por Carol Ito

Baco Exu do Blues não tem medo de se expor. Começou a rimar para superar a gagueira, colocou a própria dor em suas letras para sobreviver e, agora, garante que será um gigante

"Sempre que escrevo, tô muito perto de me matar”, revela Diogo Moncorvo, mais conhecido como Baco Exu do Blues. Aos 23 anos, o baiano é um dos nomes mais influentes do rap nacional e, além de usar sua música para escancarar várias faces do racismo, reivindica o direito de falar sobre amor, tristeza e fragilidades. “Quando a gente fala sobre música negra, pensam em luta, no personagem agressivo. As pessoas têm que entender que qualquer ato normal para um negro é um tipo de luta”, defende.

Para Baco, todo negro sofre de depressão. Há dois anos, ele se deu conta da sua  e decidiu falar abertamente sobre isso em entrevistas e nas letras dos dois discos que lançou desde então. “Isso é um pedido de socorro/Você está aplaudindo/Eu tô me matando, porra!”, canta em “En tu mira”, faixa de Esú (2017). E retoma o assunto em “Minotauro de Borges” (“Bebo da depressão/Até que isso me transborde”), do álbum Bluesman (2018).

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Essa tristeza profunda deu frutos: Esú  foi premiado pela Associação Paulista dos Críticos de Arte nas categorias artista revelação, disco e música do ano com “Te amo disgraça”. O álbum surpreende pela mistura de trap com ritmos brasileiros e referências que vão do poeta francês Arthur Rimbaud ao cineasta espanhol Pedro Almodóvar. Já Bluesman arrancou elogios de Caetano Veloso: “É um acontecimento incrível no panorama da música brasileira. Deu uma avançada no mundo do rap”, disse o cantor na entrevista que fez com Baco para a Mídia Ninja. Para Lázaro Ramos, que o entrevistou em seu programa Espelho, no Canal Brasil, a música do 
rapper é de uma “potência sem igual”.

 Tiro certo

Baco passou a maior parte da vida em Salvador, mas viveu até os 7 anos em Alagoinhas, a 100 quilômetros da capital. Da época ele se recorda de acordar todos os dias às 5 da manhã para treinar tai chi chuan, exigência do pai, que, além de dar aulas da arte marcial, era especializado em medicina chinesa e na tradição zen budista. A mãe, professora de literatura, foi responsável por manter a casa abastecida de livros, que serviram de base para as primeiras letras do artista. Apesar de ter intimidade com a leitura, o rapper não se sentia à vontade no ambiente escolar e largou a escola na 6ª série, depois de passar por dez colégios. Teve dois trabalhos, um entregando gás e outro, quentinhas, que não duraram mais do que duas semanas. “Tenho problema com hierarquia...”

Na adolescência, Baco começou a frequentar batalhas de MCs e se juntou ao grupo de rap D.D.H. (Direto do Hospício). Em 2016, aos 19, quando estava quase desistindo da carreira, deu seu último “tiro” e abalou a cena do rap nacional com o lançamento da música “Sulicídio”. Feita em parceria com o pernambucano Diomedes Chinaski, a faixa reivindica a falta de holofotes voltados para a cena nordestina. As rimas causaram desconforto no eixo Rio-São Paulo (“Esses MC são tudo favela gourmet”, cantam), o que, segundo ele, abriu espaço para que outros artistas fossem notados. “‘Sulicídio’ é um marco histórico, não uma música”, diz, sem nenhuma modéstia.

Ironicamente, Baco deixou a Bahia para se dedicar ao “business” em São Paulo e recebeu a Trip para um papo franco em seu apartamento no centro da cidade.

 Trip. Seu pai era professor de tai chi chuan. Como ele se interessou por isso?

Baco Exu do Blues. Não sei, véio. Sei que ele aprendeu a falar chinês e japonês sozinho e minha casa era tipo um local de treino, onde ele também fazia consultas de medicina chinesa. Minha mãe brinca que muita gente achava que ele era um preto soberbo por não fazer “coisas de preto”. Ele morreu quando eu tinha 7 anos de uma 
doença que não sei o nome, mas que vai parando os órgãos pouco a pouco.

 Você passou por dez escolas? Por quê? Fui expulso de um bocado [risos]. Estudei em cinco particulares e cinco públicas. Tinha muito ódio dentro de mim, qualquer coisa era motivo pra explodir, brigar. Além disso, desde criança tenho Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, o TDAH. Todo mundo me via como vítima, coitadinho, e eu não aceitava. Por isso, comecei a criar meus métodos pra aprender, pegava os livros de minha mãe, que nem na faculdade davam.

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Como você começou a compor? Acho que com uns 15 anos. Eu tenho um problema de dicção, era meio gaguinho quando criança. Queria compartilhar na roda o que eu achava dos assuntos, mas como a galera não conseguia entender direito, comecei a escrever as paradas e depois a cantar [quando ele canta, o problema da dicção desaparece]. E quando comecei a botar a cara pra batalhar [nas batalhas de MCs, em Salvador], passava metade do meu dia improvisando, falando maluquice. Isso me ajudou muito. Nunca fiz fono na vida.

