A lealdade de Djonga

por Carol Ito

Djonga, que já surgiu grande no rap, fala de suas raízes, do racismo, da obsessão por Cazuza, de astrologia e da firmeza de suas posturas

Quem já foi em um show de Djonga sabe que ele não tem meias palavras quando o assunto é desigualdade social e racismo. O grito de guerra “fogo nos racista!”, que faz parte da música “Olho de tigre”, uma das mais famosas de sua ainda breve trajetória, é entoado dezenas de vezes num coro formado por brancos e pretos contagiados pela energia do rapper. Durante um papo com a Trip,  ele narra situações que deram origem às rimas ácidas que se tornaram sua marca registrada.

Gustavo Pereira Marques, que ganhou o apelido aleatório de Djonga na adolescência, quando frequentava batalhas de MCs, é um dos nomes mais influentes do rap na atualidade. Com apenas 25 anos, tem na conta três álbuns de estúdio – Heresia (2017), O menino que queria ser deus (2018) e Ladrão (2019) – e números dignos de um ídolo pop na internet. O clipe de “A música da mãe” (2018), por exemplo, atingiu mais de 16 milhões de visualizações no YouTube, com cenas que mostram sua ascensão na carreira. No Instagram, tem mais de um milhão de seguidores. 

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Djonga nasceu e cresceu em Belo Horizonte (Minas Gerais) e garante que não vai sair de lá, mesmo com a pressão do showbiz. “É uma posição política, cultural e social de marcar a minha cidade, o meu lugar de origem, sacou? O Brasil tem uma dívida histórica com Minas Gerais, tem muito artista foda, de modo geral, que acaba indo pro Rio ou pra São Paulo pra não ficar fora do jogo. Eu não quero brincar assim, quero jogar o jogo da minha casa”, comenta o rapper, que também faz questão de trabalhar com artistas e profissionais mineiros.

Com a mesma firmeza, Djonga se negou a fazer um show em Vitória (Espírito Santo), por conta do suposto envolvimento dos produtores do evento em um estupro coletivo, em abril deste ano. Ele foi processado e pode pagar uma multa de até R$ 200 mil, o que gerou manifestações de personalidades como Djamila Ribeiro e Preta Gil nas redes sociais, em defesa do rapper.

“"É muito ruim quando você, com 10 anos de idade, anda na rua e alguém acha que você vai roubá-la "”
Djonga

Na entrevista a seguir, ele fala sobre a cena do rap em Belo Horizonte, conta como quase se tornou historiador, a obsessão por Cazuza, a classe média no rap e astrologia.

Trip. Como foi sua infância em Belo Horizonte?

Djonga. Foi uma infância muito da hora, eu brincava na rua, ficava muito na casa da minha vó. Mas também foi complexa, porque eu soube desde cedo que era preto, mesmo não sabendo bem o que isso significava.

Inclusive, na música “Bença” [do disco Ladrão], que você dedica à sua avó, tem um verso que diz: “Ouvindo desde novo/Cê já é preto/Não sai desse jeito, senão eles te olha torto”. Minha vó sempre falou muito isso. Ser preto é maravilhoso, mas, socialmente, é uma coisa muito difícil. Na infância, a gente não tá preparado para receber certas pancadas da vida. É muito ruim quando você, com 10 anos de idade, anda na rua e alguém acha que você vai roubá-la . Hoje em dia eu lido com isso de outra forma, estou mais maduro, tenho a autoestima um pouco mais elevada, mas quando você é criança, você se pergunta: “Será que vai ser assim para sempre?”, "Eu sou feio, sou sujo?". É triste.

“O Criolo e o Emicida, por exemplo, conseguiram se comunicar com um público que se sentia um pouco distante do rap”
Djonga, rapper

Quando começou a frequentar a cena do rap em BH? Eu cortava o cabelo no Preto & Branco, no centro de BH, num lugar que é como se fosse a Galeria do Rock de São Paulo, onde vende camiseta de banda, essas coisas. Lá colava quase todo mundo do rap na época, os b-boys, MCs, grafiteiros. Eu lembro dos saraus com a galera nas praças fazendo improviso e dançando. Com uns 17 anos, comecei a colar em duelos de MCs, que é um movimento muito importante de BH.

