Aos 74 anos, o surfista e fotógrafo que rodou o mundo e chegou a morar dentro de uma canoa na Amazônia conta como encara a velhice: ”Quero estar quite com a vida todo dia”
Tito já esteve em mais de 100 países, espalhados pelos 5 continentes. Atravessou desertos, florestas, montanhas e morou dentro de alguns veículos, de Kombis a barcos. Ao 74 anos, ele viveu várias vidas em uma, tendo assumido as mais diversas profissões para possibilitar o estilo de vida itinerante: foi jornalista, fotógrafo, shaper, lavador de pratos e carpinteiro. Quando se instalou na Amazônia, morou em uma canoa e produziu reportagens para o programa Globo Ecologia, mas, mais do que ambições profissionais, a vontade de Tito sempre foi desfrutar e contemplar a natureza: "Trabalho para justificar estar tendo tanto prazer em ver".
Responsável por registros fotográficos únicos do começo da cena do surf nacional, reunidos no livro Arpoador Surf Club, Tito mantém o espírito aventureiro que o levou a pegar ondas ao redor do mundo, mas lamenta que o corpo não sustente o mesmo pique. "A gente vai ficando decrépito, é natural da vida", diz. Em conversa com a Trip ele fala sobre a sua trajetória múltipla, trabalho, envelhecimento e o amor dentro de seu estilo de vida peculiar.
Trip. Carlos Probst, que foi seu companheiro no rali Camel Trophy, certa vez disse sobre você: "Para muita gente a vida é um arco-íris com um pote de ouro no final, e as pessoas ficam na correria para chegar nesse pote. O Tito é o cara que fica curtindo o arco-íris". Você se vê assim, como alguém que entendeu que a jornada é muito mais interessante do que o destino?
Tito Rosemberg. Isso é meio clichê, mas é verdade. É um clichê que incorporei talvez de tanto ter lido Sidarta [livro de Hermann Hesse] quando garoto, que é um livro sobre a vida, sobre partir, viajar, viver o presente e diversas coisas. Sidarta foi barqueiro, foi contador, foi amante da rainha. Ele teve uma vida enorme e variada. Eu soube logo, desde garoto, que a minha vida seria diferente. Eu pegava onda no Arpoador com aquela classe média, burguesa, da zona sul, mas, ao contrário da maioria, eu era politicamente engajado. O mesmo jipe que de manhã levava a prancha para o Arpoador para pegar onda, à tarde levou o corpo do Edson Luís, aquele estudante que foi assassinado, do velório na Câmara dos Deputados até o Cemitério São João Batista, pois o pessoal da área política da UNE tinha me pedido para carregar o caixão dele. Eu sempre transitei, pegava onda e fazia teatro com um grupo bem progressista da época. Gostava dessa vida eclética, dessa troca de coisas. Quando você pensa que eu sou surfista, eu sou ator. Quando você pensa que eu sou ator, eu sou ativista político. Quando você pensa que eu sou ativista político, eu sou um alienado de mochila viajando. Eu gosto de estar em todos os mundos, sempre fui muito antenado e isso só me trouxe prazer. Dalai Lama diz que o homem trabalha a vida inteira para conseguir o dinheiro para pagar pela medicina que vai curar ele quando estiver velho. Eu nunca tinha lido o Dalai Lama, mas eu já pensava isso. É uma coisa existencialista. Quando eu era garoto tentava entender o Sartre, o Camus, era metido a Beatnik no Arpoador, ficava nas pedras usando um correntão grandão no pescoço. Gostava dessa vida natural, na praia, mas ao mesmo tempo meio deprê, meio intelectual, e cresci nesse meio de campo. Nunca fui intelectual e também nunca fui deslumbrado. Uma das grandes tristezas que eu tenho é de ter sido parte do movimento hippie sem ter sido hippie, porque eu não consigo me enquadrar em nenhum time, nenhum clube, nenhuma tribo ou nenhuma seita. Eu sou ateu, não tenho religião, mas eu tenho todas as religiões. E não tenho também nenhuma profissão, mas me orgulho de ter tido tantas profissões, de um dia ter sido a pessoa de comunicações sociais e relações internacionais da Funai, e no outro morar numa Kombi na Califórnia pegando onda. Para mim, tudo igual. Não consegui nunca descobrir quem eu era e, felizmente, continuo ainda buscando.
