Elas só queriam contar pra todo mundo que estavam casadas e foram parar no meio de um turbilhão
A jornalista Malu Verçosa e a cantora Daniela Mercury só queriam contar pra todo mundo que estavam casadas. Acabaram num turbilhão que junta política, ativismo e uma história de amor
“Minha filha, o prédio inteiro já está sabendo.”
Não demorou muito para dona Josinete descobrir que não era só o prédio. Depois que a notícia foi anunciada até por William Bonner no Jornal Nacional, mais correto era dizer que o Brasil inteiro estava sabendo do casamento de sua filha, a jornalista Malu Verçosa, com uma das cantoras de maior sucesso do país, Daniela Mercury.
As duas protagonistas estavam bem longe de casa – precisamente, em um quarto de hotel de Lisboa – quando Daniela apertou o share na tela do celular e dividiu com o mundo, por meio do aplicativo Instagram, a informação de que estava mais do que apaixonada. Estava casada. Com uma mulher. “Malu agora é minha esposa, minha família, minha inspiração pra cantar”, dizia a legenda da montagem que usava quatro fotos em preto e branco da dupla, uma delas mostrando as alianças que ambas passaram a usar dias antes, quando, em outra parada das férias, foram a uma igreja de Paris jurar amor eterno.
Fosse esse um novo casal formado por um homem e uma mulher, e sendo uma das partes uma celebridade, o comunicado não extrapolaria as páginas de revistas semanais e sites especializados na vida dos outros. Mas Daniela e Malu, além de serem um casal formado por duas mulheres bonitas – o que ainda causa alvoroço na opinião pública –, escolheram um momento especial para sair do armário: naquele 3 de abril, o deputado federal Marco Feliciano estava perto de completar um mês à frente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias do Congresso Nacional, um posto que, pelo que se tem visto, até um extraterrestre teria mais desenvoltura para ocupar. Prenhe de declarações homofóbicas, racistas e invariavelmente infelizes, o deputado é o homem errado no lugar mais errado ainda. Daniela e Malu acabaram se tornando a imagem certa na hora certa de protestar – se não pela causa gay, no mínimo contra o sistema torto que rege a distribuição de cargos políticos na capital federal. “As mudanças de comportamento estão aí, mas as pessoas precisam de ícones, de atos simbólicos. A comunicação do casamento foi isso”, acredita a cantora.
22.500 likes e 5.730 comentários depois, o deputado seguia presidindo a comissão no dia em que ambas concederam entrevista à Tpm, na véspera da apresentação de Daniela na Virada Cultural, em São Paulo. A pauta de Brasília foi um dos temas da conversa, assim como o machismo, a axé-music, a maternidade, o envelhecimento, a descoberta da própria bissexualidade... e o amor. Principalmente ele. Recém-casadas, Daniela e Malu estão naquela fase do relacionamento em que tudo parece lindo – até acordar às 5h30 da manhã, coisa que a cantora detesta, mas tem feito com prazer só para levar a mulher ao trabalho.
Jornalista, 37 anos, Malu é editora-chefe do Bahia Meio-Dia, telejornal vespertino da TV Bahia, afiliada da Rede Globo naquele estado. Natural de Manaus – só porque era lá que o pai, Pedro, então funcionário da Petrobras, trabalhava quando ela nasceu –, Malu cresceu em Salvador e viveu lá a maior parte da vida, com um intervalo de dez anos passados em São Paulo, onde terminou a faculdade e começou a carreira.
Daniela, 47, nascida e criada em Salvador, bailarina desde a adolescência, cantora de projeção nacional desde os anos 1990, há anos um dos pesos-pesados do Carnaval baiano, se orgulha também da extensa folha corrida ligada a causas humanitárias – é, por exemplo, embaixadora do Unicef há 18 anos.
As duas dividem a casa em que a cantora já morava com as três filhas mais novas, Ana Isabel, 3 anos, Ana Alice, 11, e Márcia, 15, adotadas quando ela era casada com o publicitário Marco Scabia (além delas, é mãe de Gabriel e Giovana, 27 e 26 anos, de seu primeiro casamento, com Zalther Póvoas). Desde o dia em que anunciaram a união na rede social, elas vivem num turbilhão que tem seu lado desagradável – a vida devassada, o ex-marido de Daniela sendo procurado pela imprensa, a ex-mulher de Malu idem, um sem-número de pedidos de entrevistas, muita fofoca –, mas cujo resultado afirmativo Daniela considera valioso. “A gente tá cansada de contextos que desmerecem a mulher. Então o momento que junta duas mulheres altivas é uma pancada.”
