Não há mordaça que silencie mais de 
1 bilhão de pessoas. Não há suposta lavagem cerebral e censura que limite a insatisfação deles. A indomabilidade sempre foi uma realidade na China

O povo chinês nunca abandonou as ruas. Só entre 2013 e 2016 foram mais de 70 mil protestos registrados em todo o país, segundo o ativista Lu Yuyu, jornalista que foi condenado a quatro anos de prisão por documentar e reportar protestos ocorridos em diferentes regiões do país. Os dados oficiais do governo não contradizem a tendência já percebida por organizações não governamentais. Ano a ano, o número de manifestações vem aumentando, motivadas pelos altos valores da moradia, degradação ambiental, serviços públicos prestados sem qualidade e outros assuntos igualmente familiares no Ocidente. No mundo digital, as tendências são parecidas. Campanhas em redes sociais contra body shaming, abuso sexual, absurdos médicos 
e fraudes são igualmente populares.

Por esses motivos, muitos questionam se e quando o atual regime vai cair. Ao longo das últimas décadas, o Ocidente previu sua ruína incontáveis vezes, de incontáveis formas. Até agora, todas as previsões se mostraram erradas. De acordo com a mais pessimista das pesquisas encomendadas por instituições americanas, o governo chinês conta com pelo menos 70% de aprovação popular. 
O motivo disso é simples, mas não simplista: governança. Cabe às lideranças escutar e endereçar cada uma das dezenas de milhares de reivindicações populares que eclodem em toda a China anualmente. Reprimir é faísca para fazer renascer um processo solidário em um povo soberanamente indomável. Dar respostas com velocidade e eficiência é vetor de credibilidade. Daí nascem políticas públicas vanguardistas como a obrigatoriedade da reciclagem em Xangai, o banimento de carros a gasolina em Shenzhen, o controle absoluto de armas, a rigidez em fluxos populacionais (isso, lembremos, no mesmo país dos antiquados Grande Salto Adiante e da lei do filho único).

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Hoje, mais uma vez sob intenso escrutínio público, a China enfrenta um grande desafio de imagem com a visibilidade alcançada pelos protestos de Hong Kong, sendo fácil para muitos associá-la à ideia de um país essencialmente repressivo. Mas, vejam, não confundamos as bolas. Hong Kong não representa a realidade da China continental, é uma dentre as muitas realidades de um país complexo. Tampouco os protestos são uma exceção à história chinesa: representam a regra. Enquanto a governança prevalece, se mantém administrado o curto pavio de um povo rebelde e 
criterioso por sua própria natureza.

“Nenhum outro lugar experimenta o dinamismo tecnológico e progresso material e social vivido pelos chineses.”
Otávio Costa Miranda

A realidade do povo chinês é a de um povo indomável. Nada mais. A tradição historiográfica do país não nega a característica fundamental de seu passado e presente. Um país que por muitas vezes se uniu em um só para novamente se partir em vários. Uma das obras mais conhecidas do país, o livro Romance dos três reinos, escrito por Luo Guanzhong, no século 14, faz referências a essa alternância entre paz e conflito. Tão rara é a paz que ela é sempre exaltada quando se fala sobre os maiores imperadores e mandarins de sua história. Ser grande, na China, é saber conquistar e forjar a paz em meio a uma realidade de conflito. Mas é nessa contradição que nasceram seus grandes saltos. Um princípio fundamental da sabedoria oriental.

A “indomabilidade” do povo chinês tampouco se mede pelas lutas entre seus soberanos. Basta olhar para seu último ciclo de esfacelamento. Em 1850, na cidade de Nanquim, Hong Xiuquan deu início à revolta Taiping, de cunho popular, fundamentalista-cristão e rural. Hong, autoproclamado irmão de Jesus Cristo, tinha a missão celestial de derrubar aquela que veio a ser a última dinastia da China. Em meio a décadas de dominação e partilha territorial pelo Ocidente e duas Guerras do Ópio, o Cristo chinês reuniu milhões e fundou, às margens do rio Yang Tsé, o Reino Celestial da Suprema Paz. Contraditoriamente, em 1912, nos últimos dias da dinastia Qing, o mesmo reino foi palco de um dos maiores banhos de sangue da história da humanidade. A chacina de proporções inimagináveis foi um dos eventos cruciais para a formação da China de hoje. A perda da autoridade imperial foi inevitável, especialmente num contexto em que os valores nacionalistas já vinham se popularizando nas cidades (desde o final do século 19). Além disso, os princípios coletivistas abraçados pelos camponeses encantaram muitas pessoas da elite intelectualizada. Nasceram ali as forças republicanas: 
os primeiros líderes nacionalistas 
e comunistas.