Além dessa cena, o que te motivou a compor e cantar? Cresci ouvindo tudo quanto é tipo de música que você pode imaginar. Teve uma época que eu ouvia muito MC Smith, do funk, que é um dos meus maiores ídolos, e ele fez uma releitura da “Vida Louca Vida”, do Cazuza. Fui saber mais sobre esse tal de Cazuza e viciei muito. Assistia o filme dele, Cazuza – O tempo não pára [lançado em 2004], todo dia de manhã. Pensava: "Pô, quero ser cantor igual esse cara aí". Eu pirava muito na pessoa e na história dele.

Mais algum artista te inspirou, além do Cazuza? Eu já ouvia Racionais desde os 7 anos, mas fui redescobrindo o rap quando comecei a ouvir Cone Crew, Flora Matos, Criolo, Emicida... Pra mim, o rap tava ressurgindo. O Criolo e o Emicida, por exemplo, trouxeram uma musicalidade diferente e conseguiram se comunicar com um público que se sentia um pouco distante do rap, que pensava: "Nossa, isso não é para nós". Um público da classe média universitária, que se diz mais crítica, a vanguarda intelectual e cultural do país, saca?

O que pensa dessa galera que começou a consumir rap, que, inclusive, curte sua música? Não penso nada, arte é arte. Tô só falando sobre o modus operandi para chegar até essas pessoas. Não sei se elas participam real da cultura do hip hop, se elas se importam com o que essa cultura significa para arte contemporânea e para a arte negra.

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Por que desistiu da faculdade de história? Larguei no sétimo período, quase me formando. Algumas coisas eu achei interessante demais aprender, coisas que eu nunca teria acesso se não fosse pela universidade. Por outro lado, é a história dos vencedores que é contada. A gente sabe quem são os vencedores, quem tá no poder. É o cara de 90 anos que tá sentado lá em Brasília, que tem uma família que tá no poder há não sei quantos séculos. E que vai continuar lá enquanto a gente não abrir o olho. Além disso, percebi que dava para ganhar algum dinheiro, dar uma vida boa para a minha família com a música. O Jorge [filho de Djonga, que tem 3 anos] estava dentro da barriga, para nascer. Eu não sabia se ia dar certo, mas fui com tudo.

“Sou umbandista e a galera da umbanda é meio assim, o corpo é fechado, mas a mente é aberta”
Djonga, rapper

Como o conceito do disco Ladrão foi pensado? É o lance do resgate, de roubar o que é nosso e trazer de volta. E também “ladrão” é a forma como chamam a gente [os negros], da forma mais pejorativa e ofensiva possível, mesmo sem ter feito nada que possa justificar isso.

Esses tempos entrevistamos o MC Caverinha, que tá estourando aos 10 anos. Ele disse que você é o maior ídolo dele. Ele é monstro! O moleque, nessa idade, é tecnicamente melhor que vários, no flow, no jeito de cantar, na interpretação. Ele sabe ser artista, interagir com a câmera. É muita maturidade, é uma alma evoluída que já nasceu à frente do tempo. Ou melhor, nasceu no tempo certo, algumas pessoas é que estão atrasadas.

Você tem algumas músicas que falam sobre signos, como “Geminiano” [do disco Heresia, de 2017] e “Atípico” [do disco O menino que queria ser deus, de 2018]. Curte horóscopo? É uma coisa que me pega, sempre leio no jornal. O misticismo é interessante porque fala de coisas que transcendem a nossa compreensão imediata. Sou umbandista e a galera da umbanda é meio assim, o corpo é fechado, mas a mente é aberta.

Créditos

Imagem principal: Lucas Tomaz Neves /ONErpm Studios

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