"As pessoas precisam de ícones, de atos simbólicos. A comunicação do nosso casamento foi isso"
Tpm. Faz um mês e meio que quatro fotos no Instagram desencadearam uma avalanche na vida de vocês.
Malu Verçosa. Na verdade foi na minha! A dela já é uma avalanche há muito tempo.
Você tem essa sensação, Daniela? De que pra você esse passo foi mais simples?
Daniela Mercury. O que é mais interessante é que tudo o que eu sempre falei ganhou significado. Eu sempre fui uma mulher de direitos humanos, sou uma militante social há anos, mas ao mesmo tempo sou uma cantora de música alegre. E o Brasil não estava muito a fim de ouvir coisa séria de seus artistas. O que se espera é que você não fale de coisas sérias, não fale mal de ninguém, seja leve... e eu querendo contribuir mais com algo mais profundo. Agora há uma disposição pra me escutar. Parece que descobriram uma nova pessoa. Publicar aquilo me colocou num outro lugar para as pessoas.
Malu. É estranho que, depois de uma vida pública tão longa, uma revelação íntima, pessoal, faça as pessoas descobrirem que ela pensa, que tem posicionamento político. Ela sempre teve. Mas tem a coisa de ser cantora de axé-music, de samba reggae, que, apesar de ser uma música densa, que protesta contra o racismo inclusive, as pessoas acham que é só ai ai ai, ui ui ui.
Mas como está sua vida agora, Malu? Já que a avalanche é maior pra você.
Malu. Me sinto invadida, nunca gostei de aparecer. Gosto de estar atrás das câmeras. E sou jornalista, gosto mais de perguntar do que de responder. Me ligam muito no trabalho, mas não tenho tempo de ficar atendendo, dando entrevista. É estranho.
Daniela. Quando a gente soltou o “compartilhar” no Instagram foi um alívio enorme, uma sensação de liberdade, de dignidade. Não veio nenhum medo.
Malu. Não veio em você! Em mim esse alívio durou 5 minutos. Quando comecei a pensar – “Meu Deus do céu, o que eu fiz?” –, comecei a andar pelo quarto do hotel, desesperada. Ela só fazia rir, tinha crises de riso no chão. E eu: “Levante daí e pare de rir!”.
Daniela. Ela dizia: “Eu vou morar aqui agora, nunca mais saio deste quarto”. E já em Portugal, onde estávamos, começou a aparecer muito paparazzo. E eu dizia: “Amor, as revistas estão ligando, não vai ter jeito”. Toda vez que ela se irrita, eu digo que há uma razão maior, que dá muito sentido a tudo isso. Eu não estaria dando esta entrevista se não estivéssemos vivendo questões políticas tão importantes, se não fosse um ato emblemático. As mudanças de comportamento estão aí, mas as pessoas precisam de ícones, de atos simbólicos. A comunicação do casamento foi isso.
Diante do momento político, vocês já esperavam virar pauta nacional?
Daniela. Não, não dava pra prever. A gente estava numa viagem de férias, depois de uma turnê. Mas quando eu saí do Brasil já estava acontecendo Marco Feliciano, então obviamente sabia que aquele ato tinha uma dimensão política. Mas não dava pra saber como seriam as reações. Poderia ser só uma polêmica, podia até não chamar tanta atenção, podiam achar que era invenção... Mas foi um ato amoroso que emocionou as pessoas.
Malu. E estimulou muitas pessoas a se posicionarem, primeiro dentro de casa. Pra família, pros pais, pros irmãos. Falar com quem estão, não se sentirem culpadas, envergonhadas por estarem se relacionando homens com homens, mulheres com mulheres.
Daniela. A transgressão sempre é o amor. Duas mulheres casadas na capa de uma revista de celebridade? É transgressor. Porque no fundo tá tudo expresso aí: a coisa do machismo, do preconceito que mulher tem que enfrentar. Por que o homem hétero chama o gay de “mulherzinha”? Ser mulher é ofensa, é algo menor? O machismo no Brasil faz com que homens e mulheres achem que a opinião de uma mulher seja menos importante. Independentemente de a gente ocupar cargos, ocupar lugares, a história é essa, homens achando que mandam. Eles olham duas mulheres e pensam: “Vou comer as duas”. Mal sabem eles que não vão comer nenhuma. Quem come somos nós! Vivemos mais, gozamos mais, nos divertimos mais. Eles acham que têm poder sobre nós, mas é um poder imposto, é a tentativa de a força física dominar a inteligência, a sensibilidade. A própria Bíblia nega a mulher.
