por alexandre matias

Maria Gadu, Liniker, Xênia França, Letrux e Luedji Luna mostram em disco o resultado de projeto que nasceu como um baile de carnaval

Um baile de carnaval que se tornou um espetáculo de resistência cultural e que agora materializa-se no primeiro disco de protesto de 2020. Essa foi a trajetória de Acorda Amor, projeto protagonizado há dois anos pelo quinteto Maria Gadu, Liniker, Xênia França, Letrux e Luedji Luna. O nome do projeto vem de uma música homônima de Chico Buarque, lançada no disco “Sinal Fechado”, de 1974, que ele assinou com o pseudônimo Julinho de Adelaide, que usava para driblar a censura da época da ditadura militar. A música fala sobre alguém que tem que fugir depressa pois a repressão está batendo à sua porta, uma canção emblemática, que desafiava o sistema.

LEIA TAMBÉM: Camaleoas da música, Letrux e Marina Lima se apresentam juntas em São Paulo e falam sobre essa amizade regada a uísque sour

Este contexto histórico tem sido também uma discussão bem atual. “Pensamos em algo que além da celebrar o encontro de vários intérpretes, também tivesse um visão crítica sobre o momento, através da música. Começamos a falar sobre tudo que o Brasil estava passando e resolvemos cantar essas questões”, conta a jornalista Roberta Martinelli, diretora artística do projeto. O disco sai neste mês e o lançamento rola nos dias 31 de janeiro, 1 e 2 de fevereiro, no Sesc Pompeia, em São Paulo, um show que serve como um convite à resistência ao mesmo tempo que faz uma ode ao amor, à alegria e ao prazer.

E foi justamente no Sesc Pompeia que tudo começou, no início de 2018, quando o programador de música da unidade, Devanilson Furlani, o Deva, que faleceu no ano passado, convidou o baterista do Bixiga 70 Décio 7. “Naquele momento o país estava sendo (des)governado por Michel Temer e não havia motivação para fazer um baile de carnaval”, lembra o músico, que também assina a direção musical e a produção do disco, e que resolveu convidar Roberta para assinar a direção artística do projeto com ele. “O baile deixou de ser de carnaval e o repertório político entrou em seu lugar. Cada dia um grito era sufocado e a ideia foi juntar esses gritos no palco em um show”, conta ela.  

Para isso, passaram a pensar nos intérpretes e repertório, uma tarefa delicada que não cogitava originalmente apenas cantoras mulheres. “Teve de tudo um pouco pra chegar nessas cinco cantoras”, lembra a jornalista. “Passamos por vários nomes e formações até chegar nelas. E não consigo pensar em combinação melhor. Sabe aqueles casos de que até a gente se pergunta 'como foi que fechou tão bem?'.” Décio completa, citando uma das músicas do repertório, de Jorge Mautner: “Rolou uma certa magia que juntou essas cinco bombas atômicas”.

LEIA TAMBÉM: Em um ano em que se discutiu muito a censura, batemos um papo com Rogério de Campos, editor da Veneta, sobre patrulha ideológica na arte

A lista de músicas começou a ser definida a partir da escolha das intérpretes, de forma colaborativa. “As músicas escolhidas foram sempre compartilhadas com elas e também algumas sugestões vieram das cantoras. Foi difícil fechar o repertório e ele foi mudando desde a estreia em fevereiro de 2018 até agora”, conta Roberta.

Canções emblemáticas dos últimos cinquenta anos da música brasileira, de autores tão distintos quanto Erasmo Carlos (“Gente aberta”, única música que reúne as cinco cantoras), Gonzaguinha (“Comportamento geral”), Di Melo (“A vida em seus métodos diz calma”), Belchior (“Sujeito de sorte”) e Leci Brandão (“Assumindo”), além de faixas contemporâneas de Douglas Germano e Francisco El Hombre e um poema inédito de Edgar, “Sem preguiça para fazer a revolução”, interpretado por ele mesmo.

O disco —  que tem capa de Pedro Inoue, revelada em primeira mão para a Trip  começa a ser revelado entre os dias 20 e 24 de janeiro, quando, de segunda até sexta, cada intérprete terá um single de apresentação. Luedji Luna começa os trabalhos na segunda com “Extra”, de Gilberto Gil; na terça, tem “Não adianta”, do Trio Mocotó, na voz de Liniker;, na quarta, Xênia França canta “Deixa eu dizer”, de Ivan Lins, eternizada por Claudia; na quinta-feira, Letrux defende “Saúde”, de Rita Lee, e, finalmente, na sexta-feira, Maria Gadu mostra sua versão para “Nuvem cigana”, de Lô Borges e Ronaldo Bastos.

Acorda Amor é um grito!”, diz Luedji. “As pessoas estão cegas pelo ódio, ódio que foi um dos assentamentos na construção da sociedade brasileira, que nos atravessa. É preciso que a gente assuma esse fato. Acho que o projeto nos ilumina para o amor.” Letrux faz coro: “Qualquer projeto que fale sobre amor, prazer, tesão na atual conjuntura é bem vindo. Quando o Lula saiu da cadeia, foi muito aliviante por mil motivos, mas um deles foi que ele falou da importância de ter prazer. Porque esse presidente e essa corja representam tudo, menos isso, é a contramão do prazer. Por isso que um projeto que fala sobre o amor precisa existir, ser enaltecido, ser ouvido. É muito importante, o amor, a alegria, o tesão e o prazer... Todas essas sensações são revolucionárias. O momento está tão triste, trevas e cheio de terror e repressão, que quanto mais a gente cantar sobre isso, a gente vai ter forças pra atravessar os tempos que correm.”

“A arte é uma das coisas mais fundamentais nesse momento, não à toa vem sendo tão atacada”, reforça Roberta. “Ver essas cinco mulheres importantes demais para a música brasileira no palco com esse repertório tão conectado com o que estamos passando é emocionante. Fizemos um show entre os dois turnos de eleição no Circo Voador e naquele momento achei que a gente poderia sair bem das eleições pra presidente. Infelizmente não saímos e o discurso do disco permanece cada dia mais atual.”

O espetáculo já foi encenado três vezes — no lançamento, no Sesc Pompeia, em São Paulo, no Circo Voador, no Rio de Janeiro, e na Casa Tpm, também em São Paulo — e o repertório foi mudando até chegar no do disco. “Quem já assistiu ao show vai se surpreender, porque é muito diferente”, explica Letrux. “Desde a estreia pra cá o jogo de cena entre as cinco foi afinando e cenas foram criadas e melhoradas. O repertório foi mudando e músicas sendo testadas. A gente vai entendendo e estamos abertos às mudanças”, conta Roberta.

O disco não é o final do projeto, longe disso. “Desde o começo, o Acorda Amor é um projeto intuitivo e guiado por um instinto de resistência e força coletiva”, explica o produtor Décio 7. “Um momento onde podemos estar juntos e nos fortalecer diante de tantos retrocessos e intolerância. Os desdobramentos que virão, só tempo poderá dizer.” Roberta quer fazer mais shows e levar o espetáculo para o nordeste. “Seguimos”, comemora.

Créditos

Imagem principal: Pablo Saborido

fechar