Marcelo D2: Antes da música não me sentia parte do mundo

por Kamille Viola

25 anos depois de seu disco de estreia ao lado do Planet Hemp, D2 lança “Assim tocam os MEUS TAMBORES”, realizado durante as mais de 150 horas de lives que transmitiu pela Twitch na quarentena

Marcelo D2 estava trabalhando no novo disco do Planet Hemp quando começou a pandemia. Teve que deixar o processo porque os temas abordados pelo grupo eram, segundo ele, “quase que um atestado do fim do mundo”. Até que recebeu um convite da plataforma Twitch, que pertence à Amazon, para realizar uma série de lives. Foi testando diversos formatos, como cozinhar e discotecar com sua mulher, Luiza Machado, contar as histórias por trás de seus discos ou, ainda, conversar sobre a legalização da maconha. Até que teve um estalo: fazer um álbum durante as lives, registrando todas as partes do processo – de telefonemas para convidar amigos para participar do disco a uma conversa com seu advogado sobre direitos autorais –, com direito a sugestões do público.

Nascia Assim tocam os MEUS TAMBORES, um trabalho transmídia que inclui um disco e um filme, apresentados em transmissão ao vivo no canal do artista na Twitch neste sábado (26), a partir das 13h. Em seguida, o álbum chega a todas as plataformas digitais. “Era o que eu estava precisando fazer, sabe qual é? Que é um disco de empatia para caramba, de resposta para tudo isso que a gente está passando, desde uma política de extrema-direita fascista a um momento de pandemia”, explica D2. “É um disco de sei lá quantas milhões de mãos, porque era live todo dia com quatro mil pessoas. Acho que ninguém fez um disco assim". 

Realizado durante mais de 150 horas de lives, o disco traz 12 faixas com participações de artistas como Anelis Assumpção, Baco Exu do Blues, Criolo, Djonga, Jorge du Peixe, Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Russo Passapusso. Como não poderia deixar de ser em um período de isolamento, a família de D2 também fez parte do trabalho. Além de cantar em Rompeu o couro e É manhã, Luiza assina a produção executiva e contracena com ele no média-metragem feito para o projeto. Seu filho mais velho, o rapper Sain, está faixa Pelo que eu acredito, ao lado de Djonga. Luca ajudou o pai com a parte tecnológica durante as transmissões e Maria Joana registrou os bastidores do processo em super-8, filme que será lançado nos canais D2.

Aos 52 anos e comemorando 25 anos de carreira, ele diz que a música o fez se sentir parte do mundo e que continua buscando o que sentia quando começou: “Desde a primeira vez que eu subi no palco do Garage [extinta casa de shows alternativos no Rio], que foi o meu primeiro show, tinha sete pessoas e eu me senti tão foda ali, é isso que eu procuro todo dia quando eu levanto. Procuro aquela sensação, de ter voz, de me sentir bem com o que eu estou falando. 'Vocês vão ter que me ouvir', sabe?".

Trip. Como foi para você fazer pela primeira vez um disco nesse processo interativo, colaborativo, diante dos fãs e com a participação deles, um dilúvio de informação?

Marcelo D2. Eu entrei nessa quarentena fazendo o disco do Planet. Estava quase pronto. E aí eu quase que entrei numa síndrome do pânico. Tive uma depressão, porque escrever um disco do Planet Hemp dentro de uma quarentena é quase um atestado do fim do mundo. Isso me cansou muito, eu botei de canto, e tive esse convite da Twitch para fazer as lives. Eu não estava muito a fim de fazer live no começo. A gente vem de uma geração que, sei lá, está acostumada a ver DVD ao vivo, e nunca foi uma coisa que me fascinou. Show ao vivo na TV... Poucos conseguiram realmente transportar para dentro da tela o que é realmente um show. Principalmente nessas lives agora de quarentena. Acho que a Erykah Badu fez muito bem isso. Não sei se tu viu a live dela.

