Rafa Dias, do Àttøøxxá, só olha pra frente

por Douglas Vieira

Diálogos culturais: o DJ e produtor do grupo baiano fala de Gilberto Gil e da força da cultura para não deixar o mundo retroceder

O DJ e produtor baiano Rafa Dias criou em 2015 o Àttøøxxá e, desde 2018, o grupo tem se apresentado pelo país e vem se tornando um dos principais nomes da música pop brasileira — na voz deles próprios e também na de artistas que vão Ivete Sangalo a Wesley Safadão, que se espalharam em versões de "Elas gostam (popa da bunda)", hit deles com Marcio Victor, do Psirico.

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Rafa, Oz, Raoni e Chibatinha têm toda aquela energia de festa que a Bahia tem como marca, assim como têm a consciência social e a negritude enraizadas em cada movimento que fazem, inclusive nas escolhas profissionais, de entenderem que precisam estar na Bahia, independentemente da atração do sudeste pelo trabalho deles.

Tem um lugar de resistência ao qual a música pertence e onde Rafa se sente à vontade. E foi sobre a construção desse lugar de força, de não arredar pé, que ele conversou com a Trip. O papo rolou ao fim da apresentação que fechou o palco principal do Se Rasgum, em Belém, quando tocaram acompanhados da cantora Keila Gentil, ex-Gang do Eletro.

Trip. Nos últimos anos, um movimento que não é recente, mas ganha força, são os festivais no norte e nordeste. Aqui em Belém, o Se Rasgum está na 14ª edição, com artistas pop de vários lugares do Brasil. Qual a importância do fortalecimento de eventos desse tipo, colocando essas regiões não só como lançadoras de artistas, mas como um ponto de atração para o público se aproximar de outras realidades?

Rafa Dias. Como eu digo lá em Salvador, a gente tem uma batalha que começa forte na época do samba reggae, no fim dos anos 70, anos 80. Era um momento em que os negros ainda tinham um desejo de dar um grito, sabe? Era guerra mesmo. Era falar: "Caralho, vocês dizem que a rainha do axé é Daniela [Mercury] e o rei do axé é Bel Marques, mas não é". O bagulho é mais em baixo, a música é de preto. Beleza, a galera é super competente, a gente gosta deles, são artistas super competentes, porém, a gente sabe de onde vem, da origem, que é negra mesmo, que vem da África, da diáspora. Hoje, depois de todo esse tempo, a gente já é uma geração de negros que se identificam como negros e têm aquela autoestima, que já não abaixam mais a cabeça para ninguém.

E como estão vivendo esse momento? Durante esse processo todo, começando lá no samba reggae, e até mais pra trás, que viemos conquistando com muita gana, não só os negros, mas as mulheres, os índios, todos chegamos num momento em que a gente tinha conquistado muita coisa, que estava todo mundo conseguindo estudar, acessar os lugares, e a gente viu que conseguiu tocar na ferida de alguém. Tem uma galera que não compreendeu que o mundo faz parte de uma evolução e quer ver aquilo tudo acontecer de novo, andar pra trás – a mulher na cozinha, o negro escravo. Hoje, a gente grita e todo mundo escuta, a gente não vai mais abaixar a cabeça. Gosto muito de uma frase que o Gil falou faz pouco tempo: "O tempo caminha pra frente". Apesar de ter essa galera que, vira e mexe, dá uma loucura e quer ver o passado de volta, o tempo sempre caminha pra frente, é inevitável. Eles vão ter que aceitar, não é questão de voto, nem de nada, é de aceitação. Pode morrer um, dois, três, um batalhão, mas tem muito mais gente aí vindo. E esse momento a gente vê no palco, de juntar três estados, quatro, que estavam ali presentes. Juntar todo mundo, gay, viado, lésbica, negão, quem for [o Àttøøxxá fez o último show do festival e, no bis, chamaram de volta ao palco artistas que tinham se apresentado antes]. A gente se vê ali no palco, mexendo a massa, é uma coisa que há muito tempo era negada. 

Nos festivais do norte e do nordeste, fica fácil ver uma questão muito clara de identidade, ainda que a música seja muito diversa. E isso o público do sudeste entenderia de verdade vindo pra cá, em vez de indo a um show de vocês em São Paulo, por exemplo. Eu acho que Sampa é um lugar muito cosmopolita, talvez tenha até paulistas lá (risos), mas acho que a grande verdade é que há Brasil muito miscigenado em São Paulo. Então, tem, sim, uma dificuldade de identidade, porque já misturou tudo há muito tempo, a galera levantou a cidade e não se percebeu. Acho que não se percebeu esse movimento, ninguém notou a história e já estava lá, tudo acontecendo. A gente lá da Bahia, no caso do Àttøøxxá, e acho que o BaianaSystem fez muito parte disso, é uma galera que acontece na Bahia e que não sai de lá. Recife foi muito um exemplo pra gente. Eu sou dos anos 90 e, naquela época, a galera bombava no norte e nordeste e ia morar em São Paulo. Até hoje, a galera pergunta por que a gente não vai morar em São Paulo. E a gente já viu essa história de pessoas indo para São Paulo muitas vezes. De certa forma, eles deixaram um legado, mas não o mantiveram. A gente vai tocar em Recife agora e a galera bombardeia a gente dizendo que não tem nada para fazer, só festival, três festivais no ano. Então, a gente faz questão de manter a nossa festa lá, o que a gente faz para passar uma visão. Tem que aprender que vai ter negão no palco, chato, com ouro, e é isso mesmo, sacou? É essa construção que a gente está fazendo lá em Salvador, de não sair de lá, de preservar e de continuar a fazer a galera falar: "Porra, eu consigo realizar o meu sonho morando em Salvador, não preciso ir pra lugar nenhum".

