"Bacurau é sobre o meu êxtase em ir ao cinema"

por Bruna Bittencourt

Kleber Mendonça Filho fala de seu novo filme, sobre como recebe as críticas, Ancine, censura, seu próximo trabalho e a parceria com a esposa

Em seu terceiro longa-metragem, Kleber Mendonça Filho deixou o Recife de O som ao redor (2012) e Aquarius (2016) e partiu rumo ao sertão nordestino. É lá onde está Bacurau, o povoado que dá nome ao filme e que, após a morte da matriarca local, some do mapa.

Com o filme, o diretor também deixa o drama social de seus filmes anteriores e parte para o cinema de aventura, sem deixar de fazer algumas críticas e provocações. Se em seus dois longas anteriores ele falou sobre o Brasil a partir de uma rua ou de um prédio, em Bacurau – em que divide pela primeira vez a direção com Juliano Dornelles –, Kleber mistura drogas lisérgicas, drones, assassinatos, um prefeito corrupto e ecos do cangaço para também tratar de uma rixa entre Norte e Sul.

"A gente teve a ideia [de Bacurau] no Festival de Brasília, em 2009. Vimos uma série de filmes que começaram a nos fazer pensar sobre algumas questões relacionadas à forma como pessoas de lugares distantes são retratadas no cinema brasileiro, inclusive por filmes muito bem intencionados. Tinha ainda uma carga forte de urbanidade contra gente do interior, pessoas simples. Isso foi a fagulha inicial para Bacurau", diz o diretor sobre o filme que levou o prêmio do júri no Festival de Cannes em maio passado e estreia no próximo dia 29 de agosto. 

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“Bacurau é muito um filme sobre o meu êxtase de ir ao cinema quando eu o descobri, adolescente e um jovem adulto”
Kleber Mendonça Filho

Diferentemente de seus longas anteriores, Bacurau traz em seus créditos finais uma menção de quantos empregos o longa gerou, em um momento em que o presidente vê com desconfiança o Ancine e o cinema nacional.  

Ao mesmo tempo em que segue com sua carreira de cineasta, Kleber – que por muitos anos foi crítico de cinema – é curador de cinema do Instituto Moreira Salles. Também prepara um documentário sobre as extintas salas de cinema de Recife, um tema que aparece em sua obra desde seus filmes de graduação. “Fui a última geração que conseguiu viver ainda o modelo antigo das salas de cinema." Na entrevista a seguir, ele fala sobre seu novo filme, censura, crítica e a parceria com sua esposa, produtora de seus filmes.

Trip. Você exerceu crítica de cinema por muitos anos e fez um documentário sobre isso. Como você recebe uma crítica do seu filme hoje? Esses anos influenciam na hora em que você lê uma resenha do seu filme?
Kleber Mendonça Filho. Tem duas maneiras de responder essa pergunta, que é muito boa, mas realmente não sei qual é a maneira correta. Em primeiro lugar, escrevi durante muitos anos e isso me deu um treinamento para entender a lógica de textos, então tenho um treinamento técnico. Mas tem outra coisa que descobri na época em que eu escrevia, percebi que os [cineastas] mais tristes e raivosos com a crítica eram os mais maltratados. Eu lido bem com a crítica. Se você fizer uma contabilidade do que foi escrito, não só no Brasil, em relação aos meus filmes, em geral eles são bem recebidos. Ainda não tive um filme que foi incompreendido, o que acho que deve gerar uma sensação muito forte de frustração e dor. Você precisa ter uma pele grossa, porque se coloca muito no filme. Imagina o Festival de Cannes: é um pouco como um Coliseu romano, o mundo inteiro está lá, de programadores a críticos, atores, público. Todo mundo está lá querendo ver um filme, não necessariamente querendo ver aquele filme, ninguém vai ter papas na língua. Então, você tem que estar muito preparado para o que pode acontecer com o seu filme. As duas experiências que tive em Cannes foram maravilhosas, mas como crítico já vi destruições que foram bem duras, imagino, para os realizadores. E isso faz parte do jogo.