Não vi. Porra, foda. Ela na casa dela, andando pela casa, os músicos todos no quintal dentro de umas bolhas. Foda. Superfuturista e tal. Sei lá, era uma coisa que não me fascinava muito, mas eu tinha que fazer, né? Vieram alguns convites de live-show, eu falei: “Ah, cara, quero fazer diferente.” Fiz sozinho, cantando algumas músicas e parando, falando de influências e tal. Estava buscando o meu caminho ali, né? Porra, no meio da minha quarentena, hoje em dia com tanta coisa boa na internet, eu vou parar para ficar vendo [artistas] cantando música um do lado do outro? E aí veio esse convite, eu falei: “Beleza, vambora, vamos ver o que vai dar!”. Senti que dali ia sair alguma coisa. Comecei a fazer meus programas. Almoço dos Cria, eu e Luiza cozinhando, fazendo DJ set ao mesmo tempo. É uma coisa superdivertida, uma das lives que eu mais gosto de fazer ainda. Fiz uma live sobre [os álbuns] o Eu tiro é onda (1998) e o A invasão do sagaz Homem Fumaça (2000) – que eu parei porque achei que era uma live superinteressante e quero me dedicar a ela, sei lá, chamar alguém para me ajudar a fazer a minha autobiografia via live. É uma ideia minha do futuro. Faço uma live segunda-feira, eu e Luiza, sobre arte, Resistência Cultural. Nós não somos críticos de arte, mas a gente ama. Quarta às 20h, sobre maconha: falei com delegado, médico. Mas tudo isso ainda estava num lugar que não é o que mais gosto, que é de expressão artística.

E como nasceu o Assim tocam os MEUS TAMBORES? Estava procurando alguma coisa para fazer que fosse um manifesto de arte, tinha a ideia de fazer um festival. Num sábado à noite, a Luiza dormiu e quando ela acordou eu estava no mesmo lugar, em pé, do lado da cama, com essa ideia de fazer o disco. O festival acabou sendo o começo e o final: teve um dia 4 de julho e vai ter um agora, dia 26 de setembro, que é o final desse manifesto. A ideia de fazer um disco ao vivo, o primeiro estalo já foi muito maneiro: “Caralho, vai ser foda! Fazer um disco na frente de todo mundo, com a participação de todo mundo…” Eu não tinha noção do que poderia acontecer. Mas a minha ideia era fazer cinco, seis músicas. Acabaram saindo 12! Eu demorei muito tempo para entender que a procura era mais importante do que a batida perfeita, que era a grande coisa daquele disco. O que o disco representa para mim não é muito claro na hora em que estou fazendo ou logo depois que lança. Esse disco, cara, é diferente: eu já tinha uma noção do que ele seria para mim e para as pessoas que vão ouvir. Era o que eu estava precisando fazer, sabe qual é? Que é um disco de empatia para caramba, de resposta para tudo isso que a gente está passando, desde uma política de extrema-direita fascista a um momento de pandemia. Eu sabia que era um álbum para unir pessoas, para sair de 2020 melhor do que a gente começou. Pelo menos para mim. Não quero ser pretensioso a ponto de falar que vai fazer isso com as pessoas. Eu espero que faça, mas termino 2020 melhor do que entrei porque fiz esse disco. Fiz esse trabalho com muitas participações, mais toda a influência que tem das lives. Meu modo de escrever sempre foi num canto, sozinho, com as minhas revistas, meus discos, meus filmes. Fazer um disco na frente de todo mundo teve muita influência das pessoas. Qualquer coisa que eu falava no chat influenciava. Sei lá, alguém falava: “Isso aí está parecendo Jorge Ben.” Aí, putz, já ia para esse canto. Ou não, levava para um canto totalmente diferente, fazia fugir desse lugar. Essa influência externa foi importante para caramba. É um disco de sei lá quantas milhões de mãos, porque era live todo dia com quatro mil pessoas. Acho que ninguém fez um disco assim, com quatro mil pessoas no estúdio todo dia.

