O outro planeta de FBC

por Nina Rocha

Dono de hits que derrubaram a internet, como ”Se tá Solteira” e ”De Kenner”, o mineiro Fabrício Soares, o FBC, fala sobre seu novo disco e a ascensão da periferia

Seja pelo trap, drill, rap ou funk, Fabrício Soares, o FBC, gosta de contar histórias. Colocando o quinto trabalho de estúdio na rua, o rapper belo-horizontino se inspira nas estrelas e em Jorge Ben Jor para cantar sobre romance, futuro e crises existenciais. A distopia que imaginou no disco "O amor, o perdão e a tecnologia irão nos levar para outro planeta", produzido por Pedro Senna e Ugo Ludovico, viaja pela história da dance music, enquanto uma Terra inabitável é pretexto cósmico para falar de relacionamentos. “Eu queria que fosse um álbum de amor. Não de love songs, mas que falasse de amor”, diz, sobre o álbum lançado nesta sexta-feira (28).

Na cena do hip hop mineiro há quase duas décadas, FBC batia ponto no Duelo de MCs desde os primórdios da disputa, que acontece debaixo do Viaduto Santa Tereza, no centro de Belo Horizonte, desde 2007. Em 2015, trocou o freestyle da batalha de rimas pela companhia de Djonga, Hot Apocalypse, Oreia, Clara Lima e Coyote no DV Tribo, grupo de rap que ficou em atividade até 2018. Os trabalhos solos que vieram nos anos seguintes, como S.C.A., de 2018, contam sobre os corres de dinheiro, ambição, sucesso e dificuldades na periferia.

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Mas foi ao lado de VHOOR, DJ e produtor também da capital mineira, que FBC explodiu. Com o seu disco “Baile”, em 2021, ele o amigo ganharam as pistas e as plataformas de música Brasil afora. “Charmosa / Cheirosa / Nossa, que mulher gostosa / Se tá solteira, vamo ficar de casal”. Resgatando as batidas dos primórdios do funk com o miami bass, os versos da música “Se tá solteira”, hoje com 3,6 milhões de plays só no YouTube, colocaram a atriz Maísa e cantora Marina Sena pra dançar em uma trend viral nas redes sociais — e, provavelmente, você que está lendo também. Hoje, com a ajuda da internet, o artista tem quase um milhão de ouvintes no Spotify e conquistou os ouvidos de fãs ecléticos, que não escutam só rap. “No fim do ano, eu vejo nas estatísticas [das plataformas de áudio] das pessoas que tô no meio de um pós-punk e uma Taylor Swift”, conta.

Aos 34 anos, o "padrim" acredita que está só no início de sua carreira e tem metas para os próximos 10, 20 anos. Saber mais sobre os processos da música é uma delas: há um ano e meio, começou as aulas de teclado. A semente da inquietude, plantada pela convivência com o VHOOR, um dos DJs mais hypados do momento, tem levado mais consciência para o trabalho do artista. "Quando comecei a tocar teclado, entendi que, mesmo sem aula e não tendo noção técnica, eu cantava." 

Hoje, quando escuta uma música, o rapper já tenta encontrar a melodia e descobrir do que se trata. “Antes era na intuição, cantarolando. Hoje, eu tô começando a entender que tem padrão, regra. É matemática. Tem que saber de tudo um pouquinho e eu quero saber porque eu tô novo”, conta. “Beethoven morreu com 32 anos. Ele vai ser ouvido, estudado na nave, quando chegar ao destino, vai estar lá. Eu tô com 34 e fico me perguntando: será que vou conseguir ir para outro planeta?”.

No papo com a Trip, ele fala sobre como aprendeu, na prática, alguns valores do comunismo, as dificuldades do rap mineiro em ter um alcance nacional e como o disco "Baile" mudou sua vida.

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Trip. "Baile", lançado em 2021, ganhou um disco de ouro e bateu mais de 23 milhões de plays nas plataformas de áudio. O que mudou depois deste trabalho?

