocaína. Como dizia o Júlio Barroso, da Gang 90: "Tem que escolher: ou pó ou pau". É mais uma advertência a vocês. Mas tem uma outra história bem engraçada com a minha amiga Darlene Glória. Ela era um colosso de mulher, uma deusa, tinha feito "Toda Nudez Será Castigada". E eu já estava ficando conhecido na televisão, conhecendo artistas. Ela começou a mexer no meu pé, na minha mão, com aquela voz, aquele olhão azul. Com 30 anos eu fiquei completamente transtornado. Mas tinha um porém: ela namorava o Mariel Mariscot, do esquadrão da morte. Ela falou: "Vamos na minha casa, que é aqui perto no Leme?". E a única pergunta que interessava não foi feita: "E o Mariel?". Então eu fui lá na casa da Darlene correndo, e não foi uma broxada, mas foi uma ejaculação precocíssima. O medo venceu o tesão. Foi ótimo.

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“Quando a canção está pronta ela não te pertence mais. Ela está na boca do povo. Cada um usa a canção do seu jeito”
Nelson Motta, jornalista, escritor e compositor

Uma coisa que poucos artistas conseguem é, através de um trabalho que não tem a pretensão de ser popular, virar popular. Isso é bem difícil e você parece que conseguiu. Quando a canção está pronta ela não te pertence mais, entendeu? Ela está na boca do povo. Cada um usa a canção do seu jeito. O cara tá triste, ouve ali Como uma onda, "tudo passa, tudo sempre passará", dá uma animada. O cara tá numa felicidade total, vem como advertência: cuidado, "tudo passa, tudo sempre...". A durabilidade de algumas letras minhas é porque elas servem para várias situações. Uma das maiores emoções que eu tive com a música foi em 78, quando estourou com As Frenéticas um mega hit no fim do ano, "Perigosa, bonita e gostosa", parceria com a Rita Lee e o Roberto de Carvalho. "Vou fazer você ficar louco, muito louco, dentro de mim". Era genial isso. Invenção da Rita. A música estourou no Brasil inteiro e eu fui passar o Carnaval na Bahia. Ver aquela Praça Castro Alves, aquela multidão, o trio elétrico e aquelas pessoas cantando "eu sei que eu sou bonita e gostosa". Todo mundo foi bonita e gostosa naquele carnaval, eu quase chorei de emoção. As pessoas se apossando da música e usando a música para exprimir os seus sentimentos: essa é a maior alegria do compositor.

Créditos

Imagem principal: Victor Hugo Cecatto

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