O pai do menino de cabelo azul

por Juliana Sayuri

Alexandre Beck comenta arte, direitos humanos e política nas tirinhas de “Armandinho”, cartum que se tornou um fenômeno nas redes sociais

Espalham-se pela mesa canetas, livros, lápis diversos, papéis de diferentes gramaturas e rascunhos de sua primeira HQ. Alexandre Beck, 46, está desenhando. Faz 37 graus na ilha de Florianópolis, tarde tórrida de 16 de janeiro de 2019, a primeira vez desde 2010 que seu “filho” não ilustrou as páginas da imprensa catarinense. Beck é o pai do cartum Armandinho, protagonizado por um garoto de cabelos azuis que fez fama com suas tiradas infantis, mas críticas – na linha da argentina Mafalda (do cartunista Quino) e do americano Calvin (de Bill Watterson). “Fico até envergonhado, porque eles desenham de verdade. Meu traço é tosco”, diz, timidamente, o ilustrador.

Armandinho nasceu às pressas no dia 9 de outubro de 2009. Beck fora pautado de última hora pelo Diário Catarinense, onde atuava desde 2000, para ilustrar uma reportagem sobre pais e filhos. Para cumprir o prazo, o artista resgatou um desenho pré-pronto de outro trabalho de sua autoria, um livro que foi engavetado pela editora e nunca publicado. Traçou uns pares de pernas altas para simbolizar os pais ao lado da curiosa criança boquiaberta. Tempos depois, no dia 17 de maio de 2010, “o menino” conquistou uma coluna fixa no jornal. Para batizá-lo, a redação realizou um concurso entre leitores – venceu a indicação de uma professora que dizia que o garoto estava sempre “armando” algo nas histórias.

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O menino cresceu. De lá pra cá, Armandinho rodou o país: suas tirinhas figuraram diariamente na imprensa catarinense (além do Diário, outros três jornais) e gaúcha (Zero Hora, por exemplo) e foram licenciadas para livros didáticos diversos. Em São Paulo, rodaram no caderno infantil Folhinha (da Folha de S. Paulo). Beck também compilou cartuns para montar onze livros – o número zero saiu em 2013; o último, em 2018. No Facebook, onde soma mais de um milhão de fãs, seus posts movimentam milhares de interações, assim como acumula dezenas de milhares de likes nos posts de sua conta no Instagram.

Na manhã de 15 de janeiro, rodaram seus últimos quadrinhos nos quatro jornais de Santa Catarina. “Não foi surpresa o fim, justificado por corte de custos e reestruturação da empresa. Surpresa foi ter acontecido logo depois de um grande embate...”, lembra Beck, acomodado na poltrona colorida de sua sala, onde se escorava uma bandeira do Movimento dos Pequenos Agricultores, que integra a Via Campesina.

O embate aconteceu em fins de 2018. Uma sutil conversa de Armandinho e seu amigo negro Camilo, diante dos coturnos de um adulto, provocou reações de militares do sul [tirinha acima]: “Na data de 18 de novembro, ocasião em que a Brigada Militar celebra 181 anos de serviços prestados à comunidade, o jornal Zero Hora ‘presenteia’ a instituição e seus integrantes com a publicação de uma charge no caderno Findi, página 11, produzida por Alexandre Beck, com conteúdo de mau gosto, desrespeitando todos os policiais militares”, dizia a nota de repúdio do Comando de Policiamento de Porto Alegre.  

“Um puta azar”, afirma Beck. “Eles acharam que eu estava provocando por causa do aniversário da brigada, mas não estava. E se estivesse?” Além da nota, o cartunista se tornou alvo de ataques, ameaças de processo e mensagens de violência – “uma campanha de intimidação”, define.

Vestindo chinelos, uma bermuda listrada e uma camiseta preta do 13o Congresso Mundo de Mulheres e 11o Fazendo Gênero, Beck é um cara discreto e tranquilo. Agrônomo, ativista ambiental e publicitário, é do tipo que gosta de ir ao campus da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) para assistir a seminários ocasionais e que cultiva uma agrofloresta em São Pedro de Alcântara (SC), a 35 km de Florianópolis.