FBC. Mudou a minha vida. Todo mundo que trabalhou comigo e tava em volta da gente mudou. Com certeza eu já não sou mais um músico underground. Mas a coisa ainda tá caminhando. Agora quero que o meu trabalho chegue às pessoas que compram e vendem música, que promovem as coisas, quero chegar nelas. Eu penso sempre nisso. Com o "Baile", eu fechei com uma agência que conseguiu vários festivais pra mim. Mas por ser DJ e MC, era palco de favela, palco ali do lado, mesmo com músicas que tocam mais do que as pessoas que tavam fazendo o som no palco principal. Agora eu entreguei essa proposta e quero estar nos palcos grandes. As pessoas sempre vão querer ouvir "Delírios", "Se eu não te cantar". Não vou deixar de cantar essas músicas, mas eu tinha que preencher aquele espaço que é um palco de headliner. Não arredo o pé mais, não quero sair desse lugar.

Como o hip hop chegou pra você? Quando eu tinha meus 11, 12 anos, tocava na bandinha da escola e até numa banda que fazia cover do Nirvana. Ali, pros meus 13 anos, eu comecei a querer ser um líder comunitário, me envolver com política. Então, entrei pra música, pra fazer rap, pra ser um multiplicador dentro da minha comunidade, um agente social, e conseguir levar minhas ideias pra mais pessoas. Entendi que o rap era esse veículo, a expressão que conversava com aquela galera e dizia sobre mim e sobre quem estava comigo. Eu não entrei pro rap pra fazer rap. Entrei pro rap pra fazer revolução, organizar, conscientizar a galera, criar mais questionadores e formadores de opinião. Eu vivi essa vida de ser um militante da cultura, mas a gente cresce e quer falar de outras coisas, entendeu? Só que é algo anexado a mim, é inerente. Eu já represento isso. Posso estar fazendo forró, o que for, sempre vou ser um MC da cultura hip hop.

Como foi a virada de chave para trazer estilos diferentes para sua música? Pensa o feijão. O que você faz com o feijão? O tutu, o tropeiro, o acarajé, o bolinho de feijão. A bateria eletrônica que fez o rap, o techno, o freestyle, o miami bass, é a mesma bateria eletrônica que fez o house, e continua na história do dance music, da disco, tá ligado? Já tá dentro do universo da parada. É primo de primeiro grau. Mesmo avô, mesma avó, mesma família. Pode parecer que o ritmo é diferente, mas o compasso é o mesmo que você faz o rap, o funk, a black music. Eu trouxe a estética e coloquei com a minha cara, do meu jeito, específico dentro do meu tom de voz. 

E isso em Belo Horizonte, onde a cultura do rap é forte, mas não consegue ter tanto alcance nacional. BH é um lugar que poucas vezes viu um movimento cultural que não fosse elitista. Clube da Esquina, a galera do pop rock, do metal, todo mundo tinha dinheiro, condição de terminar escola, faculdade, acesso à educação musical. Foi a primeira vez que BH teve um movimento que realmente viesse da periferia. Tô falando da condição social das pessoas: de um favelado se firmar no mercado, de concorrer com outros estados. Foi a primeira vez. O Duelo de MCs [movimento de batalha de freestyle que nasceu na capital mineira] é isso. É um movimento de ocupação da cidade feito por mulheres, mulheres negras, homens negros, pessoas de periferia, pessoas negras, pessoas trans, pessoas ricas, pessoas pobres, na rua. Pessoas que conseguem sair da favela é a primeira vez, a gente tá vendo isso agora. Um instrumento de sopro, uma guitarra, não é qualquer um que consegue ter acesso. Na periferia, as pessoas têm acesso a um instrumento pela igreja ou pelo candomblé. Fora isso, não tem educação, escola de música. Não tem aula de piano na favela.

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Em suas músicas, você sempre coloca os produtores como feats. Qual o papel do produtor no seu processo? Por que colocá-los como autores nos discos? Mais da metade da música é o produtor que faz. Eu chego ali junto com uns 20, 25% da letra e a voz. Isso também é me posicionar e forçar o mercado a mudar. Se eu for uma pessoa que abre espaço para o produtor, que também é o dono da música, eu faço com que os outros produtores também queiram aparecer e mudar o jeito de trabalhar. E se os produtores ficarem mais fortes, tiverem mais espaço, mais dinheiro e mais ouvintes, com certeza a nossa cena rap vai sair fortalecida. Enquanto só um elemento do hip hop tá ali ganhando dinheiro e outros tão capengando, tendo que vender o almoço pra ganhar a janta, a gente não vai andar. Colocar o produtor como feat, como coautor, é me posicionar no mercado. É o que é justo, o que deveria ser feito, o certo. Se eu fizer coisas que ninguém faz, eu vou ser diferente de todo mundo. 