E nesse processo, das lives quase todo dia, você ficou horas online, fazendo esse trabalho e pesquisando para o disco também. A sua vida acabou ficando em função disso? Você tinha tempo ou energia para fazer qualquer outra coisa? Quando eu tive o convite e a Twitch me pediu que eu fizesse seis horas semanais, eu já sabia que ia ser intenso. Mas fazendo o disco, não. Eu não fiz outra coisa na minha vida desde 4 de julho que não esse disco. Só penso nisso. Tenho feito seis, sete horas de live por dia, quase todo dia. Não tinha folga. Eu tinha que me preparar para a live, porque aí eu ia falar com o Mamão e gravar ele, ia ligar para o Criolo, ia falar com o Kiko Dinucci e a Juçara Marçal, ia ter que escrever letra com o Ogi lá ao vivo. Então eu passava a minha manhã toda me preparando para essa live e quando acabava eu estava impactado por ela. É muito, muito intenso. Depois de uma live, você sai exausto, com a cabeça a milhão. Eu tinha que guardar isso em algum lugar, algum HD, tinha que fazer o download disso. Então eu ia lá sentar para escrever, para produzir com a Luiza. Eu tenho brincado que esse disco tinha que sair Marcelo D2 e Luiza, porque ela foi uma baita de uma parceira. Ela fez a produção executiva, cantou, ajudou a escrever, fez design do release, escreveu texto para o lançamento… Isso foi muito bom também. Teve um momento em que a gente disse: “Quando a gente deitar na cama, a gente não vai falar de trabalho.” Porque a gente ia para a cama e ficava: “Falou com não sei quem?”, “Ligou para não sei quem lá?”, “Tem que fazer isso”.

Como é que foi para vocês trabalharem juntos? Acho que uma das minhas conexões com a Luiza é a arte. A gente se conheceu numa galeria de arte, a gente fala de arte, manda música um para o outro o dia inteiro – ou mandava, antes da quarentena, agora dentro de casa não tem muito como. E a Luiza é uma baita artista. Acho que o meu grande arrependimento é ela ter ficado tanto na parte burocrática. Alguém tinha que fazer isso, acabou sobrando para ela. Eu tenho certeza de que não conseguiria fazer esse disco se não tivesse essa ajuda. Eu sou MC, então estou ali no comando da palavra. E ouvir a Luiza sempre foi muito importante para mim. Muito mais do que minha companheira ou minha esposa, foi uma parceria de artista, ela dividir esse lugar comigo com uma humildade fodida também, porque é o meu disco, e ela se doou para o projeto como algo dela. E isso só me deu suporte. Além disso, está atuando no filme do disco – continua sendo um álbum visual. 

Você me disse uma vez numa entrevista que achava que o que mudou sua imagem de “maconheiro” para um cara legal e pai de família foi o dueto com o seu filho, o Sain, em Loadeando, de À procura da batida perfeita (2003). Como foi agora trabalhar com seus filhos? Estou tentando limpar a minha imagem até hoje, tá foda [risos]. Isso foi natural. Primeiro porque o Luca já era usuário da Twitch, estava há quatro anos lá, porque ele é gamer, adora esse ambiente. Quando eu falei para ele, ele disse: “Pai, Twitch é o futuro.” Aí eu falei: “Puta merda, como é que eu não sei disso? Tá, vamos”. Então eu usei o computador dele, ele que bota as lives no ar para mim, monta tudo. Ele trabalha comigo mesmo, eu pago um salário para ele. Isso nos aproximou muito. Ele está morando aqui e isso me fez ficar mais junto dele, é até emocionante falar. É difícil explicar em palavras quando você tem uma conexão assim com teu filho. A Jojô [Maria Joana, sua filha], que também tem um lado artístico para caramba, pelos cantinhos foi mostrando o trabalho dela. Na primeira live, ela mostrou para a Luiza o que estava filmando durante o dia. Ela falou: “Você tem que mostrar isso para o seu pai.” Quando eu vi, ela estava editando em vídeo tipo um making of do que estava acontecendo na casa, em super-8, superbonitinho. Eu disse: “Vamos terminar a live com isso.” E aí no filme tem uma parte que eu pedi para ela filmar, com essa mesma linguagem. Não tinha como ser diferente, né? Todo mundo trancado em casa. Acho que eles estão em idades em que estão começando a entender mais quem sou eu na música brasileira – mais do que o Marcelo pai, o Marcelo D2 e tal. Isso me deixa orgulhoso, honrado dos meus filhos olharem para o meu trabalho e terem admiração. Trabalhar junto foi especial para caramba. Eu espero que seja, além de tudo, motivador, mostrar para eles que dá para fazer qualquer coisa que eles queiram na vida. Ainda mais com todos os privilégios que eles têm, de estudar em escola boa, falar inglês, ter acesso a tanta coisa, ter um pai que fez sucesso na vida e pode dar isso para eles.

