Da ponte pra lá

por Mayara Rozário

Invertendo o fluxo periferia-centro, festas nas quebradas têm mostrado a potência dos artistas e articuladores que sempre estiveram à margem

Andando pelo centro de São Paulo, você encontra lazer e cultura para todo lado. À noite, a cena é a mesma: há festas de todos os tipos e para diferentes públicos. Mas algumas se destacam por trazer a periferia à região. É o caso da Festa Punga, que ocorre no Estúdio Lâmina, na avenida São João, no coração de São Paulo. Idealizada por Catarina Marçal e colocada em prática em 2016, ela difunde os quatro elementos do hip hop (grafite, DJ, MC, B-boy e B-girl). Tudo é feito de forma simples e bem pensada: os shows ocorrem no estilo batalha de MCs, sem palco e um passando o microfone para o outro ao final da apresentação. 

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Catarina conta que isso é proposital, para que o público e o artista consigam se aproximar mais. É o que ela quer cada edição: que traga uma sensação de pertencimento. “A gente consegue fomentar e girar o público da cena do rap, acredito que justamente por esse acesso da periferia. A festa é muito nossa e para os nossos, sabe? Tem um reconhecimento, da galera se ver e se sentir representada ali. Não é algo idealizado por quem não vive o rolê. A linguagem visual e sonora está totalmente alinhada a nossa vivência.”

“A festa é muito nossa e para os nossos, sabe? Tem um reconhecimento, da galera se ver e se sentir representada ali”
Catarina Marçal

Falando em representatividade, muitas iniciativas culturais que nasceram nas periferias têm se mantido itinerantes, levando uma mensagem de resistência e orgulho do lugar de origem para o Brasil inteiro. Os saraus, slams (batalhas de poesia falada) e as clássicas batalhas de MCs têm um papel importante nesse resgate de autoestima e conscientização. 

Mas há quem prefira cultivar suas raízes onde elas estão fincadas, evidenciando a importância de criar oportunidades onde só se via escassez. São artistas  independentes e articuladores culturais que desenvolvem eventos em parceria com fábricas e centros culturais na periferia de São Paulo.  

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Da zona sul à zona norte, coletivos de “jovens à frente do tempo”, como pontua o grupo RZO em uma de suas músicas mais famosas, estão fazendo barulho e inaugurando festas que geram renda, lazer e cultura para os moradores. 

A Trip selecionou quatro eventos que acontecem no extremo sul da capital e conta suas histórias e as mudanças que estão trazendo para a sociedade.

Festa Goldz

A Goldz surgiu em 2018 para conectar artistas independentes e gerar um ambiente cultural ativo na zona sul, mais especificamente no Jardim São Luís, Vila das Belezas e Capão Redondo. A ideia surgiu por meio de uma iniciativa da produtora musical Deck9 Record’s, a Deck9 Concept, onde cantores, produtores, músicos e rappers eram convidados para se apresentar.

“Quando eu vou a uma Goldz, a uma Crash Party, me sinto bem, mas ninguém fala sobre isso. O lugar onde eu moro só é lembrado pela violência”
Mulambo

Para Vinex, Mulambo e JP,  fundadores da festa, que geralmente ocorre a cada dois meses, é essencial olhar para o lugar onde cresceram com mais atenção. “Fazer um evento na quebrada, além de criar um ambiente cultural e de lazer onde você não precisa levar horas para se deslocar, também cria oportunidades de produtores e MCs se conhecerem e começarem a trabalhar juntos”, explica Vinex, fundador da Deck9.

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Mulambo reforça a visão do amigo e parceiro de profissão, e destaca que, para ele, frequentar eventos assim abriu seus olhos para padrões sociais que antes estavam embaçados. “Sempre ouvi que estar no centro da cidade era a opção ideal. Quer ter um bom emprego? Estude em uma escola cara do centro. Quer ser bem-sucedido? Trabalhe no centro. Quer se divertir? Vá a festas no centro. Esse pensamento precisa parar", diz. "Estamos promovendo eventos que trazem dinheiro, lazer e cultura para quem vive aqui. Quando eu vou a uma Goldz, a uma Crash Party, me sinto bem, mas ninguém fala sobre isso. O lugar onde eu moro só é lembrado pelos casos de violência ou quando querem reforçar o estereótipo de que todo preto pobre é ladrão. Está na hora de lembrar que muitas coisas que estão no centro surgiram aqui.”