Em Bacurau você se afasta do realismo social de O Som ao Redor e Aquarius e envereda pelo cinema de aventura. Fazendo o papel de crítico que você já foi, qual é o denominador comum desses três filmes? Acho que você talvez esteja em um lugar melhor para falar sobre isso do que eu, mas posso te dizer que me sinto como se sempre estivesse fazendo o mesmo filme. Acho que Bacurau parece diferente, porque ele se passa no sertão e tem cactos, cavalos e armas de fogo em alguns momentos. Aquarius poderia ser uma adaptação de um forte apache, ou seja, o apartamento é um forte apache, aquela ideia bem preconceituosa dos índios do lado de fora tentando atacar e o exército americano tentando se defender, bem clássico americano. Bacurau é uma outra situação de ataque. Mas eu acho que cada filme tem um tom diferente. O Aquarius é muito emotivo, de uma certa forma. Ele é muito sobre a minha mãe e as pessoas, mesmo sem saber, perceberam isso. E Bacurau é muito um filme sobre o meu êxtase de ir ao cinema quando eu o descobri, adolescente e um jovem adulto; está muito associado a descobrir filmes nas últimas grandes salas de cinema que o Recife teve.

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“Existem filmes do mundo inteiro, mas, por questões de mercado, as pessoas terminam vendo só um tipo de filme”
Kleber Mendonça Filho

Quando nasceu a ideia de você dirigir um filme com o Juliano? E como foi pela primeira vez dividir a direção? Foi verdadeiramente incrível. Juliano é um cara incrível, um grande amigo já há 15 anos. Começou com Eletrodoméstica [curta de 2005], em que Juliano foi o diretor de arte. A gente teve a ideia [de Bacurau] no Festival de Brasília em 2009, com a première de Recife frio [curta de 2009 dirigido por Kleber]. A gente viu uma série de filmes que começaram a nos fazer pensar sobre algumas questões relacionadas à forma como pessoas de lugares distantes são retratadas no cinema brasileiro, inclusive por filmes muito bem-intencionados. Tinha ainda uma carga forte de urbanidade contra gente do interior, pessoas simples. Isso foi a fagulha inicial para Bacurau. Foi muito natural, aquela situação em que você está vendo um filme, começa a cochichar com o outro e a pessoa está pensando a mesma coisa. Nunca foi uma questão de quem vai dirigir o filme, sempre foi “a gente vai fazer esse filme juntos”. Admito que, antes da filmagem no ano passado, falei para Emilie [Lesclaux, produtora de Bacurau e esposa de Kleber] que eu ficava preocupado da realidade do set, de quando você está lá tendo que tomar decisões na frente de 150 pessoas, se a gente ia funcionar bem como dupla, mas foi incrível. 

Você coordenou por quase duas décadas a Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, e há quase três anos é curador de cinema do Instituto Moreira Salles. Também é, em seu Instagram, um observador do tipo de filme que hoje ocupa as salas de cinema. Como você vê o seu papel de curador em relação ao de cineasta? São complementares? Não acho que eles são complementares, eles têm paralelos. Este é um momento muito especial, acho. A tecnologia chegou a um nível que é possível você ter na sua casa algo melhor em som e imagem do que muitas salas profissionais de cinema. Hoje a gente também tem uma super disponibilidade de tudo – ou a ilusão de que tem isso. Esses são dois grandes desafios para quem trabalha com a programação de cinema. Mas acho que o que ainda me move, e a muitos colegas brasileiros e estrangeiros, é mostrar que o mundo é muito mais complexo do que o mercado quer que você acredite. Quando você é um curador, trabalha com diversidade e exibe filmes da Ucrânia, dos Estados Unidos, de Minas Gerais. Mas, no interior da Bahia, há 12 salas e todas exibindo um único filme. Acho isso um problema. Existem leis para evitar que isso aconteça. As pessoas e o comportamento humano são diferentes, a sociedade precisa respeitar isso e o cinema aborda essa diversidade. Existem filmes do mundo inteiro, mas, por questões de mercado, as pessoas terminam vendo só um tipo de filme e é aí que alguém como eu e os meus colegas curadores e programadores entram para tentar fazer uma diferença. 