E não estão precisando morar lá para serem conhecidos pelo Brasil. A gente tem a cabeça mundial, quer tocar em todos os lugares no mundo, sabe? Eu acho que São Paulo é uma antena, que absorve tudo que está acontecendo em todo lugar do mundo, não é só do Brasil. Tem rock, techno, tem tudo, é uma cidade exemplar, porque tudo acontece. Mas acho que é muito bom a gente bater o pé pra falar que a gente é negão, eu tenho origem indígena também. A gente discute pra caralho a questão dos negros e o Brasil indígena a gente nem discute ainda, tem muita coisa pra rolar. Não só São Paulo, como o Rio também, assim como qualquer lugar do Brasil, tem que aprender a dar valor ao que é essa terra aqui, que é uma pluralidade. Diz-se que no mercado negro o que o pessoal mais quer é ter um passaporte brasileiro, porque não tem cara. Olha que foda! Eu quero ter um passaporte, bota do Brasil que vai colar, tem de tudo no Brasil. A gente tem que chegar nesse momento de se aceitar mesmo e de a gente se olhar e caminhar pra frente, como o Gil diz.

E fazer inverter essa lógica, em vez de vocês irem pra lá, é um passo necessário nesse caso. No último verão em Salvador a gente ficou muito abismado. Tem o nosso bailão e, lá, estavam artistas de todo o Brasil, a Liniker, Silva, Caetano, a gente olhava e não acreditava, está todo mundo na Bahia, finalmente a galera está vindo. Fizemos um carnaval que Major Lazer [duo americano formado pelos produtores Diplo, Walshy Fire e Ape Drums] pirou, desceu do trio, foi pra galera pular. O cara já viveu tudo no mundo inteiro, chegou na Bahia e endoidou, desceu do trio, não aguentou ficar em cima, desceu, foi para o povo, então você vê como a gente precisa se conhecer. A minha maior vontade é passar uma semana aqui no Pará, ainda não tive essa oportunidade. Já viemos tocar aqui, mas essa semaninha de conhecer as coisas, de ver aparelhagem, não tivemos. A gente tem que se conhecer. 

E neste ano vimos circular informações que mostram o quanto as pessoas das diferentes regiões se desconhecem, né? Acho que ele [o presidente Bolsonaro] também espelha muito a galera do Brasil todo, ele não é só sudeste, ele é o Brasil. Ele é um Brasil que acontece, que é verdade, que é real, que é intolerante, que é racista, que é fascista e não sabe o que é. É um momento em que a gente dá dois passos pra trás pra fazer todo mundo pegar a visão, aí é o tsunami [no show, o Àttøøxxá pede pro público caminhar pra trás, pra depois convidar todo mundo a correr na direção do palco]. A galera vai pra trás, mas é impossível, o povo de trás aperta. Gilberto Gil, pra mim, é um guru, quando ele fala que o tempo caminha pra frente. O tempo deixa marcas, isso que a gente fez hoje aqui, quem veio, vai espalhar tudo, tá ligado?

E vocês estão movimentando pessoas e espalhando um sentimento positivo em tudo que fazem, é um conflito sem ser com gritos de guerra. A gente tem um papel, assim como Heavy Baile, a música de periferia, a música de favela, e é um papel muito forte, principalmente nesse momento, de fazer as pessoas externarem a energia. Chega uma hora que não dá, a galera vai trocar murro na rua mesmo, porque tá com energia ali. No festival é um momento que o pessoal está se olhando, se vendo. Como eu falei, o samba reggae era um tempo nos anos 80 em que a galera precisava gritar, estava ali na resistência, falando"eu sou negão, a cor dessa cidade sou eu", não a da Daniela, que canta isso. Quando a pessoa canta isso, todo mundo se olha e reflete. Não é mais, sacou. Beleza, você cantou, você quis ajudar, porque a Daniela quis ajudar, faz parte desse processo que mostra o negão, ela mostra, mas quem tem que se mostrar somos nós. Ela, num momento, era importantíssima pra falar olha aqui, olha quem está seguindo, quem está na minha pipoca em Salvador. A música é o que mais faz a galera se conectar. A gente toca em Salvador em lugar que tem coxinha, a gente vai lá, abre a boca e larga. Os cara ficam "como assim?", a gente bota um trio gay do Afrobapho pra meter dança, joga a raba. A gente está educando, a galera acha que é oba oba, mas não é. É meio mundo de negão no palco hoje. A gente não precisa nem estar falando nada, se a gente só subisse no palco e ficasse calado, estava dada a mensagem.

Resistência é existência também... É olhar o povo, o povo olhar pra gente. "Vocês existem." É um caminho. As mulheres foram as primeiras a falarem "caralho, eu vou sair da cozinha, vou estudar". Aí vieram os negão, chegaram lá há um tempo e falaram "foda-se", foram mais radicais mesmo, porque apanharam muitos anos. Você ver sua mulher, seu parente, seu avô, sua avó tomando pau. Imagine o que não era o ódio que estava ali entranhado. Então todo esse espaço que a gente cria tem uma parcela de muita importância de fazer as pessoas externarem essa energia. Quando você está jogando a raba, pulando, gritando, berrando, é isso. Tamo vivo! Esse é o nosso papel.

Créditos

Imagem principal: Bruno Carachesti

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