O mainstream do underground

por Juliana Sayuri

A história da Circo Editorial e de Toninho Mendes, editor que lançou Laerte, Angeli e outros ícones dos quadrinhos brasileiros

Eram quase 2 horas da madrugada de 26 de abril de 1984. Em Brasília, a notícia: após altas expectativas, a proposta das Diretas Já, que defendia eleições para presidente depois da ditadura militar (1964-1985), foi derrotada no Congresso. Nessa quinta-feira de ressaca nasceu a intrépida Circo Editorial, em São Paulo.  

O pai era o editor Antônio de Souza Mendes Neto, o Toninho Mendes (1954-2017). Entre os filhos, rebeldes, estavam Angeli, Laerte, Luiz Gê, Glauco (1957-2010), Alcy, Chico e Paulo Caruso, artistas que marcaram – e marcam até hoje – a história das histórias em quadrinhos no país. Ativa entre 1984 e 1995, a Circo foi uma editora especializada em quadrinhos de humor, cartuns e charges com ácida sátira social e crítica política. Nesse picadeiro, despontaram atrações como a ninfomaníaca Rê Bordosa e o punk Bob Cuspe, de Angeli (lançados na revista Chiclete com banana), o tipo folgado Geraldão, de Glauco, e os piratas paulistanos, de Laerte. A editora também publicou oito edições da revista Circo, palco dos talentos da casa. As revistas chegavam a vender cerca de 100 mil exemplares, um respeitável público – quer dizer, era a editora mainstream mais underground da época.

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Em abril de 2014, Toninho lembrou essa história no livro Humor paulistano: A experiência da Circo Editorial – 1984-1995 (Ed. SESI-SP). Morto em janeiro de 2017, aos 62 anos, o editor volta a narrá-la agora: é dele a voz em off que marca os seis episódios da série São Paulo meu humor, produção da Academia de Filmes que estreou no dia 20 de junho, às 20h30, no canal Arte 1, como novos capítulos sempre às quintas. Em cartaz entre 20 de junho e 25 de julho, a série foi idealizada por Toninho, que morreu meses antes das gravações, feitas a partir de novembro de 2018. Coube ao documentarista Pedro Urizzi, 32 anos, revirar diversas fitas K7 gravadas com a voz de Toninho para compreender a história e garimpar declarações do editor, que se tornou narrador da série. “No fim, ele continua no papel de editor. Ele dá o tom e dirige a narrativa”, define Urizzi.

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“Admirável democracia nova” foi o título do episódio de estreia da série. “Toninho dizia que a Circo só foi possível pois não tinha mais censura. É fruto do processo de redemocratização do país. Eles queriam testar ao máximo os limites desta nova liberdade. É importante contar essa história com as lentes do presente, um tempo em que temos a impressão de perder o horizonte democrático de vista, para entender o quão importante foram esses artistas. Parafraseando Toninho, eu diria que nós precisamos aproveitar a liberdade que ainda nos resta, principalmente a liberdade de expressão”, diz o diretor.

O publisher

Lembrado como um lendário editor, Toninho já foi chamado de “herói do quadrinho brasileiro” por Laerte, 68. “Não sei nem como expressar como a Circo foi importante. Foi o que me permitiu fazer quadrinhos, afinal. Foi um marco na minha trajetória: ali desenvolvi minha linguagem, soltei minhas fantasias. Enquanto nós desenhávamos, com total liberdade, Toninho administrava e providenciava o que fosse preciso para a editora. Às vezes, também dava ideias. Era o editor dos sonhos de qualquer artista, um produtor associado, um cúmplice. Embora ele gostasse da palavra publisher”, lembra a cartunista.

“Tudo era possível no Circo“, define Luiz Gê, de 68 anos. “Toninho tinha o pé na realidade e dava condições para a nossa produção, incluindo as ideias mais mirabolantes, as inovações de formato e de linguagem. Foi um dos melhores momentos da minha trajetória”, conta.

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Na infância na Casa Verde, zona norte de São Paulo, Toninho trabalhou em uma banca de revista para conseguir seus primeiros gibis – os preferidos, na época, eram Tio Patinhas e Tarzan. Era adolescente quando foi lançado o ilustre alternativo Pasquim, no Rio, em 1969. Na década seguinte, trabalhou em diversas editoras e diferentes cargos, inclusive na imprensa alternativa, que fazia resistência ao regime militar: passou pelos jornais Movimento (que nasceu sob o signo da censura prévia, em 1975) e Versus (que também teve passagens de Caco Barcellos, Fernando Morais, Maurício Kubrusly, Chico e Paulo Caruso, Luiz Gê e Angeli).