Você criou o conceito do disco com o historiador e escritor Luiz Antonio Simas, não é isso? O nome do disco faz a gente pensar nas religiões de matriz africana. Para você, qual a importância de afirmá-las? Teve algum motivo para você escolher esse nome? E você tem alguma ligação com a fé de matriz africana? A primeira vez que eu falei isso foi em 2006 ou 2007, para o DJ Primo, e continuo falando até hoje para quase todos os DJs que tocam comigo: “Senhoras e senhores, assim tocam os meus tambores”, apontando para os toca-discos. Tem uma certa transgressão nessa atitude. Não tinha nada pré-determinado sobre o conceito do álbum. Eu só sabia que esse nome ia me levar para algum lugar. E, na verdade, eu achei que fosse me levar para longe dos tambores. Pensei: “Eu vou dar uma volta e fazer meus tambores serem tambor eletrônico, ou toca-discos, ou guitarra, sei lá.” O Simas falou alguma coisa sobre samba no Twitter que eu disse: “Acho que eu queria conversar com ele na live.” Liguei para ele, chamei. Eu já tinha um caminho do disco, já estava com as bases todas pré-determinadas. Mas quando ele contou a história sobre Ingoma (ou Ng'oma), aquilo mudou a minha cabeça sobre o que eu queria falar. Não só sobre tambor, mas o que eu queria que as pessoas soubessem. Aquele mito que ele conta mexeu comigo para caramba, porque, de uma certa maneira, eu gostaria de levar para o público não só esse conto, mas o que ele representa, o que a história do tambor e dos nossos ancestrais representam. A partir dali, fui procurar o Kiko Dinucci, a Juçara Marçal. Mostrou um caminho diferente para mim, que acho que vai estar até mais claro no volume 2. O caminho de tambor de religiões de matriz africana não era algo que eu queria a princípio, mas o Simas me deu uma sacudida e me botou nesse trilho aí. O conto está no disco, o Criolo que lê. Achei que ficaria legal na voz dele. Lógico, na hora ele aceitou, tudo dentro de uma live também.

Sim, foi superlegal a mensagem delePorra, a mensagem dele me fez chorar. Ele tem sido um cara muito influente na minha vida nos últimos meses. Está no disco do Planet Hemp também, gravou uma música incrível. Conheço o Criolo há muitos anos, mas sempre de camarim, festa de rap, de noite. Ter me aproximado dele, ter conhecido o irmão, isso tem mudado muito… Ele é um cara de muita luz. Acho que o disco tem essa influência do Simas e dos tambores africanos, que têm essa coisa além de ser religiosa, de serem mensageiros. De novo falando do meu papel como músico, eu acho que quero ser muito mais do que um entertainer, sabe? Quero levar uma mensagem. O disco tem essa coisa que os do Planet Hemp tinham, um caminho de esperança num mundo melhor, de uma luta. Só que a luta é diferente, é de empatia, de amor, de abraçar o próximo, se dar a mão. Eu aprendi muito com as brigas no Twitter com esses bolsominions. A gente tem que trazer eles para o nosso campo. Porque a gente perdeu a briga, o presidente fascista deles está lá. E nosso lugar, das pessoas que estão comigo no disco, que eu me relaciono, que conheço, é outro. Nosso lugar de luta é de inclusão, de respeito, de amor. Acho a gente tem que trazer essa galera para esse lugar, porque lá eles já ganharam. Nesse lugar de ódio eles são melhores que a gente. Então a gente tem que sair de 2020 aprendendo isso: não adianta a gente odiar, porque eles odeiam mais. Nesse lugar eles são melhores que a gente.