Você disse numa entrevista que quando reza prefere dizer “em nome da mãe, do pai, do filho e do Espírito Santo”.
Daniela. Porque acho um absurdo não ter mulher na história. Fico louca! Jesus não teve namorada, Maria teve um filho do Espírito Santo... que Espírito Santo nada, foi um ato de amor. Em que isso diminui o valor da história? A gente tá cansada de contextos que desmerecem a mulher. Então o momento que junta duas mulheres altivas é uma pancada.
Vocês não avisaram ninguém que iam publicar as fotos?
Daniela. Não. As famílias já sabiam de nós, claro, mas a decisão de expor foi nossa.
Malu. Se a gente falasse, todo mundo ia dizer que a gente tava louca, que ia atrapalhar nossas vidas, que era loucura. A gente discutiu uns cinco dias. Já estávamos de aliança, nos casamos no meio dos protestos contra o casamento gay em Paris. A gente queria comunicar, como qualquer pessoa comunica que está casada.
Daniela. Ao mesmo tempo eu não queria só escrever um comunicado. Uma foto seria muito melhor. E foi tão feliz, dá pra ver que são duas mulheres apaixonadas. A gente só queria mostrar claramente, até pra não virar uma perseguição idiota, pra não virar cobaia de um jornalismo desimportante. E pra ajudar mais gente a se sentir livre.
As demandas geradas a partir disso não geraram nenhum atrito entre vocês?
Malu. Toda relação tem atrito, mas acho que a atitude fortaleceu. Quanto mais comentários, mais demandas, mais a gente conversou. E conversar é autoconhecimento. Falei isso na terapia esta semana: o vínculo fica mais forte a cada dia. Porque a gente tá se conhecendo mais agora.
Daniela. O enfrentamento foi inevitável: saber o que a outra pensa, o que acha, o que está sentindo, ligar pros pais pra dizer: “Olha, vai sair a capa”. Eu mesma liguei pros pais dela. Falei: “Sogrinho, fiquem tranquilos! Estamos tão felizes, salvando a humanidade”. A mãe dela falou: “Minha filha, o prédio inteiro já sabe!” [risos]. Tão bonitinho. A minha família está acostumada, foi obrigada a lidar com isso. Mas na dela é tudo novidade.
Seus pais encararam a sua orientação sexual com naturalidade?
Daniela. Eu já tinha tido relação com mulher e eles já sabiam, mas eu não tinha deixado tão explícito. Quer dizer, pra minha mãe sim, mas pro meu pai nem tanto. Dessa vez fui mais direta: “Meu pai, o senhor não sabia que eu namorava com mulher?”. E ele: “Sabia, minha filha, mas não precisa falar muito, tá tudo bem”. A questão não era eles conosco, mas com os amigos, as relações em volta, é muita coisa pra lidar.
Sendo a heterossexualidade o padrão do mundo, essa orientação gera uma crise, não? Internamente, como foi se descobrir interessada por mulher?
Daniela. A gente traz um padrão mental de felicidade e ele é hétero. Existe uma tatuagem psicológica, cerebral, de que o certo é pai e mãe, homem e mulher. Mas ao longo da vida a gente se abre pra outras possibilidades. Transformar isso é um ato de muita coragem interna. É você enfrentar a si mesmo, questionar o que não interessa e buscar o que o sentimento diz. Relação afetiva não é regida pela cabeça.
Malu. O momento da descoberta é difícil, sim. Eu sofri muito, é confuso. Quando era adolescente, eu dizia que jamais beijaria uma mulher. Assim como disse que nunca ia namorar uma artista [risos]. Já falei isso pra ela: eu não podia ter escolhido uma cantora de barzinho? Precisava dessa confusão toda?
Daniela. Pra mim não foi sofrido, não. Freud diz que somos todos bissexuais, então quem é mais aberto, mais fora da caixinha, acaba se abrindo pra isso também, para uma sexualidade mais livre. Mas tem um lado incômodo em saber que uma multidão está lendo sobre minha intimidade. E falar “minha esposa” é muito novo pra mim.