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A sua ligação com o mar parece ter um peso na sua história, seja como banhista, como surfista ou como fotógrafo. E hoje você vê o mar da janela da sua casa, no Rio Grande do Norte. Você sente uma necessidade de estar perto do mar? Eu tenho essa fixação no mar desde criança. Nasci na Urca e meu irmão mais velho era muito doente quando garoto, minha mãe ia cuidar dele no hospital todo dia. De manhã cedo ela me deixava com um cacho de bananas junto com os salva-vidas da praia da Urca e eu ficava naquela praia maravilhosa – sem poluição naquela época – até ela voltar do hospital à tarde. Os salva-vidas me davam água e eu comia banana e ficava brincando na areia da praia com dois anos de idade. Isso é uma coisa que influencia muito o caráter, a personalidade, a alma de uma pessoa. Depois a minha família se mudou para Copacabana, a um quarteirão do mar, e eu vivia na praia. Com sete anos eu entrava dentro d'água ajudando os salva-vidas – porque eu ficava lá levando papo, metido a machão sentado com eles no posto, que era uma barraca na praia – e, quando tinha alguém se afogando, eles saiam correndo e eu ia atrás. Mais tarde na vida eu salvei muitas pessoas e é uma coisa estranha que eu poderia dizer: que o mar já tentou levar diversas pessoas e eu consegui tirar, talvez eu tenha essa dívida com ele. Minha mãe me falou várias vezes que eu ia morrer no mar. Espero que não seja, porque se afogar deve ser uma morte horrível, mas ela dizia que eu ia morrer no mar de tanto que eu me expunha às ondas. Quando garoto eu pegava onda grande. Depois eu fiquei mais inteligente, comecei a pegar ondas menores, e me diverti muito com isso. E velejei muito, levei um barco do Rio até Punta del Este, sem motor. Tive o meu próprio veleiro, um de 27 pés na Baía de Guanabara, e viajava dez vezes mais longe do que era permitido pela Marinha. Também tive um barco emprestado durante três anos na Baía da Ilha Grande, de 42 pés. Velejei muito na Europa com amigos. A vela também me seduz muito.
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Quando eu fui morar na Amazônia descobri que esse fascínio que eu tinha não era pelo mar, era pela água, pelos grandes corpos de água. Eu entrei num êxtase ao ver aquela quantidade de água, o Rio Amazonas gigantesco, o Rio Negro, você vê a outra margem tão longe, quando vê. Ali eu me senti muito integrado. Comprei uma canoa de seis metros, pequenininha, fiz um tetinho nela e passei quase dois anos viajando pelo Rio Negro, fazendo matérias para o Globo Ecologia, mas, para dizer o certo, bundando muito. O que eu mais gosto de fazer é bundar, ficar passeando, curtir, ver as coisas. Eu sou um voyer da natureza, adoro ficar olhando, então trabalho para justificar estar tendo tanto prazer em ver. E a natureza na Amazônia me seduziu, eu fiquei totalmente enlouquecido. Saía viajando na canoa e quando chegava à noite eu parava na margem, entrava no Igarapé, amarrava a canoa numa árvore e dormia tranquilamente. Eu botava o mosquiteiro, dormia a dez centímetros da água e os peixes boi vinham, chegavam bem perto, os botos. Tive a oportunidade de viver uma vida paradisíaca. Mas com sofrimentos. Não vamos dizer também que tudo é maravilha, porque as dificuldades estão lá. Quando cheguei na Califórnia em 1970 eu comprei uma Kombi e dormia nela, e eu não tinha dinheiro para comprar comida. Passei um inverno inteiro sem pegar onda porque eu não tinha força nem para remar. Aí eu consegui um emprego, consegui me alimentar melhor, voltei a pegar onda. São experiências mágicas e eu me orgulho de todas as merdas que eu fiz, os lugares horríveis que eu me meti, as coisas que eu imaginei que fossem ser maravilhosas e se tornaram a maior furada. Faz parte da vida. Mesmo que dê errado serve de lição para alguma coisa, né?