Você disse em uma entrevista de 2017 que não sairia de Salvador para tentar a vida no Sudeste, porque queria movimentar a cena por lá. O que mudou? Eu não considero que tô morando em São Paulo. Eu vim pra produzir o Bluesman, apareceu mais trabalho e acabei ficando. Pra fazer a cena acontecer em qualquer lugar, você tem que ser gigante e essa é minha meta. Eu não quero chegar e salvar um ou dois nomes do bagulho, quero criar uma máquina de onde saem artistas. E não é de um dia para o outro que se faz isso. Acho que já influenciei emocionalmente o coração das pessoas de lá. Muitos, querendo ou não, tão crescendo graças a mim.

Nas suas letras, você cita artistas como Van Gogh, Jorge Luis Borges, Jay-Z e Kanye West. O que eles têm em comum? Eles pensaram fora da caixa. É a parada da genialidade ser uma faca de serra dupla. Você vai criar coisas incríveis, ser o estranho, o maldito, até alguém validar sua arte. Infelizmente, a vida é assim.

Você calculou o risco quando lançou “Sulicídio”? Não, eu tava pensando em parar de fazer rap na época. Tava cansado de dar murro em ponta de faca, trabalhava pra caralho, dava minha vida pra aquilo e nada acontecia. Minha família também tava de saco cheio, falando que eu tinha que trabalhar [fora da música]. Foi meu último tiro pra dizer “tô vivo”. Parece que o tiro acertou no lugar certo.

Na entrevista para o Lázaro Ramos, você disse: “Eu precisei ser agressivo pra ser notado, mas isso é o que todos esperam que eu seja. Até quando vou ter que me enquadrar nesse estereótipo pra conseguir alguma coisa?”. Como foi descobrir isso? Eles colocam esse estereótipo de que preto é agressivo para te encaixotar. Chegou num ponto que eu surtei. Eu tô sendo brabão, tendo minha postura e, ao mesmo tempo, tô fazendo exatamente o que o branco quer que eu faça. Até que ponto eu tô lutando de verdade e até que ponto tô na caixinha que botaram a gente? Eu não quero ser um cara agressivo, luto todo dia contra o meu instinto.

Você acha que esse estereótipo tem a ver com o caso do músico que foi morto com 80 tiros no Rio de Janeiro? A gente sabe como é andar na rua e achar que qualquer pessoa pode matar a gente a qualquer momento. Sabe o medo que aquela pessoa sentiu, a dor que a família tá sentindo agora. Todo mundo cobra um posicionamento quando acontece alguma coisa com preto, mas não é a gente que tá fazendo mal para os pretos, são os brancos. A gente fala porque tá unido, mas é obrigação deles falar.

Você tem letras que são consideradas agressivas, mas seu maior hit é “Te amo disgraça”, que fala de amor e sexo. Eu sempre fui bom com “lovesong”, mas não me permitia muito. Chegou um momento que eu entendi que o amor é uma forma de luta tão genuína quanto as outras. As pessoas só querem que eu fale de miséria, de dificuldades, mas elas têm que entender que qualquer ato normal para um negro é um tipo de luta.

Falar da fragilidade do homem negro ainda é tabu? A parada que eu mais aprendi com a minha depressão é que assumir meus sentimentos é bem menos doloroso do que guardar e fingir que tá tudo bem. Enquanto a gente for proibido de sentir e admitir que tá doendo, de viver como uma pessoa normal, a resposta vai ser a agressividade iminente.

Sua depressão tem a ver com a exposição, a fama que veio muito rápido? Todo negro sofre com depressão, mesmo que em níveis diferentes. Todos passam por traumas que podem levar à doença. Tendo ou não fama, acho que eu seria depressivo.

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O que te faz segurar a barra? A responsabilidade que eu tenho com os outros. Tenho uma equipe de 14 pessoas. Se eu enlouquecer e acabar me matando, tô deixando na mão 14 famílias.

Em geral, os homens são ensinados que não podem chorar, mostrar fraqueza. Como é para o homem negro? O homem negro não foi ensinado a chorar, não foi dado esse privilégio. Ele nunca vai ser o coitado da história. A gente foi ensinado assim: quando apontarem uma arma na sua cabeça, você aceita que vai morrer. Não fomos ensinados a implorar pela nossa vida, porque não adianta. O filho de 37 anos do presidente fala merda e argumentam: “Ah, ele é só um garoto”. Agora, se um jovem negro roubou pra comer, é marginal, vagabundo, ninguém pensa que é só um garoto.

Você chora? Sempre chorei sozinho, trancado em casa, sem ninguém ver. Mas desde que comecei a me entender, não tenho problema com isso. Vou chorar na frente dos meus amigos, de alguma companheira, normal. Chorar é que nem vomitar. Vomitou, melhorou.

Créditos

Imagem principal: Fernando Schlaepfer

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