Rodrigo Teixeira, produtor de filmes como O cheiro do ralo e Me chame pelo seu nome, defendeu recentemente em uma entrevista à Folha de S.Paulo que é preciso dialogar com o presidente, em um momento em que a Ancine corre risco e existe uma possibilidade de censura aos filmes. Você acredita no diálogo? É claro que acredito em diálogo, mas dentro da ideia de uma sociedade democrática. Não acho que tenho que argumentar, em 2019, em um país que é uma democracia e onde a Constituição aboliu a censura em 1988, que o meu filme precisa ter uma cena ou outra. Acredito em diálogo, sim, mas ele não pode começar a normalizar uma situação que não é correta do ponto de vista democrático. O cinema é um trabalho como qualquer outro e existem hoje centenas de milhares de pessoas trabalhando no setor do audiovisual do Brasil. Então, imagine se eu, como artista, visse que o novo governo quer acabar com a indústria farmacêutica brasileira, por exemplo, porque não gosta de remédio. É difícil de compreender como é possível existir uma política de destruição desse tipo de trabalho.

O cineasta Marcelo Gomes disse à Trip recentemente que séries são elementos de diversão e o cinema segue sendo o espaço da reflexão, quando você está ali, no escuro, assistindo a um filme. Você acha que uma série pode provocar reflexão e se vê dirigindo outros formatos? Acredito que uma série pode te deixar com a sensação de que acabou de ver um grande filme e um filme visto no cinema pode te deixar com a sensação que você acabou de ver um programa de televisão horroroso. Acho que Bacurau é um filme de entretenimento, mas você pode fazer várias coisas com os bons filmes e os bons livros, inclusive rasgar e fazer um avião de papel. Está tudo certo. Sou um grande defensor da experiência cinematográfica, estou até desenvolvendo um filme que é sobre a sala de cinema, a partir da arqueologia das salas extintas do centro de Recife. 

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“Acredito em diálogo, sim, mas ele não pode começar a normalizar uma situação que não é correta do ponto de vista democrático”
Kleber Mendonça Filho

Os seus documentários da graduação na faculdade de jornalismo falam sobre isso, né? Exatamente, eu fico repetindo esse tema. Inclusive em Aquarius tem uma cena, em O Som ao Redor outra. Há uns quatro anos atrás, assisti a um filme da Bárbara Wagner que teve agora na Bienal de Veneza, o Swingueira. Estava saindo de casa e um amigo meu disse: "Eu queria que você visse isso aqui". Me emocionei em dez minutos de filme, assisti no iPhone, não vi no cinema, num monitor super grande e achei incrível. Dito isso, não quero que vejam Bacurau no iPhone, mas eu acho que sim, o impacto de algo bom pode vir no Kindle ou numa edição especial no papel. 

Sua esposa é a produtora dos seus filmes. Vocês fazem algum tipo de separação, existe limites de não levar problemas da produção para casa, por exemplo? Estranhamente não, a gente não é tão pragmático, a gente está sempre falando de cinema e, às vezes, muda e fala de outra coisa. Mas a grande questão é que a Emilie é uma cinéfila e uma cinéfila francesa, não quero que pareça algo mais, mas os franceses têm uma relação muito particular com o cinema, sem querer desmerecer as outras cinefilias. Ela é a primeira a ler a sinopse, a primeira a ler as primeiras 15 páginas de um roteiro e me dá uma reação. Tem sido uma parceria muito boa que se mistura com a nossa vida pessoal e tem funcionado bem. Não há uma separação do tipo “até às 16h é cinema e depois...”.

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