Em ”Epidermia”, pai e filho propõem se colocar na ”pele do outro”, refletindo sobre as relações entre direita e esquerda no Brasil
Em meio à pandemia de coronavírus, Laerte e Rafael Coutinho se lançaram em uma experiência nova. Pai e filho criaram uma HQ a quatro mãos, que aprofunda o debate sobre a polarização política que vem se acirrando no Brasil e a possibilidade de encontrar caminhos comuns em meio a tantas contradições, desinformação, falta de empatia e afeto. "A ideia era tentar entrar na pele política do outro, entender ou 'não julgar' esse sujeito que pensa diferente de nós", diz Rafael, sobre a HQ batizada como Epidermia.
"Fizemos algumas coisas juntos antes, mas nunca em cima da página do outro, nunca uma história pensada pelos dois. Foi muito em função do que estamos passando e da vontade de abordar temas relacionados à realidade política do país em meio ao massacre que estamos vivendo, isolados, governados por psicopatas", conta Rafael, nome consolidado na cena de quadrinhos autorais no Brasil, que também é autor das graphic novels Cachalote (2010), Mensur (2017) e da série O beijo adolescente. "Ninguém se coloca na pele do outro. A gente vem acompanhando julgamentos sumários na internet. Acho perigoso e perturbador", diz Laerte, que há mais de 40 anos usa suas tirinhas, charges e cartuns para refletir sobre as mudanças políticas e sociais do país, além de esmiuçar angústias particulares. Em 2012, ela foi homenageada no Trip Transformadores pela relevância de sua produção.
Cada um de sua casa produziu metade da HQ deixando espaços no papel para que o outro pudesse completar com seu próprio personagem. Depois, as páginas foram trocadas presencialmente, seguindo as recomendações de distanciamento impostas pela pandemia. Todo o processo, do rascunho à finalização, foi transmitido em quatro lives no Zoom, por intermédio da Galeria Aura, que convidou a Trip para acompanhar a experiência.
Trocando de pele
"Eu vejo o desenho do meu pai desde criança, mas nunca tinha tocado nele. É algo que nem Freud explica", brincou Rafael, na primeira live. Nesses encontros virtuais disponibilizados gratuitamente e que duravam cerca de duas horas, o público pôde acompanhar não só o processo de produção da HQ ao vivo, como também trocar ideia com os artistas sobre assuntos como técnicas de desenho, mercado de quadrinhos, como lidar com o bloqueio criativo e até questões mais filosóficas sobre as relações entre esquerda e direita, progressistas e conservadores, passado e futuro.
"A gente não entende ser de direita ou de esquerda de forma caricatural, senão fica bobo. Minha personagem é de direita, mas não é bolsonarista", disse Laerte, enquanto começava a desenhar sua história, protagonizada por uma mulher que vive no início dos anos 90. "Quando o [Fernando] Collor, que era de direita, se elegeu, pessoas de esquerda se engajaram. Tinham padrões mais fluidos. Hoje é como se a gente estivesse voltando para a Alemanha nazista. Como conseguimos chegar num entendimento que seja razoável?", completou.
Do outro lado, Rafael desenhava um homem de esquerda, que vive em 2040, enquanto refletia sobre o momento atual: "A classe média, de esquerda, tem muita dificuldade em entender a classe baixa, de direita, que busca lideranças religiosas. É um movimento quase alienado, de não querer ver o que é a periferia conservadora".
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Ao final de cada live, quem estava acompanhando e desenhando de casa passou a enviar espontaneamente seus trabalhos e a trocar contatos pelo chat. "O pessoal da Galeria Aura se dispôs a documentar isso, montaram um PDF reunindo os desenhos e contatos. Virou um projeto de todos. Os encontros se tornaram um retrato do desejo das pessoas de se juntarem para criar, não só para assistir e consumir conteúdo", comenta Rafael, em entrevista.
Nesse espaço informal de troca, os artistas puderam concretizar, para além da própria obra, a proposta de encontrar caminhos para o diálogo dentro do cenário complexo em que vivemos. Não há respostas fáceis, mas a arte pode oferecer pistas: "Difícil entender o que é o papel da arte, como se houvesse uma função, uma missão. O que a gente pode deixar de legado é uma coisa profunda, que é o melhor que a gente tem", diz Laerte.
A seguir, você confere a HQ Epidermia na íntegra.
- Primeira página da HQ Epidermia
- Segunda página da HQ Epidermia
Créditos
Imagem principal: Divulgação