Ao mesmo tempo em que vocês recebem muito apoio, há essa reação contrária, especialmente de grupos religiosos.
Daniela. Vai ter sempre gente achando que isso é uma distorção. Na França mesmo: é um país admirável, já aprovou o casamento civil, mas teve lá o grupo fazendo passeata contra. Conflitos de gerações e visões de mundo sempre vai ter. E sempre vão aparecer essas figuras como Hitler, líderes radicais que pregam a violência. Temos que nos colocar e combater. Marco Feliciano desrespeita a Constituição, desrespeita a Declaração dos Direitos Humanos. A ONU existe desde 1948, esses direitos são muito claros! Esse homem não era pra estar em comissão nenhuma, em lugar nenhum! Por que não fica em casa com sua mulher?
Como a sociedade deveria reagir?
Daniela. Nesse caso específico tinha que ter um impeachment. Mas o mais importante é que as pessoas usem os direitos que estão assegurados na Constituição. Os gays já deveriam estar abertamente se beijando, se abraçando onde estivessem. Se eles não tiverem coragem, se ficarem dentro do armário, a sociedade não muda. Se as mulheres não ocupassem seus lugares, se não fossem votar, não adiantava ter lei dizendo que os direitos são iguais. Não dá mais pra não agir. Duas pessoas que são gays e se amam não vão sair de casa por medo da repressão de uma suposta sociedade conservadora? Cadê essa sociedade conservadora?
Você acha que os conservadores são minoria na sociedade?
Daniela. Achei que ia receber muita manifestação contra, de gente que não aceita, de evangélicos. Não que evangélicos sejam necessariamente homofóbicos, mas, como tem gente pregando essa homofobia dentro de igrejas, tive medo de ser agredida. Mas não recebemos nenhuma atitude de indelicadeza, pelo contrário. As pessoas bateram palmas, estão felizes por nós. Então a gente precisa se posicionar, tá na hora.
Malu, você sabe explicar o que fez você se apaixonar pela Daniela?
Malu. Tô me perguntando até hoje.
Daniela. Ah, porque...
Malu. Ei, eu que vou responder! Ela já ia responder por mim, olhe isso.
Daniela. Eu não [risos]! Eu ia perguntar de outro jeito.
Malu. Ela é adorável. Uma mulher incrível, forte, sensível. Educadíssima, generosa, supersolidária pra tudo, resolve desde os problemas da casa à logística do transporte dos instrumentos. A gente é muito parecida nisso, eu sou produtora nata, há 20 anos faço televisão. Na verdade meu ritmo é mais rápido, ela é curva de rio, vai parando. Até sair de casa você fica horas esperando. Mas, enfim, paixão não dá pra explicar muito.
Daniela. Não dá pra explicar nada. Éramos amigas, convivíamos um pouco, e de repente veio o clique: “Tô pensando tanto em Malu”. Passam-se dois, três, quatro dias, e a pessoa vindo no meu pensamento. Aí eu digo: “Será que tô apaixonada? Não, não pode ser... É uma amiga, carinhosa, só isso”. Fiquei meses com essa coisa, até que fui procurá-la. Eu tinha acabado uma relação, estava triste. Ao mesmo tempo, é difícil resistir a uma paixão num momento desse, porque traz uma alegria, né? Cheguei pra ela e disse: “Eu tô apaixonada por você”. Mas ela resistiu muito.
Malu. Resisti bravamente, por um tempo.
Daniela. Eu já tinha terminado meu casamento, ela estava terminando a relação dela... comecei a paquerar mesmo. Até que ela também resolveu tirar a prova dos nove. A primeira vez que a gente se beijou ela ainda ficou “hum, será?”.
Malu. “Será” não! Eu tava era fugindo de uma confusão dessa. Mas agradeço todos os dias por ter insistido.
O que há de diferente num relacionamento entre mulheres?
Daniela. As mulheres cuidam mais umas das outras. Não só num casamento. Uma vez eu estava no Marrocos, saí com minha banda pra passear e vi uma mulher sendo espancada por um cara. Um horror, uma coisa nojenta, não aguentei: entrei na briga e comecei a bater no cara. E os músicos sem coragem de entrar! Homem é um bicho covarde, viu? Corajosos são os gays. É muito macho o homem que assume e encara uma relação com outro homem. Em geral os homens continuam egoístas, fechados em si, machistas. Meu pai é um homem que se compromete, é um homem emocional, e eu busquei nos homens esse lado emocional, cumplicidade, compromisso. Mas mulher se compromete mais.
