Jacira Roque de Oliveira, 49, mãe do rapper Emicida, nunca se conformou com a máxima de que “preto e pobre não tem direito” e foi à luta para mudar a sua vida e a de seus quatro filhos
Eu nasci na periferia de São Paulo, no Jardim Fontales, e um dos maiores traumas da minha vida foi a escola, onde me ensinaram que, por ser negra, eu era pior que os outros. Nunca soube o que queria ser quando crescesse, porque não existia essa possibilidade de escolha. Ou você casava, para ser dependente de marido, ou era empregada doméstica, para ser brinquedo de patrão. Você sabe que muitos garotos brancos começaram a vida sexual assim, não? Eu ouvia essas coisas das mulheres adultas – na minha infância, como não tinha água encanada, as mulheres ficavam juntas, conversando, lavando roupa. Acho que foi ouvindo essas conversas que comecei a entender o que era feminismo. Eram muitas histórias de violência doméstica, parecia uma coisa normal. Na minha família também era assim: meu pai, alcoólatra, batia muito na minha mãe, e ela, para descontar, me batia. Assim é a corrente de violência da periferia: o patrão briga com o empregado, que briga com a mulher, que bate no filho, que briga com o cachorro.
Não sabia o que era racismo até ter uns 7 anos, quando fui para a escola. Queria muito colocar um sapato Vulcabras e um uniforme, mas não foi o que eu imaginava. Era uma escola de caridade de freiras e já no primeiro dia elas começaram a nos separar por cor. Assim eu descobri que eu era negra. De um lado ficaram as crianças de cabelo ruim e do outro, as de cabelo bom. Mas, espera aí, era meu cabelo, não sabia que ele era ruim! Para completar, as negras apanhavam muito. Mesmo. As freiras nos davam banho de violeta genciana dizendo que era para nos limpar, pois éramos sujas. Hoje sei que era para esconder as marcas das surras. Um dia eu mostrei as marcas para a minha mãe, que foi tirar satisfação na escola. Na hora, uma moça me levou para uma sala e disse que, se eu falasse a verdade, iam me matar. Era uma criança de 7 anos e acreditei. Desmenti. Quando minha mãe foi embora, o mundo se acabou. Me trancaram em uma outra sala e não sei o que aconteceu lá. Desmaiei. Acordei internada no Hospital Santa Marcelina, onde uma médica dizia que eu não podia ver uma freira que passava mal.
Voltei para casa ainda muito doente, fiquei meses de cama. Depois que fiquei boa, me levaram para outra escola, onde também éramos separadas pela cor. As negras tinham que varrer todo o pátio. Eu apanhava em casa e na escola – é assim que as mulheres negras aprendem a apanhar dos maridos e ficar caladas. Aliás, essa foi minha primeira atuação política: juntar mulheres do Jardim Fontales para dizer que apanhar do marido não era normal. Você é criada sabendo que não tem direito a nada porque é preto e pobre, mas nunca me conformei.
"Você é criada sabendo que não tem direito a nada porque é preto e pobre, mas nunca me conformei"
Quando tinha 10 anos, arrumei um emprego em uma fábrica de roupas. O dono obrigava as meninas a provar as camisetas feitas na fábrica na frente dele. Era abuso sexual mesmo. Ele pagava por isso. Quando tentou fazer o mesmo comigo, briguei com ele de tapa. Falei para minha mãe e ela me bateu de novo. Eu e duas amigas tivemos uma ideia: pedir esmola. Eu saía de manhã com a minha marmita e passava o dia pedindo esmola. No fim do mês, eu dava para a minha mãe o mesmo dinheiro que ganhava na fábrica, então estávamos acertadas.
Com 12 anos, consegui trabalho em uma loja de brinquedos. Lá eu trabalhava mais de 12 horas, mas gostava muito. Foi quando arrumei meu primeiro namorado. Ele queria fazer sexo e eu não, aí ele passou a me ameaçar. Então conheci o Miguel, pai dos meus filhos, que me defendeu. Resolvemos casar. Mudei do quintal da minha mãe para o quintal dele. Logo engravidei, com 14 anos. Não tinha ideia de contracepção, nada. Fiquei viúva aos 28 anos. O Miguel era artista, queria fazer essas coisas tipo o Leandro [Emicida], mas não parava de beber, era muita frustração. Um dia, em uma briga de bar, ele levou um tombo e morreu [N.R.: essa cena é contada de maneira emocionante por dona Jacira no disco de Emicida].
Eu tive muito medo de colocar meus filhos na escola. Só matriculei eles quando já sabiam se defender. Nesse tempo, passei a trabalhar como faxineira e estudava à noite. Acabei cursando enfermagem, consegui me formar, mas também descobri que tinha lúpus – o que me obriga a fazer hemodiálise toda semana. Também sentia muita angústia, um vazio enorme. Demorei muito para achar um médico que não me enchesse de remédios. Agora, faço psicanálise e gosto muito. Estudo também a história das religiões africanas. Nesse meu tempo de viúva, também atuei no MST com a esperança de ter uma casa, que nunca veio. Morei com meus filhos em assentamento. Já quis ter um grupo, mas hoje prefiro fazer minhas atuações políticas nas pequenas coisas, contando a minha história para que isso não se repita.
Quero falar uma coisa. O que pode acabar com o racismo é a educação, a que se dá dentro de casa para os filhos. Os meus nunca baixaram a cabeça. Nunca. Eles não foram criados como inferiores. E isso não é a escola que vai dar.”