O som da DJ e produtora BADSISTA, que mistura funk com música eletrônica, saiu de Itaquera para ganhar as pistas no Brasil e no mundo
“Entra aí, fica à vontade. Só não ofereço um beckinho porque tô sem”, diz Rafaela Andrade, abrindo espaço no sofá de sua casa, em Itaquera, na zona leste de São Paulo. Ela mora em um sobrado que abriga várias casinhas, tipo de organização comum nas periferias, onde muitas histórias e sons se misturam. "Se tão brigando ali na casa da minha vó, eu sei. Se o vizinho tá dando um churrasco também vou ouvir. É outro tipo de relação na quebrada, é outra brisa. Você tem que aprender a viver muito perto", explica.
No canto da sala fica o estúdio improvisado, com notebook, teclado e fones de ouvido agrupados em cima de uma escrivaninha. “A gente parcela, arranja um jeito louco de comprar as coisas e, mesmo assim, não é um equipamento de alta qualidade. Às vezes eu penso que queria mixar melhor, mas quando toco bate do mesmo jeito", explica, assumindo o jeito irreverente de fazer música: "Essa é a estética do bagulho e é isso. Não vou ficar me desculpando".
“É preciso tirar a música desse lugar elitizado e jogar pro nosso contexto”
BADSISTA, DJ e produtora musical
Muito dessa estética é inspirada na criatividade e energia do funk de quebrada, que ela mistura com batidas de house, techno e o que mais couber no flow. “Eu pago pau pra galera do funk, é muito único. Não é sobre a música ter alta qualidade, um vocal bem gravado. É sobre como a música vai tocar no fluxo, se a galera vai dançar, saber a letra. É preciso tirar a música desse lugar elitizado e jogar pro nosso contexto”, dispara.
Rafaela, que se apresenta como BADSISTA, começou a trabalhar como produtora musical e DJ em 2013 e, desde então, vem percorrendo festivais e rádios de países como Inglaterra, Alemanha, México e Argentina, além de produzir para artistas como Lei Di Dai, Jaloo e Linn da Quebrada (para qual assinou a produção e direção musical do disco Pajubá, lançado em 2017). “Na madruga”, seu single de maior sucesso, lançado em 2015, ganhou remixes do DJ norte-americano Sango e do português Branko, conhecido por integrar o Buraka Som Sistema. Aos 25 anos, levou o prêmio de melhor produtora musical no WME – Women’s Music Event Awards, de 2018.
Ela foi convidada para compor a trilha sonora de Transmissão, programa de entrevistas comandado por Linn da Quebrada e Jup do Bairro, previsto para estrear no Canal Brasil no dia 11 junho, que terá personalidades como Letrux, Paola Carosella, Karol Conká e Mc Carol. Também vem trabalhando em seu primeiro álbum, ainda sem previsão de lançamento.
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No corre
Rafaela é a caçula de dois irmãos e, inclusive, teve a ideia de se apresentar como BADSISTA (que significa “irmã má”, em inglês) depois de uma briga com um deles. Como o pai faleceu quando era criança, foi criada pela mãe, que incentivou a mexer com música desde cedo. “Minha mãe me ajudava muito, caçava uns cursos de 10 reais por mês pra eu fazer. Aprendi a tocar teclado e violão bem nova. Sempre foi ela quem proveu o dinheiro e hoje em dia sou eu quem paga as coisas dela, é muito legal ver que esse quadro mudou”, conta.
“Eu já tocava e gravava os instrumentos, mas não sabia fazer os beats. Aprendi na faculdade no meio de um monte de boy”
BADSISTA, DJ e produtora musical
Na adolescência, teve uma banda de rock underground chamada CMYK e tocou violão em bares para tirar uma grana. A música eletrônica apareceu depois que ela conseguiu uma bolsa de estudos no curso de produção fonográfica de uma universidade privada de São Paulo. “Foi quando eu me dei conta de que eu podia fazer tudo no computador. Eu já tocava e gravava os instrumentos, mas não sabia fazer os beats. Aprendi na faculdade no meio de um monte de boy”, relembra. Ela começou produzindo beats de rap, mas percebeu que não era bem esse caminho que buscava: “Fazer rap é muito complicado e eu precisava ganhar dinheiro. A galera fica ‘rap é compromisso, não é viagem’, aí você vai lá tocar e o cara não te paga nada, nem a passagem.”
Quando começou a compor os primeiros beats, ela buscou inspiração no trabalho da norte-americana Missy Elliott, uma das poucas produtoras mulheres que conseguiram destaque na indústria musical, principalmente quando se fala de rap. “No começo, meu sonho era ser como ela. A gata é muito ‘prafrentex’. Você ouve o bagulho que ela fez 15, 20 anos atrás e fica passada”, comenta a produtora que hoje é referência para garotas que querem seguir a carreira. “Em São Paulo, nessa bolha, eu não tinha essa pessoa para eu ver e falar ‘nossa, vou fazer que nem ela’, saca? Então eu fui ser essa pessoa, mas o bagulho é maior do que eu, eu sou só uma peça pra cena continuar”, explica.
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Abrindo caminhos
Desde 2017, ela busca promover o trabalho das minas DJs da periferia à frente do coletivo Bandida, composto por seis mulheres, que toca em festas e oferece oficinas gratuitas de discotecagem em São Paulo. “Eu sempre via as minas passando o maior perrengue, os caras enrolando horrores para pagar 100 reais, saca. Aí eu falei ‘vamos fazer um bagulho só de mina e é isso’, conta. “Eu sempre falo ‘vamos estudar, gatas, vamos estudar. Isso também é nosso, não é só deles.”
“Eu sempre falo ‘vamos estudar, gatas, vamos estudar. Isso também é nosso, não é só deles”
BADSISTA, DJ e produtora musical
Ela faz questão de lembrar que as parcerias com mulheres e artistas do universo LGBT foram essenciais para fincar seu nome na cena e conquistar as pistas pelo mundo. Uma das responsáveis por colocar BADSISTA no mapa da produção musical foi Lei Di Dai, a rainha do dancehall, para quem ela criou alguns beats, em meados de 2015. “Graças a ela eu conheci muita gente que só sacava de longe. Ela atua na noite de São Paulo há muito tempo e praticamente falou ‘pode entrar’ no rolê”, conta. Lei Di Dai participa do primeiro EP de BADSISTA (que leva seu nome), lançado em 2016, na faixa de abertura, “Curtição 420”.
Trabalhar ao lado de Linn da Quebrada e artistas que se apresentam com ela, como Jup do Bairro e DJ Pininga, também foi uma experiência que transformou sua carreira e sua forma de estar no mundo enquanto mulher lésbica. “Meus limites sobre o que eu poderia ou não fazer ou até vestir foram se amplificando. Pra mulheres trans, andar na rua já é uma transgressão, mas elas só querem ser elas mesmas, tomar uma cerveja, mostrar que também são frágeis. Comecei a ter outra perspectiva sobre a vida.”
Créditos
Imagem principal: Tauana Sofia/Divulgação