Por outro lado você já declarou que não pensa em gênero, pensa em gente.
Daniela. É verdade, eu me interesso pelas pessoas, homens ou mulheres. Mas estamos neste momento de afirmação. Depois de tantos anos de humanidade, e vivendo num país tropical, com antepassados indígenas e africanos, que rebolam, que lidam com o corpo de outro jeito, já não era pra existir esse pudor todo. Por que as pessoas não encaram sexo com tranquilidade? Por que temos que lidar com idiotas falando em cura gay? O que precisa de cura é machismo, autoritarismo, desvalorização da mulher, preconceito.
"Fui avó com 43 anos e antes mesmo de o nenê chegar vem a relação com esse título de avó. Não foi fácil", Daniela
Desde quando vocês moram juntas?
Daniela. Desde que voltamos das férias, no início de abril. Ou seja, a lua de mel veio antes. E, como minha vida é mais complexa, com três crianças, empregada, gato, cachorro, Malu foi morar comigo em Piatã [bairro de Salvador, afastado do centro]. Mas aí tem um engarrafamento horrível pra ela ir trabalhar, então acordo às 5h30 da manhã e vou levá-la dirigindo pro trabalho. Você vê o que é paixão, né? Odeio acordar cedo e fico tão feliz de levá-la! Mas estamos buscando outro apartamento. Construí minha casa e achei que ia ficar nela até o resto da vida, mas tá incômodo pra ela. Difícil vai ser levar a tralha. É roupa de Carnaval, é instrumento, é coisa de criança.
Você pensava em ter filhos, Malu? O “pacote Daniela” ainda trouxe isso, né?
Malu. Eu sempre quis. Aliás, eu estava quase engravidando antes desta paixão louca. Criança sempre me atraiu, amo meus sobrinhos. Então, chegar numa casa com crianças não é um drama. E as meninas são muito amorosas – Bela tem 3 anos, Alice, 11, e Marcinha fez 15 agora. Desde janeiro estamos convivendo intensamente.
As três foram adotadas juntas, né?
Daniela. Sim. Duas são irmãs, Ana Alice e Ana Isabel. Com a Márcia eu tive afinidade, e Marco [o ex-marido] também gostou. A vida toda eu tive planos de adotar. Quase adotei com meu primeiro marido, mas ter dois filhos, cuidar de mim, de uma relação, da carreira, era muita coisa. Tive Gabriel com 20 anos de idade e Giovana, com 21. Não tinha dinheiro, cozinhava, lavava, passava, não tinha nem máquina de lavar em casa. Casei cedo, éramos dois meninos, uma vida louca, cuidando da casa, deixando comida pronta, dando minhas aulas de dança, cantando à noite pra ganhar uma grana a mais.
E por que adotar tanto tempo depois?
Daniela. Eu tinha encontrado uma pessoa mais tranquila, com uma vida estável. E aos 45 anos achei que ia arrefecer, viajar menos. Aí, em plena síndrome do ninho vazio, com meus filhos casados, eu quis encher a casa. É uma experiência fantástica. Me entreguei completamente, mas o retorno não veio logo. Elas vieram desconfiadas, sem saber se seriam aceitas. A pequenininha estava com 1 ano e meio, arredia, a fase do eu, da tirania. Mas como dar limite a uma criança anêmica, com fome? Ela abria a geladeira e metia a mão em tudo, colocava tudo na boca. Eu tinha que deixar ela chegar, se sentir em casa, amada. Só depois do amor poderia vir o limite. Coincidentemente, como amiga, dividi muito disso com Malu.
Como é ser avó? E como você lida com a ideia de envelhecer?
Daniela. Fui avó com 43 anos e antes mesmo de o nenê chegar vem a relação com esse título de avó. Não foi fácil, vem uma crise de idade antecipada. E não foi fácil ver os meninos casarem – Gabriel com 21 anos e Giovana, com 23. E ainda veio o turbilhão de ter uma neta. É um sentimento tão louco, um amor, uma paixão por aquela criança. E aí a criança não é sua! Você ama tanto ou mais que um filho, mas não é seu, você não tem direito a nada. Neto é uma covardia [risos].
