Emicida conversa com Ronaldo Fraga: Amar é essencial

por Redação

O rapper bate um papo potente com o estilista sobre sua relação com a terra, a história do Brasil, amor, diálogo e resistência

Um dos nomes mais importantes do rap nacional, o músico e empreendedor Emicida é uma referência de peso na cultura pop e uma das vozes mais importantes para promover a igualdade racial no país. Ele já lançou dois livros infantis e também é dono da Lab Fantasma, hub de entretenimento que funciona como gravadora, canal de TV, loja de roupas, entre outras tantas iniciativas. Em maio deste ano, Emicida lançou uma nova fase do projeto AmarElo, que nasceu como um disco e se transformou em uma ação multiplataforma que promove discussões sobre transformação pessoal, autocuidado e saúde mental.

De sua casa em São Paulo, Emicida bateu um papo potente com o estilista e amigo Ronaldo Fraga no programa Prêmio Trip Transformadores, que foi ao ar pela TV Cultura em junho, mas que agora você pode curtir também em áudio no Trip FM, disponível no player abaixo ou no Spotify.

Na conversa, o cantor fala sobre sua relação com a terra, a história do Brasil e a importância do diálogo na construção de um mundo justo e coletivo: "A pergunta que me acompanha em toda a vida é: onde a gente se encontra e constrói uma realidade que seja melhor para todo mundo?"

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Ronaldo Fraga. Em uma entrevista, você disse que a sua influência vinha de lugares diferentes. Da igreja evangélica, que você escutava em casa, ao candomblé; do universo do hip hop aos repentistas nordestinos. Quando vi isso, eu falei: esse cara é o brasileiro, mestiço em tudo. E agora, o rapper mais famoso do Brasil se revela um dono de casa, está fazendo yoga, fazendo seu próprio queijo, cuidando da horta. O menino de 15 anos atrás entenderia o homem que você é hoje?

Emicida. Nesse momento em que estamos vivendo, não é só importante, mas urgente que a gente parta do básico. E o básico é entender que somos um animal como qualquer outro, e que a gente precisa se relacionar harmonicamente com a terra. Fazer a manutenção, cuidar dela, tirar meu alimento. Compartilhar sobre isso é minha maneira de dizer para as pessoas que há coisas muito simples que constituem nossa existência, e que a gente não pode se desconectar delas. Tem um poema do Mário Quintana em que ele fala que tem uma foto dele quando era criança. Às vezes, quando ele olha nos olhos daquele menino, ele vira o retrato de costas, porque tem medo do que o menino está pensando dele hoje. Eu acho que aquele menino que me olha do retrato teria muita alegria de ver essa possibilidade de ser humano. 

Quando estourou, você descortinou para o Brasil a realidade de um lugar que todo mundo sabe que existe, mas todo mundo finge que não. Eu e você viemos de bairros pobres, perdemos os pais muito cedo, e o desenho era a nossa forma de nos colocar no mundo. Quando eu vi você falando sobre desenho, eu pensei: "Somos da mesma matilha". Mas teve um outro ponto, que aí você foi no fundo do coração, quando você diz que seu mentor intelectual era o mesmo que o meu, que é Mário de Andrade. Eu acho Mário de Andrade uma figura cara ao Brasil que estamos vivendo. Qual face do Mário que o coloca como um mentor intelectual para você? A característica que mais me fascina no Mário de Andrade é a busca. É até redundante dizer isso hoje, mas a história do Brasil que a gente entende como oficial é muito violenta, muito agressiva, ela soterrou várias histórias. Acho que o Mário se provocou a produzir, a tentar positivar um encontro, e esse encontro é uma realidade. Assim como é um completo equívoco tentar redefinir o Brasil, com toda sua riqueza, pela perspectiva do europeu, a gente também não pode tentar refazer essa história desconsiderando esse componente. O Mário não só sonhou, se arriscou a contar e conhecer o Brasil com as limitações e as liberdades da época, como também se aventurou em tentar construir o Brasil que ele sonhava. 

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Quintana, Mário de Andrade, vamos agora para Clarice Lispector. Ela disse em Descoberta do Mundo que "amar os outros é a única salvação que conheço. Ninguém estará perdido se der amor em troca". E você realizou um projeto que, no futuro, quando formos entender essa época, com certeza será citado. É um projeto que tem amar no próprio nome, o AmarElo. E ele foi desenvolvido justamente em um momento em que o ódio é o prato principal que está sendo servido na mesa dos brasileiros. A gente já sabe que só amar ou falar de amor já é um ato de transgressão, mas como é isso para você? Eu acho que, em outros tempos da nossa história, amar foi importante. Hoje, amar é essencial. A gente precisa partir disso se quisermos construir uma ponte. Há algum tempo temos sido sequestrados pelo ódio com frequência. Observando a natureza do Brasil, das decisões que acontecem aqui, não houve muito local para o amor florescer. E abrir espaço para que isso aconteça é abrir espaço para que nasça uma ponte entre eu e você.  Em geral, colocamos o amor nessa perspectiva individualista, romântica, afetivo-sexual. O amor é colocado nesse lugar onde parece que ele não tem força para construir coisas coletivas, do ponto de vista de uma sociedade. Mas a verdade é que o amor é a única coisa que me faz observar você e pensar: "O Ronaldo é um ser como eu". É o amor de um indivíduo para outro, de um ser humano para outro. Eu preciso produzir uma sociedade onde a gente vença coletivamente. E isso é fazer uma política que seja pautada no amor. Uma política pública de cuidado coletivo é uma fantasia que o amor veste quando ele quer ficar visível ao olho nu. É nisso que eu acredito. 

Nunca estivemos tão expostos. Não tem mais como nos escondermos, ter uma imagem pública de um jeito e uma imagem privada de outro. Eu acho que está virando uma coisa só e isso é muito bom. Mas vivemos em bolhas, vivemos a cultura do cancelamento e, enquanto na bolha, falamos para os nossos. Como você vê isso, de furar as bolhas e estabelecer diálogo com outras frentes? Uma das características mais bacanas que a vida me deu, e isso não é uma característica com a qual eu nasci, eu fui aprendendo, é que eu sei com qual país eu sonho, mas eu sei em qual país eu vivo. É quase um super poder ser um sonhador e não confundir essas duas coisas. É urgente que a gente pare de trocar baldes e resolva a goteira que está no nosso telhado. Porque o que aconteceu é que o Brasil encenou conciliações que ele não produziu realmente nas ruas. A gente se orgulha do desenvolvimento de São Paulo, do desenvolvimento do Sudeste, do desenvolvimento do Brasil, só que o momento, meu mano, é de envolvimento. O Brasil não se relaciona com o lugar no qual ele existe. Não é o momento de a gente se desenvolver, é o momento de a gente se envolver com as causas. Porque as questões culturais, as questões políticas, embora pareçam intransponíveis nesse momento, nem são a pergunta de um milhão de dólares do nosso tempo. A pergunta de um milhão de dólares do nosso tempo é: o que a gente vai fazer com as questões climáticas quando a gente se entender entre nós?

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