Para Amyr Klink, a quarentena provocará mudanças de valores

por Bruna Bittencourt

O navegador fala sobre as semelhanças e diferenças entre o isolamento que viveu no mar e o ocasionado pelo coronavírus

Em 1984, Amyr Klink atravessou a remo o Atlântico Sul durante cem dias, na companhia apenas de baleias, tartarugas e tubarões. Seis anos depois, passou 13 meses na Antártica, sete deles imobilizado em uma baía, em seu veleiro. Em 1998, completou a circunavegação polar em 88 dias, depois de encarar icebergs de 40 metros de altura e tempestades indomáveis. Nas três expedições, enfrentou o mar sozinho.

O navegador e escritor brasileiro de 65 anos está acostumado a longos períodos de isolamento, e não confinamento, como ressalta. “É uma situação bem maluca a nossa, nenhum roteirista teve criatividade para escrever um negócio destas proporções”, diz à Trip sobre a pandemia e o consequente distanciamento social ao qual estamos mergulhados. 

Amyr se preocupa com as tantas incertezas do momento e com as vidas que serão impactadas pelos desdobramentos econômicos da Covid-19, especialmente em países de baixa renda como o Brasil. Mas prevê uma mudança de valores pós-pandemia e lembra, na entrevista a seguir, que em um barco até o sujeito mais intolerável pode colaborar para o bem-estar do todo.

Trip. Como você compara o cenário atual de isolamento que estamos enfrentando com aqueles que já viveu no mar? 
Amyr Klink. Sempre fui sozinho para a Antártica com a perspectiva de eventualmente acontecer uma experiência de isolamento. Mas a grande diferença é que estamos vivendo uma experiência de confinamento, pior que isolamento, porque você não pode se deslocar. Vivi um período longo, de quase um ano, afastado das pessoas, mas eu tinha essa liberdade maravilhosa de me deslocar. Na primeira volta ao mundo [1990], fiquei cinco meses sozinho no barco, mas estava andando como um doido. Não há uma sensação de tédio, como muita gente imagina, porque tinha tarefas vitais para fazer, problemas constantes para resolver e sobreviver. E o que estamos vivendo tem uma sutileza muito mais dolorida porque não estamos correndo um risco imediato. É uma experiência muito nova. Fui muito feliz nas experiências que tive de isolamento ou parcial confinamento, quando o barco ficou preso na Antártica, mas era uma situação prevista, tinha me preparado para ela.

Fico muito preocupado agora com pessoas que não tem condições de se preparar uma experiência como esta. A segunda de onda de desastre é econômica, muito mais danosa, na minha opinião, em países de baixa renda como o nosso. Ninguém sabe quantas vidas isso vai custar, por consequência direta ou indireta, como falta de dinheiro para comprar comida. E sinto que os governos estão completamente inseguros.

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Mas, no âmbito individual, o que pode nos ajudar a manter a sanidade mental em um período de isolamento? A certeza da finitude. A primeira vez que ouvi falar sobre isso foi no relato do famoso explorador [irlandês] Ernest Shackleton [1874-1922], quando ele fez a primeira tentativa de ir ao pólo sul e foi um fiasco. Ele falou algo assim: “Prefiro ficar mais cem dias neste sofrimento, nesta tortura do que cinco minutos na incerteza, sem saber quanto tempo vamos aguentar”. Acho que a grande diferença é esta, a incerteza: fui para ficar um ano e pouco na Antártica e acho uma tortura terrível não saber quanto tempo vamos ficar em confinamento. Esta dúvida é global.  

O que te ajudava no barco, durante esses períodos? Sozinho, tinha uma demanda de tarefas que me consumia muito tempo. Acho que não é a mesma situação do que estamos vivendo agora. Existe um problema de como preencher o tempo. No período em que fiquei isolado, sabia que tinha os recursos necessários para ir até o fim daquele período, fosse uma semana ou um ano e meio. Sinto que o que está incomodando as pessoas é não ter certeza se terão meios para ir até o fim. Se tiver uma correria para os supermercados, amanhã já não tem mais comida. A questão do emprego informal no Brasil, em países africanos e latinos, é muito grave. As condições [econômicas] necessárias para a pessoa sobreviver no confinamento ficam completamente imprevisíveis.  

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Um navegador lida com a imprevisibilidade do tempo, que ele também não consegue controlar. É verdade, mas é uma imprevisibilidade menos sorrateira. O vento muda e não dá para completar a travessia em três semanas, leva cinco, dá muito medo. Você luta com questões imprevisíveis, mas são reais. E tem algumas certezas: quantas horas você aguenta sem dormir, quantos dias você tem de comida, quanto você tem de água. E nem isso a gente pode ter agora. Faz uma diferença muito grande ter algumas pequenas certezas e se apoiar nelas. Eu tinha várias que eram muito gratificantes. Se o barco não soltasse do gelo, teria que ficar mais uma semana [imobilizado], mas eu tinha comida para este período. É um situação bem maluca a nossa, nenhum roteirista teve criatividade para escrever um negócio destas proporções.

