Um, dois. Um, dois. O exercício do rap nordestino

por Peu Araújo

Dois momentos em que o rap precisou tirar o holofote do eixo Rio-São Paulo

O rap produzido e cantado por artistas nordestinos está em fase de muita colheita. O cearense Don L fez recentemente um show apoteótico no Sesc Pompeia, em São Paulo, para lançar seu segundo trabalho solo, a mixtape Roteiro pra Aïnouz Vol. 3. Diomedes Chinaski e Luiz Lins, ambos de Pernambuco, se apresentaram no Festival Rec Beat para milhares de pessoas no centro do Recife. Do Ceará, Carlos Gallo está prestes a lançar seu primeiro — e aguardado — trabalho solo.

O baiano Baco Exu do Blues fez, em fevereiro, shows concorridos em São Paulo e, junto de Don L, no Circo Voador, no Rio de Janeiro. Também de Salvador, Vandal é presença constante nos shows do Baiana System. Há um holofote ligado na direção destes, e de outros nomes, em uma indústria musical que nunca escondeu sua predileção pelo eixo Rio-São Paulo e em muitos casos, inclusive, a xenofobia.

Para entender como foi criada uma cena rica de rap no nordeste é preciso fazer uma regressão e dar um zoom em dois momentos importantes. O primeiro, em 2007, é o lançamento da mixtape Sexo, Drogas e Violência de Costa a Costa, dos cearenses do Costa a Costa. E o segundo é o lançamento da música “Sulicídio”, de Diomedes Chinaski e Baco Exu do Blues. Nos parágrafos abaixo vamos dar voz aos protagonistas e a personagens ativos na criação de uma cena que tenta manter a luz, o circuito de shows, de faturamento e o “game” do rap na região.

Primeiro tempo

É bem verdade que poderíamos elencar outros pontos significativos para o rap nordestino como uma espécie de marco zero. O primeiro disco do Faces do Subúrbio em 1997 ou até a indicação do grupo ao Grammy Latino em 2001, por exemplo. Mas talvez o símbolo que melhor aglutina o gangsta rap, já praticado na região, com inovações e um destemido orgulho de ser nordestino, é a a mixtape Sex, Drogas e Violência de Costa a Costa, que completa 11 anos em 2018.

Formado por Don L, Carlos Gallo, Flip Jay, Preto B e Júnior D, o Costa a Costa cantou, como eles dizem em versos, o gueto do gueto. Com gírias locais, autobiografias e muita personalidade, eles foram fiéis ao título do trabalho. “Falar da mixtape é falar de um momento da minha vida em que eu estava sendo resgatado pela arte”, conta Gallo.

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Aos 43 anos, o rapper explica qual era o panorama do rap em Fortaleza há uma década. “Em 2007, Fortaleza era uma cidade que estava vindo do movimento funk. O hip hop surgia para mim como uma possibilidade de espaço de fala, eu não me encontrava em nenhuma outra música, a não ser aquelas feitas por afrobrasileiros em Salvador, como Olodum, Timbalada".

“A mixtape teve muito mais efeito concreto, de proporcionar carreiras e shows, no sudeste do que no nordeste. Para o rap nordestino, proporcionou um respiro. Muita gente estava desacreditada e viu que era possível”, completa Don L, que hoje tem 37 anos. A MC pernambucana Lívia Cruz, que participou da obra no remix da faixa “Mel e Dendê” dá seu veredito: “A mixtape tem uma linguagem autêntica e os meninos são muito talentosos na escrita. São letras que transportam você para um lugar que não tem visibilidade, o gueto de Fortaleza. É revolucionário”.

Diomedes Chinaski afirma que o Costa a Costa é o “Racionais do nordeste.” Assumidamente inspirado no grupo, inclusive com uma tatuagem com o rosto de Don L no antebraço esquerdo, Diomedes Chinaski conta como os cearenses o influenciaram. “O tipo de rap que eu fazia não dialogava com os meus companheiros e conterrâneos de quebrada. Quando eu e Faraó ouvimos o Costa a Costa cantando com o sotaque e as gírias de Fortaleza, criamos o grupo Chave Mestra.”

