Consultoria de imagem na quebrada

por Dandara Fonseca

A exposição ”Transmutações do Feminino” mostra o resultado de um trabalho de empoderamento e estilo feito com mulheres do bairro do Capão Redondo

Acabar com a ideia de que moda está diretamente relacionada à alta costura e que o serviço de consultoria de imagem é caro e feito apenas para famosos. É esse o objetivo do projeto "Transmutações do Feminino", desenvolvido pela designer de moda paulista Talita de Lira. Como trabalho de conclusão de curso da pós-graduação em Criação de Imagem e Styling de Moda do Senac, ela deu aulas de consultoria de imagem a mulheres de 17 a 62 anos do bairro do Capão Redondo, periferia sudoeste de São Paulo, durante seis meses. A experiência, que teve como última etapa um editorial, deu origem à exposição imagética "Transmutações do Feminino", que começa neste domingo (8), às 13h, na Fábrica de Criatividade do Capão Redondo, e fica em cartaz até o dia 8 de fevereiro de 2020.

Talita, que desde criança teve contato com moda por causa do bazar de sua mãe, conta que a ideia surgiu principalmente por ser bolsista. "Sempre pensei que  queria fazer um trabalho no qual pudesse ajudar as pessoas com o que eu sei como profissional", conta a paulista nascida na periferia da zona leste da cidade. Foi então que ela viu, no Instagram, uma postagem do Treino na Laje, projeto de Sophia Bisilliat que leva atividades físicas e recreativas, como o yoga, para os moradores do bairro do Capão. "A Talita me ligou e eu nem sabia direito o que era consultoria de moda. Mas quando perguntei para as meninas do Treino se elas queriam participar, todas ficaram muito entusiasmadas", lembra Sophia. 

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Outro fator que motivou a designer de moda foi o processo de mudança de vida que aconteceu com ela mesma, alguns anos antes. Além de começar a realizar coisas sozinhas, como viagens, ela criou coragem para cortar o cabelo da forma que desejava há muito tempo e se desfazer de quase 90% de seu guarda-roupa. "Havia uma reciprocidade por também ser mulher, da periferia, ter que lutar pelos meus objetivos e ter que me sentir segura com a minha imagem", conta.

Após montar o grupo, o projeto foi dividido em três partes: na primeira, as nove mulheres que participaram do projeto (Dilma Costa, Diolanda Lopes, Larissa Barboza, Lucineia Casimiro, Tereza Cerqueira, Sophia Bisilliat, Thaylane Rocha, Viviane Santos e Zilmara Rocha) se reuniram em grupo para que falassem sobre si mesmas, seus gostos e desejos. "Normalmente, a consultoria é feita de forma individual, mas eu pensei que em grupo elas poderiam ter dúvidas iguais, se ver uma na outra", explica a design. "Além disso, traz uma pegada mais da periferia. A gente gosta de sentar com as amigas e tomar um cafezinho", brinca.

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Uma questão que Talita percebeu na maioria das mulheres é a dificuldade que elas tinham de se olhar no espelho. "Isso acontecia principalmente por não gostarem de uma parte do corpo, não se sentirem bem", conta. Por isso, antes de trabalhar com looks e com a moda diretamente, foi preciso aumentar a autoestima das participantes, fazer com que elas começassem a gostar de si mesmas e se sentissem mais empoderadas. Isso foi fundamental para que muitas conseguissem não ter vergonha do seu estilo e até mesmo se sentissem confortáveis a fazer mudanças no visual, como cortar o cabelo.

A revitalização do guarda-roupa, segunda parte do processo, aconteceu individualmente, na casa de cada uma das mulheres. "Depois que eu tinha todas as respostas delas em questão de paleta de cores, tipo físico e estilo, comecei a pensar nos looks. Porque, por mais que elas estejam no mesmo ambiente, às vezes trabalhando com a mesma coisa, elas têm gostos diferentes, porque têm trajetórias, narrativas diferentes", lembra Talita. No entanto, ao contrário do que acontece na maioria das vezes nessa parte da consultoria, a ideia não era comprar, mas sim aproveitar o que elas já tinham no guarda roupa. "Independentemente de classe social, as pessoas compram compulsivamente. Então, víamos a peça que elas queriam doar, reformar."