Crash Party

Guxtrava, idealizadora e fundadora da Crash Party, também pensa como Mulambo. E foi justamente isso e a necessidade de criar um espaço seguro para pessoas LGBTQ+ que a fizeram criar a festa, em 2016.

Com a ajuda dos amigos Alef, Mayra, João, Livea e Hiperativo, Guxtrava articulou cada detalhe e desenvolveu um evento que enfatiza a resistência de corpos normalmente marginalizados pela sociedade, incentivando novos talentos a se apresentar na região.

Com um line-up diverso, que contou com Linn da Quebrada e Jup do Bairro em sua última edição – de comemoração de três anos da festa –, o coletivo conseguiu ainda criar uma rede de apoio entre os frequentadores, que se tornam amigos. 

“É importante sempre estar com os nossos. E o mais importante é ver quantas pessoas vêm se desconstruindo e aceitando as diferenças do outro, corpos heteronormativos respeitando corpos trans e afeminados. Esse é o grande diferencial da Crash. Aqui não precisamos de seguranças, nós mesmas nos acolhemos e cuidamos umas das outras”, ressalta Guxtrava. 

Solta o Bass

A Solta o Bass também surgiu de um elo de companheirismo e cuidado. Foi depois de uma aula, andando pela avenida Paulista, que as DJs Paula Fayá e Lorrany pensaram em um projeto e o colocaram em prática.  No dia 15 de julho de 2018 aconteceu a primeira edição do evento, idealizado para apoiar e apresentar a cena de DJs periféricos de São Paulo. 

Depois de algumas edições de sucesso, a dupla  expandiu as atrações da festa, que atualmente conta com pocket shows, espetáculos de dança e outras intervenções artísticas, além de parcerias com coletivos, como a Crash Party. 

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Paula e Lorrany afirmam que, por conta da verba, a iniciativa ainda não tem uma periodicidade definida, mas, em 2020, esperam realizá-la mensalmente. 

“Sabemos como é difícil conseguir grana para ir a eventos em outros lugares. Por isso, a Solta o Bass é necessária. Nós optamos por fazê-la em locais periféricos e, muitas vezes, em estabelecimentos que não cobram entrada. Queremos que todos ocupem esse evento, que todos os artistas que estão começando se apresentem", diz Paula. "Estamos impulsionando a cena local. Quando fazemos a festa em fábricas de cultura, muitas crianças participam e se inspiram nas apresentações. Queremos disseminar essa cultura e criar um ambiente bom para networking também”, completa Lorrany. 

Baile da UDG

Um lugar onde grande parte dos promotores de eventos, MCs, funkeiros e artistas LGBTQ+ se reúnem é o Baile da UDG. Quando Isac Oliveira pensou em fazer uma festa, a ideia era pequena. Tão despretensiosa que o lugar escolhido para sediar o baile foi o quintal de sua casa, no Parque Fernanda, no Capão Redondo

A intenção era comemorar o aniversário da produtora de audiovisual Underground Filmes e levantar dinheiro para comprar equipamento profissional para a equipe, formada por ele, Breno Shinn, Eunice, Iuri, Jaque Loyal, Larissa Estevam e Marina Esodrevo. Mas a festa tomou uma proporção não esperada e teve que ser transferida para um lugar maior, como o Bloco do Beco, no Jardim Ibirapuera. 

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Isac diz que o baile, que ocorre há dois anos, a cada dois meses, sempre teve um motivo especial para acontecer. Seja para celebrar os trabalhos da produtora que  promove conteúdos audiovisuais tendo as periferias como cenário, ou para comemorar outras iniciativas transformadoras. Caso da terceira edição, que homenageou os dois anos do desfile da marca de roupas Loyal, marca que aposta na autoaceitação e coloca corpos fora do padrão nas passarelas.

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“Essas festas são muito importantes para nós, da periferia. Deixamos de ir ao centro e passamos a conhecer um outro lado do lugar onde vivemos. Deixamos de consumir o que vinha somente ‘da ponte pra lá’. O que está acontecendo no Guarapiranga, Jardim São Luís, aqui no Parque Fernanda é demais. Estamos nos mobilizando de um jeito que nunca tinha acontecido. A periferia tem direito a lazer e cultura e está criando isso.”

E tem mais: confira o mapeamento que a Trip fez com organizações e eventos que ocorrem na periferia de São Paulo e que estão transformando a cena local. Clique no mapa e navegue para descobrir a programação de cada um deles. 

 

 

 

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