Sua vontade de engravidar passou, Malu?
Malu. A gente discute muito sobre isso. Na verdade ela quer mais do que eu. Daniela, por ela, enche a casa de menino. Mas já temos três e a gente pena pra dar atenção. Precisa orientar, dar limite, estar ligado o tempo inteiro. No meio disso, imagine eu com um barrigão, com um bebezinho. Eu tinha vontade de ser mãe e isso eu já sou. Tenho 37 anos, sei que estou descendo a ladeira da fertilidade, mas ainda temos um tempinho.
E vocês vão casar no civil?
Malu. Vamos. Eu nunca tinha tido vontade de casar no papel com ninguém, mas agora tenho. Mesmo a gente tendo declarado que casou, mesmo morando juntas e usando aliança, as pessoas nos tratam como namoradas. Não veem como casamento. Por todos aqueles padrões arraigados, difíceis de quebrar. Então, quando você formaliza, as pessoas reconhecem.
Casar de papel passado não acaba sendo uma posição careta?
Malu. Para os casais héteros pode ser natural simplesmente ir morar junto, mas para os gays não é. Este é um momento de afirmação, de usar seu direito e se fazer reconhecer. Fora as questões práticas, legais. Eu quero que ela possa resolver minhas coisas. Ou, se eu tiver um filho e morrer, não quero que haja disputa na família. Ninguém questiona essas coisas com um casal hétero.
Daniela. Casamento civil é mais uma conquista legal. Queremos ser iguais diante da lei. Se inventarem o casamento a três e isso virar uma regra, se tiver tanta gente que viva em grupos de três, vai ter que haver uma lei que contemple a união de três pessoas.
E vocês pensam em fazer algum ritual? Uma cerimônia religiosa?
Daniela. Estamos pensando nisso. Deve ser uma coisa bem ecumênica, juntando muita coisa diferente, gente meio anárquica, um Leonardo Boff da vida. Eu sou católica apostólica baiana. Sou de candomblé também. A gente sente necessidade de um sacramento, não é à toa que fomos à igreja em Paris, buscar uma conexão, uma bênção. Somos muito espirituais. E quero muito fazer uma festa. Ela me deu tanta alegria! Eu andava meio desanimada.
Por quê?
Daniela. Não sei... Vim morar em São Paulo, estranhei muito. Morava num lugar longe, o Panamby, não via sol, não via céu azul. Fui ficando sem seiva. Não sabia que ia ser tão difícil me adaptar. Isso me tirou muito o sangue, eu estava precisando me apaixonar.
Duas mulheres casadas discutem mais do que um casal hétero?
Malu. Acho que casal hétero faz DR uma vez ou outra, quando a mulher chama pra conversa. Mas nós conversamos tanto que as discussões ficam naturais. A gente nem percebe quando está tendo uma DR.
Daniela. É chato ficar falando de relações anteriores, mas posso dizer por experiência: depende das pessoas. Já tive momentos de muita conversa em minhas outras relações mais longas, com homens. Mas acho que as mulheres se entendem mais rápido. Assim que a gente começou a se relacionar, Malu me mandou um texto chamado “Afinidade” [de Artur da Távola]. Eu nunca tinha atinado pra esta questão: como é importante ter afinidade. É ela que define como vai ser o dia a dia, a troca. Tesão intelectual é fundamental. Ninguém se compromete só porque teve química sexual. É preciso gostar de conviver.
Teve algum dia nesse turbilhão todo em que vocês se arrependeram de publicar aquelas fotos no Instagram?
Malu. Não me arrependo de nada. Realmente minha vida está devassada, inventam notícias, vão atrás dos meus amigos, mas a repercussão positiva é muito maior e mais válida. Não acho que as pessoas tenham que levantar bandeira, cada um faz o que quer. Mas por que eu não vou chegar de mão dada com minha mulher num lugar? Por que vou ficar constrangida de dizer que ela é minha mulher?
Daniela. Eu espero que tudo isso seja útil. O que gostaria que ficasse pras minhas filhas e pro mundo é: não se deixem abusar. Não façam nada do que não queiram, se respeitem como seres humanos. O resto, o que é certo ou errado, se vão ser isso ou aquilo, se vão ter uma religião ou outra, se vão escolher namorar com homem, com mulher, com um ET, não importa. Importa ser livre e protagonizar a própria vida.