E o seu relacionamento com DJs também é muito bom. As pessoas às vezes querem mostrar música pro FBC. Eu falo assim: cara, eu não tenho que achar, não sou eu quem tem que ouvir sua música, nem o Djonga, nem o BK. Quem tem que ouvir é o DJ. O cara fica querendo acertar alguém lá em São Paulo, no Rio De Janeiro, mas tem um amigo dele que toca toda sexta, sabe? Tem muito mais DJs do que MCs, páginas de rap, veículos de comunicação. Quando eu me atentei pra isso, eu foquei nos DJs. Acho que o maior motivo de “Baile” ter estourado é isso. As pessoas vão no rolê e falam que tavam numa pizzaria evangélica não sei aonde e tocou — e é isso. 

Você morou um tempo na ocupação Nelson Mandela, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Esse senso de comunidade e coletividade vem dali? Eu achava que sabia sobre comunismo, sobre luta, até ir morar na ocupação. Ao aprender na prática com Poliana, Leo Péricles [liderança do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas, e candidato à Presidência em 2022 pela Unidade Popular pelo Socialismo] e com todas as pessoas que são líderes comunitárias, eu entendi que a gente tem que compartilhar, dividir as ferramentas que temos pra trabalhar. Também temos que nos relacionar, impor, questionar, formar opinião. Tenho meu estúdio em Belo Horizonte, no bairro Floresta, e a galera, como o Abbott [rapper de BH], vem gravar aqui e eu não cobro nada. Acho que é a contrapartida, tá ligado? Eu acredito que eu posso ser um multiplicador. Cantei rap pelo Brasil, conheci os grandes nomes da parada, e me incomodei quando entendi que as pessoas, mesmo quando faziam parcerias, estavam disputando. É um jogo, um game. Eu não quero concorrer com ninguém. Ter na cabeça que eu vou precisar ser melhor que alguém, vou ter que fazer um álbum melhor... Não penso assim. Tanto que tento fazer umas coisas que não tem nada a ver com o que tá rolando só para as pessoas não pensarem que tão competindo com fulano. É o melhor trap, é o melhor rap... Não é assim. Eu acredito na luta coletiva. Quanto mais eu dividir as minhas coisas, minhas oportunidades, meu acesso, maior eu vou ser.

Você continua morando na Cabana Pai Tomás, uma das maiores favelas de Belo Horizonte? Eu gosto da Cabana porque eu nunca fui destratado lá, mesmo antes da galera me conhecer. É um lugar onde é a criminalidade que comanda, uma área de risco, né? Sempre fui respeitado, fui trabalhador, vendi água por 10 anos no sinal da Amazonas [uma das principais vias da capital] em frente o Cabana. É muito doido ouvir as pessoas que conhecem minha história falarem: "Cara, eu vi você vendendo água e agora tô vendo você fazer as suas coisas com seu carro". São poucas as vezes que a galera tem o exemplo de alguém que venceu, que parecia com eles em relação a não ter estudo, não ter parente, não ter “peixada”, e conseguir dar a volta por cima. O exemplo de estar vivo, e estar ali. Eu ainda não tô rico. Eu poderia alugar uma casa fora do morro, mas é besteira. Minha casa é boa, me sinto seguro, mais que se morasse num bairro. É aquela música que tenho: condições são as contradições do nosso Brasil [Contradições, do disco S.C.A., de 2018]. A galera vê ali alguém que venceu na vida, traz autoestima pra comunidade. Eu quero que as pessoas falem que moram na quebrada do FBC. É minha quebrada, entendeu? Vai chegar um dia em que, talvez sim, talvez não, eu saia do morro. Mas depois desse dia eu ainda serei o exemplo de vitória de uma pessoa que era dali e conseguiu estourar no mundo.

Créditos

Imagem principal: Bel Gandolfo (@kiddotrixx)

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