Em uma entrevista para a Trip em 1987 você declarou que estava meio decepcionado com as mulheres, meio desiludido. Naquela altura você já tinha vivido dois casamentos, com duas mulheres estrangeiras, uma americana e uma irlandesa. De lá para cá, o que você aprendeu com relação às mulheres? As pessoas, sem um gênero específico, são muito ligadas à imagem, à aparência, a como os outros as veem. Para mim é difícil até encontrar amigo, o que dirá uma companheira. Viajei de Kombi, de moto, de barco, sempre sozinho, e não é que eu não goste de gente. Pelo contrário, eu sou gregário, adoro contar histórias. É porque as pessoas têm dificuldade em me acompanhar. A minha trajetória é peculiar e eu entendo que seja difícil. Por exemplo, eu me apaixonei por uma pessoa que queria dar a volta no mundo. Aí a gente começou a viajar, viajar, viajar, e um dia ela falou: "Não dá para a gente parar um pouco?". Há um processo de amaciamento das pessoas com a idade e isso cria um distanciamento. As pessoas querem uma casa, "vamos ter um lugar", "vamos ter um quintal", "vamos ter um cachorro", sabe? Eu não quero bicho, eu quero viajar. Bicho dá trabalho, é âncora, filho é âncora. Eu nunca tive filho por causa disso. Eu tenho problema com responsabilidade, de ficar responsável por uma criança, ou por um cachorro, um gato. Foi difícil e devo dizer que demorou 69 anos para eu encontrar uma alma gêmea. E encontrei uma mulher de São Paulo, do Tatuapé, que me completou, porque ela chegou e falou: "Não tenho interesse nenhum em ter filho". Quando eu falei que eu adoraria morar num motorhome, ela disse que também adoraria. Uma mulher que não quer ter filhos, que quer casar e morar num motorhome, eu não deixo ir embora tão facilmente, né? Felizmente, depois de um processo de sedução longo e pedregoso, deu certo e nós estamos casados há quatro anos. E nós nos sentimos muito, muito, muito felizes mesmo quando a gente pega o nosso motorhome – finalmente conseguimos comprar um motorhome velhinho na França – e vamos passar três meses no Marrocos, acampando nas montanhas, nas dunas, longe das cidades, longe dos campings, no meio da natureza. E aí você vê que realmente dá certo. Aos 69 anos consegui encontrar uma parceria pela qual estou verdadeiramente apaixonado.
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Você está falando dos 69 anos como um momento importante com esse encontro e me dá vontade de saber mais como é que você está curtindo essa fase da vida. Você está com 74. Como estão sendo as dores e as delícias dessa fase? Olha, eu sei exatamente o que representa ter 74 anos porque, ao contrário de outras pessoas que ficaram velhas pegando onda, eu tive limitações. Com 71, 72 eu tive que botar uma prótese no fêmur. Vai limitando. Agora já estou precisando de uma outra prótese no outro fêmur, da perna direita. A gente vai ficando decrépito, é natural da vida, também não posso querer ter uma vida eterna. Para fazer tudo o que eu quero fazer certamente eu deveria viver até os 150, mas não vai dar. É maravilhosa pero curta. Eu quero morrer velho, mas o mais jovem possível. O meu corpo tem 74 anos mal vividos porque eu sou diabético, tenho hipertensão e insuficiência renal crônica, e eu causei todas estas doenças pela vida que eu tive. Uma pessoa que vive 15 anos dentro de carros e barcos, que tipo de comida pode comer? Pipoca, batata frita de pacote. Como é que você atravessa o Saara? Com uma caixa de salame, porque o salame aguenta calor, aguenta qualquer coisa. Eu digo que eu inventei a dieta microbiótica, só micróbio. E tudo isso que eu comi me fez um puta mal, estou pagando o preço pela vida que eu tive. Mas um dos meus médicos me falou: "Cara, não reclama, os meus outros pacientes estão muito piores do que você e ficaram a vida inteira num escritório".
