Com mais de 30 anos de carreira, a atriz fala sobre maternidade, religião sua nova protagonista - uma crente burocrata do Brasil de 2027: ”Estou sempre aberta ao inusitado”
Há mais de 30 anos Dira Paes encontra no cinema seu espaço de pertencimento e expressão. “É o meu berço, onde me criei, onde vivo uma relação contínua e me sinto à vontade. No cinema, tenho um diálogo com símbolos que decodifico rapidamente, porque é a minha linguagem”, conta. Estrela de sucessos de bilheteria como Dois filhos de Francisco (2005) e filmes icônicos do cinema alternativo, como Amarelo manga (2002), ela vive agora a protagonista de Divino amor, novo longa do diretor pernambucano Gabriel Mascaro, reconhecido por seu trabalho no drama Boi neon (2015) e no documentário Domésticas (2012).
O roteiro imagina o Brasil de 2027. Um país em que os evangélicos são maioria e onde a religião interfere em quase todos os aspectos do cotidiano e, em especial, no Estado. “Acho que durante a produção do roteiro o Gabriel não imaginava que o tema estaria tão em voga: a externalização da religiosidade fora das fronteiras da própria religião e a discussão sobre o estado laico democrático”, diz a atriz. Joana, sua personagem, trabalha em um cartório e usa a burocracia como arma para tentar evitar os divórcios. Enquanto isso, lida com seu desejo intenso pela maternidade, que parece ser a única forma de provar seu valor enquanto mulher e fiel.
A data de estreia de Divino amor - 27 de junho - coincidiu com o último dia das gravações da novela Verão 90, da TV Globo, em que Dira vive Janaína, uma mulher que cria sozinha dois filhos com personalidades antagônicas. Tanto no cinema quanto na televisão, os trabalhos da atriz têm refletido diretamente sobre a questão da maternidade, que é central também em sua vida. Mãe de dois filhos, ela lutou bastante para conseguir engravidar do segundo. “Tive três situações de gravidez interrompida antes de conseguir, com assistência médica, e aí veio o Martim. Foi uma experiência maravilhosa, mas é ir em busca de um desejo. Sabia que queria o segundo filho, queria experimentar de novo a gravidez.”
Trocamos uma ideia com a atriz sobre cinema, maternidade, Estado e religião. Se liga:
Tpm. Como você chegou ao roteiro do filme?
Dira Paes. O Gabriel [Mascaro, diretor do filme] falou que estava escrevendo um roteiro e que pensava muito em mim para interpretar a personagem. Ele já tinha despontado no cenário cinematográfico, tem um talento indubitável,uma assinatura com uma provocação, uma inteligência. Tudo isso me interessava. Então, sabia que viria um roteiro bacana e veio com uma força incrível, me senti desafiada.
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Além da oportunidade de trabalhar com o Gabriel, o que te interessou na personagem e na história? É uma super personagem, complexa, sem apelos estéticos, e com um tema urgente. Acho que durante a produção do roteiro o Gabriel não imaginava que o tema estaria tão em voga: a externalização da religiosidade fora das fronteiras da própria religião e a discussão sobre o Estado laico democrático. É uma reflexão sobre ser doutrinado. Regras que invadem o comportamento político-social do ser humano dentro do Estado em que ele nasce e vive.
Que tipo de reflexão a personagem te trouxe? Não é sobre ter uma religião, é sobre uma religião te tirar a liberdade de ser quem você é e querer te moldar dentro de um comportamento, às vezes até estético, para reafirmar uma agenda ultraconservadora. Isso está nítido, só não vê quem quer.
O filme fala muito também sobre a burocracia e o papel dela nessa mistura entre religião e Estado. Esse foi um ponto importante na construção da Joana? Esse paralelo do Gabriel é muito bacana. Quando ele começou a refletir sobre isso, se deu conta de que se a Joana trabalhasse com a burocracia, em um cartório, ela atestaria a fé pública. Da mesma forma que todos são iguais perante a Deus, dentro do cartório todos são iguais perante às leis. Ela, de certa maneira, confunde as coisas e vê na burocracia uma maneira de conseguir acessar esse lugar do convencimento, "venha ser igual a mim". Na verdade, todos nós temos uma busca muito grande por pertencimento.
Na sua vida pessoal, onde você acha que encontra essa sensação de pertencimento? Acho que tenho um pertencimento a uma classe artística, ao cinema, que é o meu berço, onde me criei, onde vivo uma relação contínua há 35 anos, onde me sinto à vontade. No cinema, tenho um diálogo com símbolos que decodifico rapidamente, porque é a minha linguagem.
A pressão pela gravidez é bem central no filme, parece que ela sentia que precisava engravidar para ter validade enquanto mulher ou enquanto fiel. É, para ser completa, para ganhar mais pontos dentro da normatização do que é a felicidade. Isso é uma ótima discussão.
Para você, como foi o lance da maternidade? Eu sempre quis ter filhos e comigo aconteceu tarde. A primeira gravidez foi de maneira espontânea. A segunda era um desejo e tive três situações de gravidez interrompida antes de conseguir, com assistência médica, e aí veio o Martim. Foi uma experiência maravilhosa, ir em busca de um desejo. Eu sabia que eu queria o segundo filho, queria experimentar de novo a gravidez, e foi maravilhoso para mim. Mas não gosto de encorajar muito as pessoas a uma gravidez tardia, não visto isso como bandeira.
Foi muito sofrido? É arriscado. Fora que é um processo caro e muita gente não tem acesso. É uma discussão bem grande porque há uma tendência feminina de engravidar mais tarde. Faço uma ponderação. Poder, a gente pode, mas não é uma coisa garantida. Os óvulos envelhecem também.
Sua personagem na novela Verão 90, da Globo, também tem uma relação com a maternidade importante, ela cuida dos filhos sozinha, né? Ela tem dois filhos controversos. Criados pela mesma mãe, do mesmo jeito, mas com personalidades absolutamente diferentes. A novela fica no ar até dia 27 de julho, mas a gente terminou de gravar no mesmo dia que o filme estreou.
E você já tem projetos engatilhados? Viajo em julho com o Criança Esperança para uma experiência em Belém do Pará e depois tiro férias com os meus filhos. No segundo semestre, pretendo fazer pequenos trabalhos, mas vamos ver como as coisas se desdobram. Estou sempre aberta ao inusitado.
Créditos
Imagem principal: Gabrie Mascaro/Divulgação
Gabrie Mascaro/Divulgação