Como você planeja viver este período de quarentena? Estamos em casa, temos uma biblioteca bacana, vamos aproveitar para ler. Não estou deixando ninguém sair correndo para comprar toneladas de papel higiênico. É hora de bom senso. Tem um aspecto muito bacana e semelhante [à navegação] que é a noção de que você está em um barco e que todo mundo precisa colaborar. Já viajei com os caras mais chatos e intoleráveis que existem e você sempre descobre que não há ser humano que não possa colaborar com o todo. Qualquer pessoa, por pior que seja a índole, por mais chata que seja, pode contribuir para o bem-estar do grupo. A gente tem se resignar, ser mais tolerante. Está acontecendo muita coisa positiva agora, de gente que se propõe a ajudar quem tem menos. Talvez este seja um movimento que vai mitigar essa polaridade de convicções políticas que aconteceu nos últimos anos no mundo.

Como esses períodos de isolamento te modificaram? Acho que a sensação mais legal não é a de vitória, mas a de tolerância. Você fica extraordinariamente mais tolerante quando está em um ambiente em que percebe que aquilo que levou uma vida para fazer pode sumir em alguns minutos. Isso aconteceu comigo em todas as viagens. Muda a escala de valores, você passa a ter um certo desprendimento em relação às coisas que tem e passa a buscar um certo propósito. Nos próximo anos, vai haver, de alguma maneira, uma mudança de valores neste barco que batizamos de Terra. No fim do ano passado, levamos para a Antártica em um barco de turismo um grupo de brasileiros que ficaram maravilhados. Na volta, me deu um coceira: tinha um barco pronto na marina, fazia quase 30 anos que ele foi pela primeira vez [para a Antártica] e continuava em ordem, o que é muito raro. E foi a viagem mais legal que fiz até hoje entre mais de 40 porque foi muito difícil. O período na Antártica foi maravilhoso, mas a ida e o retorno foram muito duros. Deu um vento contra de Paraty [RJ] até as Ilhas Malvinas [extremo sul da América Latina], o tempo inteiro. Tenho mais idade, quero fazer as coisas mais rapidamente, quero chegar logo, e preciso controlar a ansiedade: “Era só o vento mudar 30 graus e a gente teria chegado duas semanas antes”. É uma navegação muita bruta.

Todo mundo fala do aquecimento global, mas a frequência de ventos acima de cem nós nunca foi tão alta, estatisticamente. Pegamos uma semana com ventos de 170 km por hora, é apavorante. Se não quebrar nada, você se machuca dentro do barco porque tudo pula. Tem que dormir amarrado no chão, porque na cama você decola, bate no teto. Mas foi legal porque foi um exercício de resiliência, de paciência, de desprendimento. Deixamos o barco lá [nas Malvinas] e estava louco para aproveitar duas semanas de pausa [nele]. Mas agora não tenho como buscar o barco, fecharam as fronteiras, Argentina, Chile. O bichinho tá lá e vou ficar plantado aqui.

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O aprendizado então é de resiliência? De se tornar mais tolerante. Repensar os valores: será que a gente precisa ter tanta coisa, tanta pressa? Eu sei que todo mundo, de alguma maneira, vai construir um propósito em cima desta experiência. Nesta viagem para a Antártica, encontrei amigos que fiz 30 anos atrás, que vivem em um grau de escassez, de falta de recursos... Moram em barcos caindo aos pedaços, minúsculos, em regiões com ondas de 15 metros de altura. Uma vida muito difícil para um ocidental normal compreender, os valores deles são outros. E eles são felizes lá. Adorei a viagem em grande parte por conta dessa experiência.

E quais são seus planos para quando as fronteiras reabrirem? Quero levar o primeiro Paratii [barco com o qual realizou a invernagem de 1990] para a Cidade do Cabo (África do Sul). E, no ano que vem, nesta época, fazer o trecho entre África do Sul e Brasil. Ou talvez partir da Namíbia, visitar a cidadezinha onde comecei a remar [na expedição pelo Atlântico Sul]. Esta travessia é considerada a mais top do mundo. É longa, são 3.700 milhas, com os ventos mais constantes do mundo, mar forte, mas não tem tempestade, é tudo a favor. Para um velejador de longa distância, é considerado o trajeto mais delicioso.

Créditos

Imagem principal: Marina Klink

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