Sua resposta é isso, tentar trazer… A gente vai ter que aprender a deixar esse ódio de lado e lutar por inclusão, por um amor. Tem um ditado que diz que não se combate ódio com amor, porque o ódio é muito ingênuo e frágil para se combater com o amor. Eu acredito nisso também. Mas pacífico não é pacato, né? Não vai dar certo ficar brigando. Eles são ardilosos, fazem coisas que a gente não tem coragem de fazer. Eles não têm escrúpulos.

Falando das lutas e inclusão, nessa quarentena o mundo se chocou com o assassinato do George Floyd e isso teve repercussão no Brasil. Tivemos protestos, vimos pessoas negras sendo convidadas pela imprensa a falar sobre isso, finalmente, vimos o Silvio Almeida, por exemplo, ganhando muita projeção. O que você acha das discussões sobre racismo neste momento? O Brasil é um país muito único, né, cara? Os Estados Unidos são uma potência, mas as nossas discussões são todas muito pautadas pelo que acontece lá. A gente sabe que aqui é muito diferente. O negro no Brasil não tem o espaço na sociedade que tem o negro americano. Eu acho que racismo é racismo e não dá para se medir, “ah, esse aqui sofreu mais”. Mas pô, o Brasil foi o último país nas Américas a acabar com a escravidão. A gente ainda está milhões e milhões de anos atrás nessas discussões no mundo inteiro. É muito triste que tudo isso tenha acontecido, mas a gente vê que os negros não estão aguentando mais. Essa coisa tem que explodir. Principalmente nos Estados Unidos e no Brasil, que têm esses governos de extrema-direita, fascistas, white power, KKK, tudo que tem de ruim na sociedade está nesses dois governos. Se a gente não levantar a voz, vai acabar indo ainda mais para dentro desse buraco. O estrago que esses governos vão fazer nesses dois países é enorme. A discussão racial no Brasil acho que está começando ainda. Vimos isso acontecer na TV: pauta sobre racismo onde nenhum jornalista negro estava falando. A própria GloboNews se tocou depois e começou a mudar isso. Mas a gente vê muito pouco o lugar do intelectual negro. Temos vozes que podem ajudar essa sociedade para caramba. Acho que o Silvio Almeida é uma delas. O AD Junior é um cara que tem me fascinado ouvir ele falar. É uma voz superimportante e superconsciente de tudo. Mas acho que a gente está engatinhando sobre assunto ainda. Enquanto a gente tem essas vozes, temos na Fundação Palmares aquele maluco lá, tem aquele outro – nem lembro o nome desse cara, vi o Twitter dele esses dias aí – que está entrando com um processo contra a Magazine Luiza [por abrir um processo seletivo só para negros], o próprio negro, sabe o nome dele?

Não é o deputado Fernando Holiday? Isso. Esses house negros.

Voltando para o disco: nele, tem participação do Baco Exu do Blues, Dom L, Djonga, BK, seu filho, Sain. Como você vê essa nova geração do rap? Acho que talvez o rap esteja passando pelo melhor momento, no conjunto. Tem muita merda, porque tem muita gente fazendo rap, mas tem muito cara bom. O Stephan, não é porque é meu filho, mas acho ele um baita de um letrista. Esses que você citou são caras que representam muito este momento que o rap precisa, é necessário falar. O discurso do Djonga, porra, é do jeito que eu gostaria de fazer se eu estivesse no lugar dele. Acho super-representativo, agressivo e consciente de seu lugar. E acho que a gente nunca teve tantos produtores, beatmakers bons como tem no momento. Tem muita coisa pop, que eu acho uma merda. Mas, cara, sinceramente? Prefiro um rap ruim do que um sertanejo.