Para mostrar o resultado final e a potência que vinha dessas mulheres, Talita decidiu que faria um editorial. O cenário escolhido não poderia ser outro: as vielas e ruas do Capão Redondo. "Se elas conheciam um grafite, a gente pegava a câmera no sol escaldante e mandava ver, no meio da rua", lembra a designer que, a essa altura, não estava mais sozinha. A fotógrafa Tais F. Bêrtollim e as jornalistas Marjorie Duran e Ary Valgas ficaram sabendo do projeto e se ofereceram para colaborar. "Se era mulher e estava querendo acrescentar, somar, eu falava que podia chegar", conta Talita. Além delas, Natie Cortez, que foi uma das maquiadoras do filme "Bacurau", também se dispôs a ajudar.

O processo precisou trabalhar também a forma com que as mulheres se sentiam em frente às câmeras, já que nenhuma tinha passado por algo parecido. "Tinham meninas que sabiam fazer umas poses, davam ideias, mas não conseguia sorrir. Então, naquele momento, além de cuidar da parte de stylist, eu tinha que ir conversando com elas, animando", conta. Os estilos de fotos  foram dois: o fashion e o sensual. "Nós trabalhamos esse aspecto porque a consultoria é de dentro para fora. E a mulher gosta de se sentir bem com seu corpo."

Apesar de ter em mente desde o começo que o final do "Transmutações do Feminino" seria uma exposição, Talita não sabia como conseguiria o dinheiro. Foi então que a fotógrafa Tais deu a ideia de fazer um crowdfunding online. "A campanha estava indo bem devagar até que, na última semana, a Jaqueline Bentes, que nos ajudou na produção, nos apresentou às Marabrilhosas, grupo de percussão que estará na abertura da exposição. Elas se juntaram ao projeto e a partir daí muita gente começou a colaborar", conta. Depois disso, o convite da Fábrica de Criatividade do Capão Redondo para que a exposição acontecesse lá chegou em poucos dias. 

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Talita conta que, para ela, é difícil mensurar em palavras tudo o que os seis meses representaram. "No início, elas me chamavam de menina da moda e, depois do processo, elas falavam muito para mim: 'eu me sinto um mulherão'; 'eu gosto do meu corpo do jeito que ele é'; 'eu estou melhor agora, estou mais feliz'. Não dá pra mensurar o que eu sinto ao saber que elas estão felizes e que, a partir de então, não tem o término, é só continuação." Sophia também comenta sobre a força que o projeto trouxe: "Com a yoga, o corpo das mulheres já começou a se modificar. A consultoria de moda só acrescentou para a autoestima delas."

Um dos depoimentos que mais emocionou Talita foi o de Tereza, de 62 anos, que antes das atividades do Treino na Laje fazia tratamento para a depressão. "Ela tinha vergonha de ficar entre jovens, mas gostava de se vestir como eles. Dizer para ela que ela podia se vestir do jeito que ela quisesse, que ela era super estilosa, foi um divisor de águas."

Para os próximos passos, Talita deseja conseguir realizar exposições maiores, em outras instituições, além de transformar o projeto em um fotolivro. "Se surgirem mais mulheres interessadas em passar pela transmutação, provavelmente a gente conseguirá fazer mais editoriais e consultorias, pegar esse material, e jogar para o mundão", explica. "A gente esquece que a moda também acontece na rua, nas periferias, nos bailes. E a ideia é essa, mostrar que é possível ter acesso a serviços de consultoria, saber sobre moda, e virar uma inspiração tanto para você quanto para outras pessoas."

Créditos

Imagem principal: Divulgação

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