A volta das cruzadas

por Aline Cruz

Em um ano em que se discutiu muito a censura, batemos um papo com Rogério de Campos, editor da Veneta, sobre patrulha ideológica na arte

Este ano foi um ano marcado por episódios em que a arte, em diferentes linguagens, encontrou resistência para transitar na esfera governamental (alerta de eufemismo!).  Basta lembrar do marcante episódio da Bienal do Livro do Rio de Janeiro, em setembro. No lugar das tradicionais reportagens de cultura sobre a expectativa de público, os stands criativos das editoras, os atrativos descontos, os autores preferidos entre os visitantes e os encontros de amigos, vimos o assunto ser abordado massivamente na mídia na hora do noticiário político.

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A Bienal entrou direto nos trending topics das redes sociais com hashtags como #censuranão, #censuranunca, #homofobianãoécrime, entre outras do tipo. O gibi Vingadores — A cruzada das crianças continha um beijo gay, o que foi suficiente para que o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (PRB), mandasse os organizadores da Bienal recolherem a HQ,  alegando “conteúdo sexual para menores”. A ação gerou uma série de repercussões, entre elas, a compra massiva de livros com temática LGBTQ+ pelo youtuber Felipe Neto, que os distribuiu gratuitamente durante o evento. 

No entanto, ao olhar de perto, a sensação é que o fato ocorrido na Bienal não era algo isolado, mas, sim, um reflexo de algo que já faz parte da rotina de quem edita obras com temáticas que fogem aos "valores da família brasileira". A Trip conversou com o editor Rogério de Campos, da Veneta, que revelou diversas situações em que teve e tem que enfrentar algo parecido com a censura, ainda que ela não seja declarada. As reflexões dele abrem caminho para pensarmos sobre obstáculos que precisamos enfrentar. 

Começou muito antes de 2019

Um dos pontos que ele destacou é a distribuição dos livros que lança, que frequentemente são afetados por pensamentos conservadores, mesmo antes das censuras de instituições públicas a quadrinhos e exposições ganharem destaque neste ano. Segundo Rogério, muitas das distribuidoras são geridas por empresários evangélicos, que acabam decidindo quais publicações irão para quais estados a partir de critérios muitas vezes religiosos. “Tem uma versão de Antígona para crianças que a empresa não quis distribuir porque dizia que a capa era pornográfica. Não sei se vocês sabem, mas a capa era só ela cobrindo o corpo do irmão morto, e o irmão estava de armadura, não tem nada”, conta. “Quando a censura começa, não para mais. A gente acha uma bobagem que um gibi como o dos Vingadores, por exemplo, tenha sido censurado, mas se a gente aceita aquilo ali, com o tempo vai tudo.” 

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Uma grande preocupação do editor da Veneta, que fez história no comando da extinta Conrad, é que essas censuras podem significar o fim de muitas editoras de pequeno porte. “Perder uma tiragem inteira de um livro é um prejuízo muito grande. Para editoras grandes, pode não fazer diferença, mas, para nós, pode significar a morte”, lamenta. Rogério conta que muitas editoras foram desistindo de distribuir algumas de suas publicações em diversos lugares do país porque recebiam de volta pacotes fechados de suas revistas e livros, impedidas de serem distribuídas por razões como “horóscopo é coisa do demônio”, por serem revistas eróticas com temática gay ou, como aconteceu em um caso envolvendo o fundador da Circo Editorial, Toninho Mendes, a questão era a publicação ter o título Lúcifer

No caso das HQs, parte do problema de distribuição se dá também pela ideia de que gibis são leitura de criança. A censura a quadrinhos não é novidade desta década, nem do Brasil. No início dos anos 50, a Associação Americana de Revistas em Quadrinhos criou o Código dos Quadrinhos (Comic Code Authority), um órgão de censura cujo objetivo era garantir que as HQs fossem apropriadas para crianças. O Código foi criado a partir de acusações levadas ao Senado de que gibis contribuíam para o aumento da delinquência juvenil. A ideia era respaldada pelo psiquiatra Fredric Wertham, que escreveu um livro intitulado Sedução dos inocentes, onde afirmava, entre outras teorias, que os jovens infratores que passavam por sua clínica haviam lido quadrinhos, logo, as HQs eram responsáveis por levá-los ao crime. No Brasil, boa parte dos argumentos para a censura de quadrinhos é justamente “a proteção das crianças e da juventude brasileira”, como defendido por Crivella no caso do gibi dos Vingadores.

Projetos natimortos

Mas é ainda mais preocupante pensarmos que esse tipo de discussão não é nova, tampouco se limita ao universo das histórias em quadrinhos. No mesmo período da Bienal, por exemplo, a exposição de charges O riso é risco foi fechada menos de 24 horas depois de sua abertura, na Câmara de Vereadores de Porto Alegre. A vereadora Mônica Leal (PP),  presidente da Câmara, argumentou que as charges eram ofensivas ao presidente Jair Bolsonaro (PSL) e que isso era “inconcebível”. A exposição, no entanto, foi reaberta graças a uma liminar da justiça que determinou que a mostra permanecesse em exibição pelos mesmos 12 dias que estavam inicialmente programados.

O inconcebível já se aplicou também a temáticas como a nudez e a sexualidade, bastante atacadas, como ocorreu no primeiro semestre deste ano, quando o Museu dos Correios vetou cinco obras da exposição O sangue no alguidá, um olhar desde o realismo sujo latino-americano, do artista goiano Gerson Fogaça e do escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez. Os trabalhos continham poemas visuais e quadros de teor erótico. No mesmo período, a mostra Literatura Exposta foi fechada um dia antes do previsto, por deliberação da Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, por conter uma performance com nudez feminina e referências à tortura no período da ditadura militar no Brasil.

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Vai ficando claro que a questão não é atacar algo por ser destinado a jovens e crianças, como as HQs, mas, sim, o que foge aos valores cristãos. Assim, aumenta continuamente a proporção dos vetos a projetos e obras. Se, no caso da Bienal do Livro, a censura não teve o efeito esperado por Crivella, assim como algumas das exposições vetadas acabaram conseguindo novos locais para exibição, o problema maior está em projetos que, ao acompanhar esta lógica, jamais serão feitos. Recentemente a Caixa Econômica cancelou uma peça em Recife após sua primeira exibição e afirmou que é vedado o patrocínio a espetáculos com posicionamento político. Mesmo com ordem do Ministério Público Federal em Pernambuco para a retomada do espetáculo, isso não ocorreu. 

“Com o dinheiro público não veremos mais certo tipo de obra por aí. Isso não é censura, é preservar os valores cristãos”, alegou em um de seus posicionamentos o presidente Jair Bolsonaro. O Ministério Público Especial junto ao Tribunal de Contas da União (MPTCU) realizou um pedido de investigação da censura de projetos não só na Caixa Cultural, mas também no Centro Cultural Banco do Brasil. O CCBB também alega que proíbe apoio a projetos de cunho religioso ou político-partidário. 

Rogério, porém, destaca que o combate a censura vai além das instituições jurídicas e também inclui a produção artística contínua: “A arte existe pra trazer à tona o que existe na imaginação da sociedade. É a maneira de tornar visível o invisível, dependemos disso. Nesse momento, tudo é político”. E finaliza: “Um gibi simples como o dos Vingadores conseguiu irritar tanta gente, imagina o que a gente não consegue fazer”. Em 2020, é preciso estar atento e forte.

Créditos

Imagem principal: Heitor Loureiro

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