“Reprimir é faísca para fazer renascer um processo solidário em um povo soberanamente indomável”
Otávio Costa Miranda

A efervescência política experimentada pela China no início do século 20 cria um ambiente favorável à oposição de ideias e ao surgimento de novos conflitos. Derrubado o império e instaurada a república, marchas e protestos eclodiram por todo o país. Assim que foi iniciado o governo do Partido Nacionalista, surgiram os movimentos Nova Cultura e Quatro de Maio (precursores do Partido Comunista Chinês), que mobilizaram milhões em oposição ao novo governo. Terminou em guerra civil.

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A partir desse ponto da história, já de maior conhecimento de todos, há alguns erros de entendimento. Primeiro, se imagina que a ascensão de um partido que não é único, mas que governa como tal, se dá pela mordaça. Erro grave. Na verdade, o amadurecimento das forças comunistas no poder passa por um processo de evolução institucional, que, por muitas vezes, viveu momentos de desmoronamento – como na Revolução Cultural. O movimento começa com a mobilização de estudantes de escolas secundárias de Pequim, que fracassaram nos exames de admissão universitária. Termina com a contestação de algumas das facções que lideravam o país. Vale lembrar que, contrariando as orientações das lideranças da época, templos e edifícios históricos foram depredados, e os altos funcionários, expurgados e agredidos. Dentre estes, figuras como Deng Xiaoping e o presidente atual, Xi Jinping. As universidades foram fechadas e os jovens, enviados ao campo. Tudo em  um movimento essencialmente antiestablishment, sendo 
o establishment o próprio partidão.

 

“É preciso encontrar outra vez uma solução capaz de conciliar as contradições de um regime autoritário.”
Otávio Costa Miranda

A ela brutalidade em sua repressão, o Massacre da Praça da Paz Celestial é o marco simbólico mais relevante de como se imagina a China contemporânea no Ocidente. Não há números confiáveis sobre a violenta resposta do governo aos protestos iniciados em abril de 1989, em várias partes da China, mas em 4 de junho daquele ano, em Pequim, o número de mortos com certeza ultrapassou algumas centenas. Todos sempre se lembrarão do jovem que marchou para impedir o avanço dos tanques de guerra, 
uma das fotos mais reproduzidas do século passado.

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Em 2019, o trágico evento completa 30 anos, e foi praticamente este o tempo necessário para surgir um novo marco contra um governo chinês: em Hong Kong, em 2014, o ativista Joshua Wong, com sua sombrinha, trouxe de volta o longo debate sobre a liberdade na China, em um episódio apelidado no Ocidente  de Revolução dos Guarda-chuvas. Desde março de 2019, Hong Kong segue outra vez em ebulição, com protestos (com a imagem já emblemática de uma multidão sentada no aeroporto) e confrontos com as forças autônomas da ilha, resultado do complexo modelo de um país e vários sistemas.

As questões envolvendo Hong Kong e China continental não têm uma resposta absoluta. Governança e sensibilidade provocaram as mais rápidas e relevantes mudanças sociais da história da humanidade. Nenhum país tirou tantos da pobreza num espaço tão curto de tempo. Nenhum outro lugar experimenta o dinamismo tecnológico e progresso material e social vivido pelos chineses. Mas, ainda assim, é preciso encontrar outra vez uma solução capaz de conciliar as contradições de um regime autoritário. Afinal, a insurreição é direito inalienável de que o povo chinês sempre fez bom uso.

 *Otávio Costa Miranda, 25, é cientista político por formação e empreendedor por vocação. Formado pela Renmin University of China, é sócio da 798 Ventures e cofundador da empresa de tecnologia de segurança Gabriel

Créditos

Imagem principal: Francesco Tortorella

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