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Eu me lembro que quando garoto eu olhava os adultos, meus tios, parentes, pais dos meus amigos, e todos os homens tinham amantes. Eu dizia: "Eu quero ser diferente, ter amante é uma hipocrisia". Preferia morar sozinho, participar de qualquer tipo de loucura sexual, mas não ter amante, que é muito brega. Eu nunca queria ser brega, minha adolescência toda foi essa: "Não permitais, senhores dos céus, que eu seja brega". Consegui! Lá pelo 50, 60, eu disse: "Porra, estou adulto e não fiquei um canastrão". Agora o desafio é como chegar aos 70, 80, sem ser amargo, azedo, mal humorado, depressivo, como a maioria dos velhos que estão por aí. Porque perderam a vida. Eles abdicaram dos seus sonhos e envelheceram sabendo que vão morrer e não fizeram nada do que queriam. Eu me preocupei em sempre estar com a conta zerada. Se eu morrer hoje, conversando contigo, vou morrer em paz. Pelo menos eu fiz tudo o que eu tive vontade. Tenho muitos projetos, me preocupei em ser um realizador dos meus sonhos. Não consegui realizar uma grande revista, um grande jornal, um grande livro, um grande porra nenhuma, mais vivi a minha arte e a vida. Não consegui ser um grande artista, mas tento viver a vida de forma artística, criativa e talvez por isso eu não tenha me tornado um velho chato, estressado, sempre reclamando. Um dos maiores tesões que eu tenho hoje em dia é quando um cara mais jovem diz: "Dá para chegar com 74 nesse pique?". Eu quero estar quite com a vida todo dia.
Eu recebi aqui no programa o pensador e líder indígena Ailton Krenak e ele comparou a pandemia que estamos vivendo com uma bronca que uma mãe dá nos seus filhos. É como se a Terra fosse a mãe, nós os filhos e a pandemia fosse um alerta, um puxão de orelha que nos faz repensar a forma que estamos vivendo no planeta. Agora muita gente tem perguntado quando é que tudo volta ao normal, mas é o normal que estava levando a gente pro buraco. Qual é a sua visão sobre esse momento? Olha, eu não tenho a menor dúvida de que isso é vingança da natureza. Já está evidenciado que, quanto maior o desmatamento, mais vírus e bactérias e coisas que estão absolutamente organizadas, em vida pacífica na natureza, entrarão em contato conosco. Vários cientistas brasileiros estão avisando que a destruição da Amazônia vai liberar uma quantidade enorme de vírus e bactérias que vivem lá e que estão quietinhos, numa boa, e que virão nos perseguir no futuro. Eu fiquei muito triste que quando começou a quarentena surgiu esta expressão "novo normal". Cara, 74 anos e eu continuo um idiota e inocente, porque eu acreditei em novo normal, em novos paradigmas, "vai mudar tudo", "as empresas todas vão se tocar". Nada disso, vai continuar tudo absolutamente igual! A criação de gado, o desmatamento. As pessoas fazem "segunda-feira sem carne", mas devia ser o oposto, a segunda-feira com carne, e todos os outros dias sem. Porque a pecuária é hoje um dos maiores criminosos do planeta. O Brasil tem mais boi do que gente, deveríamos controlar isso. Eu acho que a Covid-19 era inevitável be outras piores virão. Só não sei se eu ainda vou estar por aqui.
Créditos
Imagem principal: Arquivo pessoal