“Quem está na mídia é sempre o Armandinho, não eu. Quase ninguém reconhece meu rosto”, diz ele, caminhando na área verde do condomínio, cercada por saguis, lagartos e abelhas sem ferrão. “Mas, pela primeira vez, vi fotos minhas compartilhadas em páginas policiais, de apoiadores de porte de armas, com mensagens de ódio. Uns diziam ‘você deve morrer’, outros desejavam ‘tudo de mal para minha família e se acontecesse algo ruim que eu procurasse o Batman’”, relata o artista fazendo aspas no ar com as mãos. “Nos primeiros dias, estava com medo de sair na rua, pelo tom agressivo e pela avalanche de mensagens. Senti o que é ter medo da polícia.”

Dias depois, outra charge, crítica ao fim da presença cubana no programa Mais Médicos, provocou reações de médicos gaúchos [ver tirinha abaixo]: “É um ataque sem qualquer fundamento, que ignora a realidade que cerca o trabalho médico, assim como foram denegridos os policiais militares recentemente”, declarou a nota de repúdio do Conselho de Medicina do Rio Grande do Sul. “E eles ainda citam a brigada usando a palavra racista ‘denegrido’, cara...”, comenta Beck, balançando negativamente a cabeça.

Ninguém solta a mão de ninguém

Nesses dias tensos de novembro, o cartunista mal saiu de casa. Em dezembro, recebeu a notícia do Diário Catarinense, berço do Armandinho, cancelando suas tirinhas.

Na contramão dos ataques, o artista passou a receber mensagens de apoio. “Senti pulsante o significado de ‘resistência’ e ‘ninguém solta a mão de ninguém’”, postou Beck no Facebook. Na Comic Con Experience (CCXP), em São Paulo, ele recebeu abraços de cartunistas, jornalistas e militantes do movimento negro.

“Armandinho, o menino ingênuo, tornou-se ameaça para os homens de farda. O pai de Armandinho não irá parar de desenhar, nem o menino vai se calar. Só vai circular em lugares diferentes de onde nasceu. Armandinho conhecerá o mundo. E eu vou sempre segui-lo”, tuitou a antropóloga Debora Diniz, da Universidade de Brasília (UnB).

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“O adorável menino de cabelo azul, sempre questionador e curioso, tem uma história de crítica política e social tão relevante quanto a de seus antecessores no Pasquim, por exemplo, que traziam duras críticas à ditadura nos anos 1960 e 1970. Sua amiga argentina, Mafalda, também costuma ficar intrigada com desigualdades sociais e, assim como Armandinho, seu alcance permite que suas tiras dialoguem com adultos e crianças em níveis de interpretação diferentes”, escreveu a pesquisadora Dani Mariano, do Observatório de Quadrinhos da Universidade de São Paulo (USP).

“Não vou pedir desculpas [pelas tirinhas]. Se alguém quiser discutir o assunto, vamos discutir. Mas eu sei que a crítica é real. Cara, eu estou aprendendo todo dia”, diz Beck à Trip. “Uma amiga feminista negra me ensinou o que é o sentimento de uma mãe ao ensinar seu filho negro a se comportar na frente de agentes de segurança: não correr, não fazer movimentos suspeitos. Não imaginava essas reações negativas, negando a realidade, afinal eu já tinha publicado outras tiras mais ‘complicadas’ para um leitor conservador”, lembra.

Janyne Sattler, 39, interrompe: “Sim, você já fez tiras mais ‘provocativas' ou ‘diretas’, mas precisamos contextualizar: foi pós-eleições, num momento político acirrado.” Juntos desde 2012, Beck e Janyne entrelaçam a trajetória deles às indagações de Armandinho.

Janyne foi a primeira mulher a integrar o quadro docente do departamento de filosofia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde lecionou entre 2012 e 2016. “Em 2013, aconteceu o incêndio da boate Kiss. A gente viu de perto como a vida é rápida. A gente não sabe até quando estará aqui. E eu me senti na obrigação de tentar levar para as tiras o que eu aprendo com a Janyne e com a Fernanda – minha inspiração, minha filha que tinha 7 anos quando criei o Armandinho”, afirma. 