Toninho já definiu a revista Circo como “o Pasquim da década de 1980”, dada a influência da contracultura – a crítica política é presente na revista e na editora, mas o foco mudou para o comportamento, enquadrado especialmente neste estilo de “humor paulistano”, a cidade, o cotidiano da classe média urbana, a marginal, os marginais, a boemia. “São Paulo, na época, assistiu à ascensão de culturas independentes na música (Lira Paulistana, que depois se tornou um selo musical), no teatro (a volta do Oficina e o surgimento do grupo Ornitorrinco), no cinema (diversas produtoras instalaram-se na Vila Madalena)”, contextualiza o pesquisador Roberto Elísio dos Santos, vice-coordenador do Observatório de Histórias em Quadrinhos da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP).

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O circo montado por Toninho viveu os últimos minutos da ditadura, a abertura política, o impeachment de Fernando Collor, em 1992, e a montanha-russa inflacionária até a instalação do real, em 1994 – a editora não resistiu às instabilidades financeiras e foi finalizada no ano seguinte. Toninho, então, passou por outros selos e, em 2010, fundou a Peixe Grande, uma nova editora, voltada a quadrinhos “sujos”, pornográficos e eróticos, como a premiada antologia Quadrinhos sacanas.

"Quer que eu desenhe?"

Segundo o historiador Rodrigo Otávio dos Santos, que pesquisa HQs e atualmente é professor do Centro Universitário Internacional – Uninter, a Circo foi, historicamente, a editora que conseguiu atrair o jovem urbano às bancas de revista. “Antes das publicações da Circo, tínhamos revistas para crianças (em especial da Disney e de Mauricio de Sousa) e para adolescentes (dos super-heróis da Marvel e DC), mas pouquíssimas revistas para o público jovem. Havia, claro, as revistas SomTrês e Bizz, que tratavam de música, e a própria Trip, mas nenhuma delas era de quadrinhos”, comenta.

Em um encontro que foi realizado para celebrar o lançamento da série, Laerte reencontrou amigos da época e quadrinistas mais jovens, como Bruno Maron e Ricardo Coimbra. “Bom, os tempos mudaram”, diz a cartunista. O mercado, as ideias e o contexto político, também. Se antes uma editora independente conseguia vender milhares de revistas nas bancas, agora a realidade é diferente: há muitas portas abertas com as novas ferramentas tecnológicas, mas também muitas portas fechadas com a crise do mercado editorial.

A arte de imprimir humor e crítica em quadrados pequenos, porém, continua. “O potencial transgressor e a linguagem que combina agressividade e humor continuam à toda. Nesse clima conservador, de repressão e vigilância ideológica, o humor faz diferença, sim. Todo discurso humorístico é político, sim. Quem diz, ‘ah, o mundo ficou chato por causa do politicamente correto, não dá nem mais para brincar’, pois não brinque, amigo. Não vejo o humor como um limite, mas um horizonte. Antigamente, eu considerava qualquer manifestação de humor libertária por excelência e não é assim. Hoje tenho uma visão muito mais complexa: o humor pode ser libertário, mas também pode reforçar preconceitos, a depender de como é expressado. Minha vida foi mudando. Minhas ideias sobre o mundo, também. Não me sinto cerceada, mas desafiada”, pondera Laerte.

No Brasil de 2019, há muitas iniciativas similares ao Circo Editorial, mas feitas pelos próprios autores, com tiragens vendidas em feiras, festivais e livrarias especializadas. Isso, na versão impressa no papel, obviamente, já que na internet proliferam publicações transgressoras independentes e bem-humoradas. Para Rodrigo, a internet é a “maior mola propulsora” das HQs no Brasil e no mundo atualmente. É simples compreender a popularidade, argumenta o historiador: “O mundo é caótico e, ao mesmo tempo, risível. O humor parece ser a melhor arma contra o dominador, ao mesmo tempo que o alívio que precisamos ao longo dos dias – o que nos faz rir de nervoso enquanto tentamos ter uma leitura crítica do mundo. Sabe o dito popular ‘quer que eu desenhe?’, quando alguém não entende nada? Pois bem, os quadrinhos já vêm desenhados.”

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