Meu nome é trabalho

por Luara Calvi Anic

Em novo documentário, Marcelo Gomes apresenta Toritama, um município pernambucano em que as pessoas só param de trabalhar no Carnaval

Quando o cineasta pernambucano Marcelo Gomes pediu para entrevistar uma das personagens de seu novo filme, a mulher respondeu que sim, mas logo avisou que não ia parar de trabalhar durante a conversa. Seu documentário Estou me guardando para quando o carnaval chegar, que acaba de estrear, acompanha o cotidiano exaustivo dos moradores de Toritama, município no agreste pernambuco que se intitula a “capital do jeans”.

Essas pessoas chegam a trabalhar 14 horas por dia de maneira independente, em oficinas construídas em suas casas, chamadas de facções, e também em fábricas de médio e grande porte. Na maioria das vezes, sem carteira assinada e recebendo de acordo com o que produzem. Ali, quem faz pausa não ganha.

O filme surgiu quando o Marcelo passava pela região a caminho de outro destino e cruzou enormes outdoors com modelos vestindo jeans. Em Toritama, município de 40 mil habitantes, são produzidos 20 milhões desse tipo de peça por ano, cerca de um quinto da produção nacional. O motorista que estava dirigindo seu carro contou que a população só para no Carnaval, quando os moradores vendem o que têm de valor, como geladeiras e celulares, para bancar uns dias perto do mar e participar da folia. A informação deixou o diretor intrigado. “Seria uma transgressão ao capitalismo? Será que isso é um desespero? Será que é o quê? Gosto de fazer filme sobre as coisas que eu não conheço”, diz à Trip.

Marcelo, que nasceu em Recife, foi muito para Toritama durante a infância nos anos 1980 com o pai – ele é de São Caetano, e a mãe é de Caruaru, municípios próximos. O cineasta sempre teve o desejo de filmar a região. “O primeiro filme que fiz na minha cabeça foi o agreste porque existia essa memória afetiva. O documentário surgiu desses dois desejos: entender o que era aquilo em Toritama e fazer um filme que me fizesse, de uma forma ou de outra, retornar para aquele lugar que conheci na minha infância.”

O diretor compartilha suas lembranças no longa, de quando Toritama era uma cidade tranquila e silenciosa, anos antes do barulho de máquinas de costura de hoje. É um documentário que questiona a nossa relação atual com o trabalho e o que fazemos com o nosso tempo. “A gente trabalha para viver ou vive para trabalhar? Será que vale a pena? Então, o filme é universal.” A seguir, nosso papo com Marcelo.

Trip. Conhecendo o agreste pernambucano, como você explica esse orgulho pelo trabalho que a população apresenta no filme? 
Marcelo Gomes.
Toritama, e o agreste como um todo, é uma região semiárida e, com as mudanças climáticas, cada vez mais árida. A produção agrícola, que era muito comum nos anos 1970, 1980, foi ficando cada dia mais rara e o trabalho, mais difícil, além de muita migração. Era uma cidade que produzia muitas sandálias de couro. Então, algumas pessoas tinham máquina de costura com agulha grossa. Com o fim dessa tradição, as pessoas não tinham mais como usar aquelas máquinas. Aí, alguém teve a ideia de trazer do sudeste os retalhos de jeans e começaram a fazer boné, bolsa de jeans.

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E produzem a um custo baixo. Sim. O jeans é uma calça que precisa, sei lá, de 30 pessoas para produzir: um faz o cós, o outro faz o zíper. É um produto muito complexo que tem que passar por várias mãos. Então, a melhor coisa é produzir jeans num lugar onde há mão de obra barata. E há Toritama e o agreste, uma das regiões mais pobres do Brasil, com muita gente sem trabalho. Não é à toa que se produz muita roupa em Bangladesh, Paquistão, China e agora nas regiões mais pobres do Brasil.

A produção e o tingimento do jeans são muito agressivos para o meio ambiente. Você não fala disso no documentário. Por quê? Tem uma poluição ambiental seríssima, as pessoas têm problemas de saúde, a geografia urbana em Toritama é um caos, tem uma poluição sonora e urbana absurdas, o rio que passa lá é sujo. Mas eu queria falar da mudança geográfica humana que aconteceu, o que mudou na forma das pessoas viverem, sonharem, o que mudou no dia a dia. Para mim, o interessante era isso. Cheguei nas facções e encontrei pessoas que falam: “Ah, eu adoro a minha vida. Adoro passar 14 horas trabalhando aqui”. Cinema é sobre singularidade e lá eles me deram uma rasteira, aquilo foi completamente imprevisível.