O disco do Planet Hemp ficou para depois mesmo? Sem previsão, cara. A gente deu uma parada. Acho que não é o momento também. Sei lá, eu vou fazer o volume 2, o Bernardo [BNegão] está fazendo as coisas dele. A gente nem falou: “Gente, vamos parar.” A coisa foi ficando na gaveta. Outro dia a gente teve uma reunião e falou: “Vamos lançar o disco em setembro, vambora, vambora, vambora.” Acabou a reunião, ninguém fez porra nenhuma. Mas acho que é isso, a necessidade de todo mundo. Tem muito do meu impulso ali também, eu resolvi fazer esse disco, sabe? Eu tenho uma missão agora de fazer o volume 2, quero me aprofundar mais nesse lugar da música brasileira, dos tambores, tal. Quero regravar os meus primeiros discos, que não estão em streaming, À procura da batida perfeita (2003), Acústico (2004), Eu tiro é onda (1998), e disponibilizar nas plataformas. Acho que meus próximos meses vão ser nisso aí. E, cara, sinceramente, não estou vendo muito futuro nesse país, não. Está dando vontade de sair daqui para algum lugar na Europa ou nos Estados Unidos, sei lá.

Você falou que a revolução foi por live streaming e que a gente foi empurrado para o futuro pela pandemia. Eu ia mesmo perguntar se você tem uma visão otimista do futuro. Sinceramente, cada dia está mais difícil lidar com todos esses problemas do dia a dia. Eu acho que vai passar, tudo isso. O ser humano é resiliente para caramba. A gente passou por momentos assim. Piores, até. Ao mesmo tempo, a gente vê o quanto as redes sociais são manipuladoras, e quanto o povo é manipulável. Quanto mais o povo precisa da figura paternal de um presidente, vai ter esses Odorico Paraguaçu [personagem de O Bem Amado] aí falando: “Eu vou acabar com a violência! Eu vou acabar com a corrupção!”, enquanto eles são violentos e corruptos. Não vejo futuro próximo muito próspero, não. Dá vontade de tentar arrumar um lugar no mundo onde eu me encaixe melhor. Fico pensando se aquilo tudo que a gente viveu de inclusão – longe de ser uma utopia e um lugar perfeito – nos 13 anos, ou pelo menos nos 10 primeiros anos de governo do PT, que eram os negros na escola, dólar lá embaixo, todo mundo viajando, tendo mais acesso a tudo, se aquilo é o Brasil ou se isso aqui é o Brasil. Porque, se a gente for pensar, aquilo ali foi uma década diferente dentro desses 500 anos que o Brasil tem. Os outros 490 anos, contando este momento que a gente está vivendo, são isso aí: mulher apanhando, discriminação com qualquer tipo de diferença, criança de 10 anos sendo estuprada e tendo que ter filha. Essa loucura que é o Brasil. Eu fico pensando: “Cara, por que eu fui nascer nesse país? Qual é a minha missão de ter nascido nessa porra desse país?”. Fazer esse disco, para mim, cara, foi muito importante. Espero que ele ajude as pessoas. Não quero ser um cara pretensioso, mas é o meu trabalho. É a minha missão aqui na vida, na Terra. Fiz o disco pensando nisso, com o meu coração. Tentando mudar alguma coisa, ser uma peça nessa engrenagem que está rodando. Fazer música é o único lugar que me deixa com a certeza: é isso que eu tenho que fazer, tenho que lutar com isso que está aqui na minha mão. Mas está cada vez mais difícil ficar aqui. A gente voltou aos anos 40, pensamento de 1950. Racismo reverso, a gente está discutindo isso. Puta que pariu, meu irmão. Que gente estúpida.

