Negritude e migração são alguns dos debates levantados pelos 60 filmes da 12ª edição do festival de cinema, exibido on-line entre os dias 9 e 20 de setembro
As músicas de Dorival Caymmi fazem parte do imaginário popular. O que nem todo mundo conhece é sua relação íntima com o candomblé. Essa ligação é narrada pelo filme Dorivando Saravá, o preto que virou mar, de Henrique Dantas, que participa da 12ª edição do In-Edit Brasil – a primeira exclusivamente on-line –, que começa nesta quarta-feira, dia 9, e segue até 20 de setembro. O filme sobre o cantor baiano é um dos 60 títulos nacionais e internacionais que fazem parte do festival, todos ainda inéditos no Brasil.
Histórias de artistas e movimentos culturais que marcaram a história da música são a tônica do festival de cinema In-Edit. Em 2020, a mostra traz filmes sobre negritude – pauta em evidência após os protestos #BlackLivesMatter – e migração. Os temas recorrentes são um processo natural, segundo o diretor artístico do festival, Marcelo Aliche. “Não olhamos para um movimento. Deixamos que o In-Edit se revele. O importante é escolher filmes legais. E todo ano tem coisas sobre negritude, que é um assunto atual e chega naturalmente”, diz.
A presença recorrente de filmes sobre negritude é reflexo da contribuição inegável da cultura negra para a música no mundo. Dorival Caymmi, por exemplo, foi o primeiro a cantar para os orixás e introduzir o tempo do candomblé na música popular brasileira. Poético, o documentário sobre ele traz muitas imagens do mar, personagem onipresente em suas músicas e que também é um retrato do próprio cantor, que em determinado momento desafiou a morte e se entregou para Iemanjá. A obra traz depoimentos, lembranças e reflexões de artistas como Gilberto Gil, Tom Zé, Tiganá Santana e Mateus Aleluia. “Caymmi é o cheiro da Bahia, o som da Bahia, é o espírito da Bahia, é o rir e o chorar da Bahia. É daquelas entidades que não chega nem sai. É o verdadeiro verbo estar. No fundo todos nós somos Caymmi”, poetiza Aleluia no filme.
O cantor de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, também tem um documentário sobre sua vida e obra no festival deste ano: Aleluia, o canto infinito do Tincoã, de Tenille Bezerra. A Bahia e seu espírito musical estão presentes ainda em outros quatro filmes. Porfírio do Amaral: a verdade sobre o samba, de Caio Rubens, traz uma homenagem aos sambistas desconhecidos do Brasil. Já Neojibá - música que transforma, de Sérgio Machado e George Walker Torres, narra a preparação de uma das orquestras do projeto Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia (NEOJIBA) para uma turnê na Europa junto com a pianista argentina Martha Argerich. O filme tem como protagonista Iuri Nascimento Chagas, um dos jovens integrantes da orquestra que se submete a uma seleção para integrar a equipe que vai realizar a turnê.
A Bahia também é cenário de Memórias Afro-Atlânticas, de Gabriela Barreto, que resgata imagens de 1976, quando o linguista negro norte-americano Lorenzo Dow Turner gravou sons e fotografou os terreiros de candomblé. Outro destaque do festival é o documentário sobre a baiana Pitty. Em Matriz.doc, Otávio Sousa, que foi fotógrafo da cantora por cerca de dez anos, acompanha a gravação do álbum homônimo, que representou uma virada na carreira da artista. “Ele faz parte da equipe dela e circula pelos bastidores. Filma o dia todo e ninguém percebe mais que está gravando, então conseguiu momentos de intimidade da Pitty bastante interessantes, que inclui a composição e gravação do álbum”, diz Aliche.
Migração
Já a contribuição africana é destacada no filme português Batida de Lisboa, de Rita Maia e Vasco Viana, que mostra músicos de diferentes gerações e origens – de Angola, São Tomé, Cabo Verde e Guiné Bissau – que tomam a cena da capital portuguesa. “É um filme emblemático. Conseguimos ver como está o mundo por meio dos olhos da música”, afirma o diretor artístico do In-Edit. O título faz parte da Mostra Portugal, uma seleção dos mais destacados documentários musicais do país.
Em Afro-Sampas, de Jasper Chalcraft e Rose Satiko Hijiki, o foco é um aspecto pouco explorado quando se fala de migrantes africanos em São Paulo: a contribuição musical. O filme retrata uma metrópole multicultural que, diferente de outras cidades do mundo onde migrantes vivem entre os pares, permite a mistura dos artistas africanos com o entorno.
A diretora Lwiza Ganibal, que participou de outras edições do festival, apresenta em 2020 o documentário Tempo Zawose. O filme retrata uma família de artistas que cultiva a herança musical do povo wagogo, na Tanzânia, com repertório único e instrumentos feitos artesanalmente.
O festival retrata ainda choques culturais, como Sufi, saint and swinger, de Andrés Borda, que conta a vida do músico de jazz norte-americano Dr. Lloyd Miller e sua mudança para o Irã, onde passou a atender pelo nome Kurosh Ali Khan. Inner Landscape, de Frank Scheffer, acompanha a convivência do compositor chinês Guo Wenjing e do maestro holandês Ed Spanjaard que trabalharam juntos para criar uma peça que une a ópera Sichuan e a música clássica.
A missão do festival, segundo Marcelo Aliche, é justamente ser uma janela para o mundo musical, exibindo documentários que nem sempre chegam ao cinema. “Mostramos a amplitude do universo musical. O rock, por exemplo, é enorme. Tem músicas regionais e urbanas e passeamos por todas elas”, destaca.
Além dos filmes, o In-Edit organizou uma masterclass com o diretor inglês Julien Temple com mediação do jornalista André Barcinski. Haverá ainda live de shows com o cantor Felipe Cordeiro e as bandas Autoramas e Flicts, que também são personagens de filmes desta edição. A programação pode ser acessada pela plataforma do festival, e também nos parceiros Sesc Digital e Spcine Play, a R$ 3,00 e gratuitamente. Todo dinheiro arrecado pelo festival será revertido em solidariedade aos trabalhadores da cultura prejudicados pela pandemia.