A resposta à Sex, Drogas e Violência, principalmente no sudeste, foi curiosa. É inegável a importância do trabalho, sua criatividade artística e sua relevância, mas a obra não deslanchou nos clubes e não teve o alcance que poderia ter tido. “As pessoas usaram a xenofobia como ferramenta para embarreirar os trabalhos dos nordestinos. Aconteceu isso descaradamente com a mixtape do Costa a Costa. Os DJs foram tocar muito tempo depois, quando já não tinha a formação do grupo”, diz Diomedes. Em suma, foi permitido aos cearenses fazerem história, mas não lhes foi permitido lucrar com ela.

Segundo tempo

No dia 29 de agosto de 2016, nove anos após a mixtape, uma música lançada por Baco Exu do Blues e Diomedes Chinaski voltou a colocar luz forte no nordeste. “Sulicídio” se propôs, com muita raiva, a falar sobre a cena local e a apontar o dedo para alguns rappers do Rio de Janeiro e de São Paulo, como Nocivo Shomon, Don Cesão, Nog, Felipe Ret, Dalsin e Felp.

A faixa, que hoje tem mais de 7 milhões de visualizações no YouTube, ganhou uma versão brega funk, mas, além disso, ganhou inimizades e respostas pouco amistosas, as famosas “diss”, entre elas uma de Nocivo Shomon e outra de Nog e Predella, ambos do Costa Gold.

“Tinha uma cena de playboys que traziam artistas de São Paulo e do Rio para tocar no nordeste. Você tinha que vender para se pagar, enquanto eles traziam Costa Gold e Haikaiss pagando não sei quantos mil e botando barca de sushi no camarim”, lembra  Diomedes, sobre o que gerou a música. 

Em dezembro de 2016, um documentário de 28 minutos intitulado Sulícidio: impacto foi lançado na internet com a intenção de levantar o debate sobre a repercussão. A música cumpriu sua promessa. Chacoalhar o rap e abrir espaços. “As pessoas ainda subestimam o rap do nordeste, ainda não está como deveria estar, mas tornou a cena um pouco menos injusta e desigual”, afirma Chinaski. 

Don L relembra qual foi sua impressão ao escutar, dois dias antes do lançamento, a canção. “A primeira coisa que eu pensei é que eu teria problema, porque eu ia ter que defender os caras. Ao mesmo tempo que eu sabia que algumas coisas eram problemáticas, principalmente na forma como o Baco falava, eu tinha certeza que eram totalmente necessárias. É como o Costa a Costa. A gente teve que chegar com os dois pés na porta, senão ninguém ia dar atenção. Sabia que a mensagem não seria digerida facilmente.” Menos de dois meses depois do lançamento de “Sulicídio”, Baco e Diomedes se juntaram em São Paulo a Nissin e Rapadura para o cypher (espécie de reunião de MCs) “Expurgo” e novamente surpreenderam os fãs.

Uma porta, de fato, se abriu. "‘Sulicídio’ diz para o jovem nordestino que ele pode”, diz Gallo. Na mesma linha, Lívia Cruz comenta: "A música foi capaz de despertar uma cena que estava anêmica.” Bem menos otimista, Vandal tem outra forma de enxergar o lançamento. “Eu não consigo ver esse 'Nordeste, caraio', este 'pretos no topo'. Eu vejo dois nomes que ganharam notoriedade a partir da música e que estão criando suas carreiras a partir disso”.

Talvez o próximo meteoro nordestino demore uma década para atingir a Terra, mas a impressão que se tem — pelo menos no meio do caminho — é de que até lá a cena do nordeste não será dissipada e principalmente não poderá mais ser ignorada. Profético, Don L fala sobre “Sulicídio” algo que que talvez possa se expandir para a cena do rap no nordeste: “É muito mais sobre racismo e xenofobia do que qualquer outra coisa.”

Créditos

Imagem principal: Carol Ito/Heitor Loureiro

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