São 25 anos desde o lançamento de Usuário, o primeiro disco do Planet Hemp. Olhando para trás, como você vê sua trajetória? Eu sou muito ativo, para mim é muito difícil olhar para trás. Ainda tenho a mesma sensação que tive em 1995, lançando o Usuário: “Porra, vou mudar o mundo! Caralho, vou fazer o disco acontecer!”. Mas há 25 anos eu tinha 25, não tinha 50. É difícil. Tenho o maior orgulho. Quando o álbum ficou pronto, eu falei: “Tá, é um disco que eu acho que honra a minha carreira.” É tudo muito legal, fazer um disco ao vivo, tal, mas ele tem que ser bom. Não adianta nada a ideia ser maneira e o disco ser uma merda. É um trabalho que está dentro de tudo que eu acredito desde 95. Eu me sinto honrado de ter tido a oportunidade de fazer tudo o que eu fiz nesses últimos 25 anos, de falar para tanta gente, de ser voz. Antes de fazer música eu não me sentia parte do mundo. Eu me sentia muito solitário. Não tinha voz. Era um moleque de subúrbio que passava e ninguém notava minha existência. E isso para mim era muito difícil. E, quando eu me fiz notar, quando eu cuspi tudo aquilo ali em 95 – sei lá, um pouquinho antes, 95 foi quando saiu o disco – foi arrebatador para mim. Mudou minha vida para caramba. É nisso que eu continuo acreditando, procurando. Miles Davis fala que, quando tocou a primeira vez com o Dizzy Gillespie, foi tão assustador e gratificante que ele procurou o resto da vida aquele momento. Eu acho que é isso que eu estou fazendo, sabe? Desde a primeira vez que eu subi no palco do Garage [extinta casa de shows alternativos no Rio], que foi o meu primeiro show, tinha sete pessoas e eu me senti tão foda ali, tão foda, é isso que eu procuro todo dia quando eu levanto. Procuro aquela sensação ali, de ser foda no palco, de ter voz, de me sentir bem com o que eu estou falando. “Vocês vão ter que me ouvir”, sabe?

Muito legal essa história. Em que ano foi isso? Foi em 23 de julho de 1993. Foi no Garage: Planet Hemp, Suínos Tesudos e uma outra banda que eu esqueci.

Parece que foi ontem, parece que foi em outra vida, né? Total. Às vezes, quando eu penso no Garage, não parece nem que era eu. Parece que era um cara que eu conhecia, sabe qual é?

Pouco antes da quarentena, em fevereiro, você e Luiza se casaram, saiu nas colunas sociais. Você já foi casado antes, tem filhos… O Marcelo D2 é um romântico? A Luiza ouviu o que você estava falando, ela entrou no quarto exatamente na hora e falou que eu sou. Ela balançou a cabeça: “É”. Então ela te respondeu.

Mas o que você acha? Cara, eu sou. Eu sou apaixonado, no sentido de carregar a paixão. Eu sou torcedor de clube, daquele que grita pra caralho, quase morre quando está no estádio. Eu vou no show, gosto de pular do palco. Quando eu como, quase gozo quando é uma comida foda. Eu chorei quando vi o “31” do Pollock a primeira vez e quando fui no Guggenheim em Bilbao [na Espanha] ver o Basquiat. Eu sou apaixonado. Não ia ser diferente com a minha vida amorosa. Sinceramente, eu achava que eu não fosse mais me apaixonar assim por outra pessoa. E a Luiza virou uma baita de uma companheira, a gente está há quase dois anos juntos. A ponto de eu querer casar mesmo, botar anel do dedo e o caralho. Era algo que eu não acreditava: “Não precisa de papel, não precisa de nada.” Mas com a Luiza eu quis fazer isso. Eu sou bem apaixonado. Ah, cara, e sou romântico. Adoro dar flor, mandar música, cuidar e ser cuidado, carinho. Estou bem apaixonado. Esse 2020 foi um ano daqueles: começa o ano casando, cara, que maneiro. De repente, pá: pandemia, todos os ratos saindo do bueiro. Caralho, vai ser foda. Mas aprendi muito, foi um ano bem importante para a minha vida. E lançando um disco, se pá, dois. Vou tentar fazer o segundo. Se não sair esse ano, sai em janeiro.

Créditos

Imagem principal: Ronaldo Land/Divulgação

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