Nos campi de Santa Maria e Florianópolis, o casal foi se aproximando de movimentos negros, indígenas, feministas, LGBT, entre outros. Foi um mundo novo: “Ouvi jovens doutores negros contando que, se andar de chinelo na rua, policiais param para revistá-los. Se andar à noite de carro, param na blitz. Por quê? Ouvir outras realidades é oportunidade de reconhecer nossos próprios privilégios. Eu me sinto nessa pele de criança, aprendendo as diferenças”, conta Beck.

“Se todo mundo encarasse o mundo como uma criança, tudo seria mais simples. Nós precisamos aprender, ninguém nasce pronto. Sou da filosofia, área inquisitiva por excelência, e ainda assim demorei para me dar conta: nós não notamos nossos privilégios e, ao mesmo tempo, nossos obstáculos para entender o outro”, acrescenta Janyne.

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Em 2016, a filósofa se tornou professora da UFSC, onde se engajou ainda mais como feminista e passou a integrar o coletivo 8M, de Florianópolis. “Foram várias mudanças, de cidade, endereço, ferramentas de trabalho. Mas a principal transformação foi na minha cabeça: eu não tinha ideia do meu lugar de fala. O fato de ser homem, hétero, branco, cis, classe média, morar no sul do país...  Isso restringe um bocado meu ponto de vista, apesar de ter todo acesso a conhecimento e informação. Fiz escola particular e universidade pública antes das ações afirmativas. Demorei muito pra entender realidades diferentes. A gente precisa sair da zona de conforto. Armandinho tende ao ‘politicamente correto’, se isso quer dizer ter respeito pelo outro. Quem faz piada de negro, mulher, gay... Cara, te esforça para perceber o que está errado”, diz Beck.  

Armandinho foi escolhido para ilustrar uma revista eletrônica sobre os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Universidade de Campinas (Unicamp). Em março, Beck foi convidado pelo Comitê Gestor de Direitos Humanos da universidade para palestrar sobre ativismo artístico. Para a historiadora Néri de Barros Almeida, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e coordenadora do comitê, a arte é um instrumento poderoso de sensibilização.

“A arte é um verdadeiro 'atalho' para a compreensão, pois estimula a sensibilidade dos sujeitos. Por exemplo: o pai pergunta por que Armandinho não joga bola com um menino cadeirante. O pai afirma que o cadeirante é igual a ele, ao que Armandinho, apontando o menino boleando, responde: ele não é igual a mim, ele é muito melhor! Em três quadros, Alexandre não apenas aborda o preconceito, mas aperfeiçoa e divulga um conceito caro aos estudiosos da acessibilidade, que define a pessoa com deficiência não como incapaz, mas como 'descapacitada', uma vez que o padrão de normalidade cria impedimentos para sua autonomia. Com poucas imagens e pouquíssimo texto, Alexandre leva o leitor a perceber diversas coisas e ainda retira dele um bom sorriso que vem junto com o pensamento: e não é verdade?”, indaga Néri.

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Passada a tormenta de novembro, a bola de Armandinho continua rolando. Beck reuniu material para dois novos livros, que serão edições especiais sobre meio ambiente e direitos humanos. Após a despedida do berço catarinense, as tirinhas seguem na imprensa gaúcha e agora surgiram convites para jornais digitais (a Ponte, de São Paulo, e o novo Plural, de Curitiba) e uma revista do Piauí. A tirinha que enfureceu a Brigada Militar foi licenciada para uma importante editora de material didático e estará nos livros deste ano – “Quer dizer, racismo será discutido nas escolas”, comenta o ilustrador, sem revelar a editora, por questões contratuais.

“Eu me considero afortunado, de verdade. A vida passa muito rápido, sempre digo. Então, a gente deve fazer da vida algo que possa trazer um bem para o mundo. Não viver uma vida egoísta, mesquinha, porque daqui pouco a gente vai embora. Fazer do mundo um lugar um pouquinho mais justo e humano. É o mínimo.”

Créditos

Imagem principal: Alexandre Beck

Quadrinhos: divulgação Fotos: Rodrigo Sicuro

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