Quando você exibiu seu filme nos festivais da Europa como as pessoas receberam essa lógica de trabalhar muitas horas sem direitos e ainda vender o pouco que se tem? O que as intrigou mais? O filme passou na Alemanha, na Inglaterra e, num primeiro momento, parece que só tem a ver com o Brasil, com essa indústria e com esse capitalismo que chega de uma forma esdrúxula, quebrando etapas. Mas desde os anos 1980 o neoliberalismo teve Margaret Thatcher e Ronald Reagan dizendo greed is good [a ganância é boa], vamos acabar com ideia de trabalho das 9h às 17h na fábrica, não existe mais o patrão, você é autônomo, livre. E naquelas facções estava a essência desse pensamento neoliberal, completamente construído no meio daquele fim de mundo.

Você chegou com outra ideia na região? Sim. Eu pensei que Toritama era a Inglaterra do século 18, no início da Revolução Industrial, um lugar atrasado. Mas não tem nada disso, aquele lugar representa o que há de mais novo no neoliberalismo. Toritama é o futuro, vamos ser uma grande Toritama, cada um na sua facção trabalhando 14 horas por dia e competindo com a facção do outro. E neste momento no Brasil a gente vive mudanças de lei trabalhistas, o estímulo ao trabalho autônomo.

A relação com o tempo é um grande ponto no filme. Sim, o que você faz com o tempo, com o seu trabalho, com a sua vida. O você faz com o tempo é uma reflexão universal. Isso afetou todo mundo e em todo lugar. Então, talvez eu estivesse tentando resgatar o que sobrou de humano naquela vida, naquelas pessoas. O Carnaval, uma tradição cultural que está ali, é atávico na gente. Quando você passa quatro dias brincando Carnaval, o tempo voa. Você passa quatro dias trabalhando, esse tempo parece que não acaba nunca. Essa é a questão do tempo.

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No filme, você entrevista um local que compartilha um conhecimento sobre a chuva. Esse tipo de sabedoria, ou esse tempo das pessoas sentadas em frente à casa, observando o dia passar, ainda existe em Toritama? A hospitalidade das pessoas ainda existe. Me recebiam, abriam as portas da casa, convidavam para almoçar. Essa hospitalidade magnífica, esse jeito de ser dos nordestinos acho que ainda está presente. Não sei por quanto tempo.

Em determinado momento do documentário você lembra que Toritama significa “terra da felicidade”. Sim, os índios denominaram assim aquele lugar, onde passava um rio cristalino, que tinha uma mata, assim. E olha no que se transformou Toritama... Esse faça você mesmo, essa sociedade completamente distante de qualquer apoio ou suporte do Estado. Isso é legal? Acho que essa é uma das grandes questões que fica. O que eu gosto do filme é que eu não tento responder nada. Apresento a situação, o estado das coisas, um afresco de Toritama para, a partir daí, tirarmos nossas próprias conclusões. Muitas pessoas no sul e sudeste do Brasil acham que nordestino vive de Bolsa Família, que não trabalha. Eu acho que Toritama tem uma faceta de um nordeste completamente diferente daquele que se previu. Você jamais imaginaria que existe uma cidade como aquela no agreste de Pernambuco.

O filme não fala literalmente da política atual. Por quê? Porque aí seria outro filme, muito mais efêmero. Já fiz um filme sobre algo superefêmero porque qualquer dia esta indústria pode acabar. Se a China ou o Paquistão descobrirem uma forma mais barata de fazer jeans, acabou tudo. Aquela indústria foi construída com bases muito precárias, tudo pode mudar a qualquer momento. Eu me lembro que uma pessoa perguntou em tom de brincadeira: “Por que você está fazendo esse documentário? Quem me diz que você não é um espião da China que veio aqui para descobrir o segredo da gente e levar para lá?”.

Você sempre fez cinema e vivemos em um momento de grande consumo das séries. O cinema tradicional, especialmente no Brasil, corre risco? Eu acho que as séries são elementos de diversão, não gosto dessa palavra "entretenimento", mas as séries são produtos de televisão, passam rápido. O cinema é o espaço para quem quer levantar questões profundas sobre o mundo. Você tem uma sala escura onde se concentra. O cinema é o lugar da reflexão, é fundamental. Um país sem cinema é uma casa sem espelho, que nunca vai enxergar a sua cara. As grandes culturas e países têm um cinema forte. Nada substitui o cinema como nada substitui o teatro, a literatura, a música. Cada arte tem uma função importante na construção de uma sociedade e não vão ser séries que vão substituir isso.

Você acha que a produção cinematográfica corre risco com os cortes nos investimentos em cultura o Brasil? Produzi seis filmes. Desses seis, cinco tiveram apoio da Petrobras com fomento de cultura e apoio do BNDES. Não existe mais apoio da Petrobras nem do BNDES para cultura. Eu ganhei um edital do Ministério da Cultura nesse último filme, não existe mais editais de ministério e nem existe mais Ministério da Cultura. Se eu, Marcelo, fosse começar a carreira agora, possivelmente eu não iria realizar nenhum desses seis filmes.  

 

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